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O
Congo
«(…)
Quando aprendeu a ler, gostava de mergulhar nas histórias dos grandes
navegadores, viquingues, portugueses, ingleses e espanhóis que tinham sulcado
os mares do planeta volatilizando os mitos segundo os quais, chegadas a um
certo ponto, as águas marinhas começavam a ferver, abriam-se abismos e
apareciam monstros cujas fauces podiam engolir um barco inteiro. Contudo, entre
as aventuras ouvidas e as lidas, Roger sempre havia preferido escutar as da
boca do pai. O capitão Casement tinha uma voz quente, descrevia com rico
vocabulário e animação as florestas da Índia ou os rochedos de Khyber Pass, no
Afeganistão, onde a sua companhia de Dragões Ligeiros foi uma vez emboscada por
uma massa de enturbantados fanáticos que os bravos soldados ingleses
enfrentaram, primeiro a balázios, depois a baioneta, e, por fim, com punhais e
com mãos nuas, até os obrigarem a retirar-se derrotados. Mas não eram os feitos
de armas o que mais deslumbrava a imaginação do pequeno Roger, mas sim as
viagens, abrir caminhos por paisagens nunca pisadas pelo homem branco, as
proezas físicas de resistência, vencer os obstáculos da natureza. O seu pai era
agradável, mas severíssimo e não vacilava em açoitar os filhos quando se
portavam mal, mesmo Nina, a mulherzinha, pois assim se castigavam os erros no
Exército e ele tinha verificado que só aquela forma de castigo era eficaz.
Embora admirasse o pai, de quem
Roger verdadeiramente gostava era da mãe, aquela mulher esbelta que parecia
flutuar em vez de andar, de olhos e cabelos claros e cujas mãos, tão suaves, quando
se enredavam nos seus caracóis ou lhe acariciavam o corpo na hora do banho o
enchiam de felicidade. Uma das primeiras coisas que aprenderia foi, teria
cinco, seis anos?, que só podia correr a atirar-se para os braços da mãe quando
o capitão não estava por perto. Este, fiel à tradição puritana da sua família,
não era partidário de que as crianças crescessem com muitos mimos, pois isso
tornava-os moles para a luta pela vida. Diante do pai, Roger mantinha-se à distância
da pálida e delicada Anne Jephson. Mas quando aquele partia para se juntar aos
amigos no seu clube ou para dar um passeio, corria para ela, que o cobria de
beijos e carícias. Às vezes, Charles, Nina e Tom protestavam: gostas mais do
Roger que de nós. A mãe garantia-lhes que não, que gostava igualmente de todos,
só que Roger era muito pequeno e precisava de mais atenção e carinho que os mais
velhos.
Quando a mãe morreu, em 1873,
Roger tinha nove anos. Aprendera a nadar e ganhava todas as corridas com
meninos da sua idade e até mais velhos. Ao contrário de Nina, Charles e Tom,
que derramaram muitas lágrimas durante o velório e o enterro de Anne Jephson,
Roger não chorou nem uma única vez. Naqueles dias tétricos, o lar dos Casement
converteu-se numa capela funerária, cheia de gente vestida de luto, que falava
em voz baixa e abraçava o capitão Casement e as quatro crianças com caras
pesarosas, pronunciando palavras de pêsames. Durante muitos dias não conseguiu
pronunciar uma frase, como se tivesse ficado mudo. Respondia com movimentos de
cabeça ou gestos às perguntas e permanecia sério, cabisbaixo e com o olhar perdido,
até mesmo de noite no quarto às escuras, sem conseguir dormir. Desde então e
para o resto da sua vida, de quando em quando, nos seus sonhos, a figura de
Anne Jephson viria visitá-lo com aquele sorriso convidativo, abrindo-lhe os braços,
onde ele se ia encolher, sentindo-se protegido e feliz com aqueles dedos finos
na sua cabeça, nas suas costas, nas suas faces, uma sensação que parecia defendê-lo
das maldades do mundo.
Os irmãos depressa se
conformaram. E Roger também, aparentemente. Porque, embora tivesse recuperado a
fala, era um tema que ele nunca referia. Quando algum familiar lhe recordava a
mãe, emudecia e mantinha-se encerrado no seu mutismo até aquela pessoa mudar de
tema. Nas suas insónias, pressentia na escuridão, olhando para ele com tristeza,
o semblante da infortunada Anne Jephson. Quem não se conformou nem voltou a ser
o mesmo foi o capitão Roger Casement. Como não era efusivo e nem Roger nem os
irmãos o tinham visto alguma vez ser pródigo em gentilezas para com a mãe, as
quatro crianças ficaram surpreendidas com o cataclismo que o desaparecimento da
esposa significou para o pai. Ele, tão bem ataviado, andava agora vestido de
qualquer maneira, com a barba crescida, o sobrolho franzido e um olhar de
ressentimento como se os filhos tivessem a culpa da sua viuvez. Pouco tempo
depois da morte de Anne, decidiu deixar Dublin e despachou as quatro crianças para
o Ulster, para Magherintemple House, a casa de família, onde, a partir de então,
o tio-avô paterno John Casement e a sua esposa Charlotte se encarregariam da
educação dos quatro irmãos. O pai, como que a querer desinteressar-se deles,
foi viver a quarenta quilómetros dali, no Adair Arms Hotel de Ballymena, onde,
como às vezes o tio-avô John acabava por dizer, o capitão Casement, meio louco de
dor e solidão, dedicava os seus dias e noites ao espiritismo, tentando
comunicar com a mulher morta através de médiuns, cartas e bolas de cristal». In Mario
Vargas Llosa, O Sonho do Delta, 2010, Editora Quetzal, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-564-919-0.
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