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1888. Barcelona. Port Vell. Perto do
cais de Lazareto
«Depois
de esquadrinhar as sombras pela terceira vez, o velho praguejou entredentes. O
silêncio rodeava-o, um silêncio que só era perturbado pelo chapinhar da água
contra o casco. A chuva, açoitada pelo vento, caía em grandes bátegas sobre a
barca e encharcava a tolda e as caixas de tabaco armazenadas por baixo. Aquela
hora, quando a manhã começava a insinuar-se, a bruma envolvia Port Vell e o
cais, e as embarcações fundeadas e os edifícios dos arsenais eram apenas borrões;
mal se distinguia a linha da costa e cabotar tão perto dos paredões do porto
era muito arriscado. Mas ele já o fizera centenas de vezes, e voltaria sem
dúvida a fazê-lo outras tantas. Não era isso que o preocupava. O que o fazia sentir-se
como se tivesse lastro no estômago era a certeza de que naquela noite alguma
coisa ia correr muito mal. Levantou-se vento e o mar encrespou. Os olhos do
velho, rodeados por uma infinidade de rugas, perscrutaram a embarcação desde a
proa, onde o filho dormia, até à vela de algodão, bem presa ao mastro, que
começou a drapejar. O velho puxou o cabo com a perícia que a experiência dava e
depois de verificar, satisfeito, que o pano voltava a enfunar, amarrou-o à
abita de madeira. Cerrou as mãos e os dedos protegidos por luvas de lã
protestaram como cordas velhas. A humidade entranhava-se-lhe nos ossos,
tornando inúteis as pesadas roupas que vestia. Suspirou. Aquele trabalho
tornava-se-lhe cada vez mais pesado, em breve deixaria de poder manobrar a
barca. Na verdade, adivinhava que não chegaria a ver o fim do século, nem as
maravilhas que todos anunciavam, ainda que, quem queria saber daquelas malditas
máquinas? Que louco podia acreditar que aqueles artefactos barulhentos eram
melhores do que os braços de um homem? Cuspiu para a água e virou o leme uma
quarta.
Deixaram Montjuic a bombordo e a
cidade, até então invisível, foi surgindo pouco a pouco de entre a neblina. O
velho conduziu a embarcação para perto do cais do Lazareto, onde o esperavam
para descarregar, escondidos das vistas do castelo e dos vapores que àquela
hora começavam a cruzar o porto. A corrente empurrou-os para as rochas.
Agarrava a cana do leme para corrigir o rumo quando um movimento à superfície
lhe captou a atenção. Perto da doca a névoa era menos densa e conseguiu
distinguir o quebra-mar, salpicado de espuma A poucos metros, entre madeiras e
restos de aparelhos, flutuava um volume de grandes dimensões. No instante
seguinte, o mar cobriu-o e não voltou a emergir. O velho deu um estalo com a
língua e esperou. Não seria a primeira vez que um navio mercante perdia parte
da carga. Um golpe de sorte para os que a encontravam. O tempo passou e, de má
vontade, o velho começou a pensar que a imaginação lhe pregara uma partida.
Preparava-se para tirar a barca da corrente quando ouviu um chapinhar. O volume
reapareceu, dessa vez várias braças mais perto, a balouçar na ondulação. O
velho rasgou mais o sorriso, a mostrar os dentes enegrecidos, e rodou o leme. Ao
aproximar-se, verificou que se tratava de uma caixa de carvalho do tamanho de
uma barrica de vinho. Pelos selos gravados na madeira, deduziu que era francês.
As grossas cordas que a amarravam continuavam bem atadas, o que significava que
se mantinha estanque, um ponto muito importante: a mercadoria que continha não
estaria estragada pela água. Os franciús costumavam transportar porcelanas, tecidos
de qualidade e bebidas. Qualquer destas mercadorias proporcionaria um bom
lucro. Fixou o leme e olhou para o filho. Apa, levanta-te e pega no croque.
O
rapaz olhou para ele sem compreender até que avistou a grande caixa a boiar ao
lado da barca. Levantou-se aos tombos e procurou debaixo do banco. Depois de
afastar a rede de pesca e algumas cordas, pegou numa comprida vara que
terminava numa ponta de ferro com gancho. Seguindo as instruções do pai,
estendeu o croque até conseguir apanhar uma das cordas que amarravam a caixa. O
velho, munido de um croque mais pequeno, ajudava do outro lado. Pouco a pouco, arrimaram
a caixa ao costado e prepararam-se para içá-la para bordo. Vá. Com cuidado...
Santo Deus! Uma garra antropomórfica de dedos afilados agarrou o braço do velho,
que ficou a olhar, paralisado pela incredulidade, enquanto aquilo o puxava para
a água escura. Antes que pudesse reagir, uma onda fez balouçar a barca e a
fantasmagórica aparição desvaneceu-se diante dos seus olhos como se nunca
tivesse existido». In Jordi LLobregat, O Segredo de Versálio, 2014/2015, Planeta
Manuscrito, 2016, ISBN 978-989-657-874-9.
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PlanetaManuscrito/JDACT