sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O Segredo de Versálio. Jordi LLobregat. «Deixaram Montjuic a bombordo e a cidade, até então invisível, foi surgindo pouco a pouco de entre a neblina. O velho conduziu a embarcação para perto do cais do Lazareto»

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1888. Barcelona. Port Vell. Perto do cais de Lazareto
«Depois de esquadrinhar as sombras pela terceira vez, o velho praguejou entredentes. O silêncio rodeava-o, um silêncio que só era perturbado pelo chapinhar da água contra o casco. A chuva, açoitada pelo vento, caía em grandes bátegas sobre a barca e encharcava a tolda e as caixas de tabaco armazenadas por baixo. Aquela hora, quando a manhã começava a insinuar-se, a bruma envolvia Port Vell e o cais, e as embarcações fundeadas e os edifícios dos arsenais eram apenas borrões; mal se distinguia a linha da costa e cabotar tão perto dos paredões do porto era muito arriscado. Mas ele já o fizera centenas de vezes, e voltaria sem dúvida a fazê-lo outras tantas. Não era isso que o preocupava. O que o fazia sentir-se como se tivesse lastro no estômago era a certeza de que naquela noite alguma coisa ia correr muito mal. Levantou-se vento e o mar encrespou. Os olhos do velho, rodeados por uma infinidade de rugas, perscrutaram a embarcação desde a proa, onde o filho dormia, até à vela de algodão, bem presa ao mastro, que começou a drapejar. O velho puxou o cabo com a perícia que a experiência dava e depois de verificar, satisfeito, que o pano voltava a enfunar, amarrou-o à abita de madeira. Cerrou as mãos e os dedos protegidos por luvas de lã protestaram como cordas velhas. A humidade entranhava-se-lhe nos ossos, tornando inúteis as pesadas roupas que vestia. Suspirou. Aquele trabalho tornava-se-lhe cada vez mais pesado, em breve deixaria de poder manobrar a barca. Na verdade, adivinhava que não chegaria a ver o fim do século, nem as maravilhas que todos anunciavam, ainda que, quem queria saber daquelas malditas máquinas? Que louco podia acreditar que aqueles artefactos barulhentos eram melhores do que os braços de um homem? Cuspiu para a água e virou o leme uma quarta.
Deixaram Montjuic a bombordo e a cidade, até então invisível, foi surgindo pouco a pouco de entre a neblina. O velho conduziu a embarcação para perto do cais do Lazareto, onde o esperavam para descarregar, escondidos das vistas do castelo e dos vapores que àquela hora começavam a cruzar o porto. A corrente empurrou-os para as rochas. Agarrava a cana do leme para corrigir o rumo quando um movimento à superfície lhe captou a atenção. Perto da doca a névoa era menos densa e conseguiu distinguir o quebra-mar, salpicado de espuma A poucos metros, entre madeiras e restos de aparelhos, flutuava um volume de grandes dimensões. No instante seguinte, o mar cobriu-o e não voltou a emergir. O velho deu um estalo com a língua e esperou. Não seria a primeira vez que um navio mercante perdia parte da carga. Um golpe de sorte para os que a encontravam. O tempo passou e, de má vontade, o velho começou a pensar que a imaginação lhe pregara uma partida. Preparava-se para tirar a barca da corrente quando ouviu um chapinhar. O volume reapareceu, dessa vez várias braças mais perto, a balouçar na ondulação. O velho rasgou mais o sorriso, a mostrar os dentes enegrecidos, e rodou o leme. Ao aproximar-se, verificou que se tratava de uma caixa de carvalho do tamanho de uma barrica de vinho. Pelos selos gravados na madeira, deduziu que era francês. As grossas cordas que a amarravam continuavam bem atadas, o que significava que se mantinha estanque, um ponto muito importante: a mercadoria que continha não estaria estragada pela água. Os franciús costumavam transportar porcelanas, tecidos de qualidade e bebidas. Qualquer destas mercadorias proporcionaria um bom lucro. Fixou o leme e olhou para o filho. Apa, levanta-te e pega no croque.
O rapaz olhou para ele sem compreender até que avistou a grande caixa a boiar ao lado da barca. Levantou-se aos tombos e procurou debaixo do banco. Depois de afastar a rede de pesca e algumas cordas, pegou numa comprida vara que terminava numa ponta de ferro com gancho. Seguindo as instruções do pai, estendeu o croque até conseguir apanhar uma das cordas que amarravam a caixa. O velho, munido de um croque mais pequeno, ajudava do outro lado. Pouco a pouco, arrimaram a caixa ao costado e prepararam-se para içá-la para bordo. Vá. Com cuidado... Santo Deus! Uma garra antropomórfica de dedos afilados agarrou o braço do velho, que ficou a olhar, paralisado pela incredulidade, enquanto aquilo o puxava para a água escura. Antes que pudesse reagir, uma onda fez balouçar a barca e a fantasmagórica aparição desvaneceu-se diante dos seus olhos como se nunca tivesse existido». In Jordi LLobregat, O Segredo de Versálio, 2014/2015, Planeta Manuscrito, 2016, ISBN 978-989-657-874-9.

Cortesia de PlanetaManuscrito/JDACT