sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Marina. Carlos Ruiz Zafón. «Abri os olhos. Um rosto sorria para mim. Olhos brilhantes e amarelos cintilavam, sem vida. Olhos de vidro num rosto esculpido em madeira laqueada»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Você primeiro, convidou Marina. Enchendo-me de coragem, penetrei no matagal. Sem nenhum aviso prévio, Marina pegou na minha mão e seguiu atrás de mim. Senti os meus passos afundando naquele manto de matéria vegetal. A imagem de um emaranhado de serpentes obscuras com olhos escarlates passou-me pela cabeça. Evitando a selva de galhos hostis que arranhavam a pele, chegámos a uma clareira bem na frente da estufa. Lá chegando, Marina largou a minha mão para contemplar a sinistra construção. A hera estendia uma teia de aranha sobre toda a estrutura. A estufa parecia um palácio sepultado nas profundezas de um pântano. Acho que ela nos despistou, concluí. Ninguém coloca os pés nesse lugar há anos. Mesmo a contragosto, Marina me deu razão. Deu uma última olhada para a estufa com um ar de decepção. As derrotas caem melhor em silêncio, pensei comigo. Venha, vamos sair daqui, sugeri, oferecendo a mão na esperança de que a pegasse de novo para atravessar o matagal. Marina ignorou-a e, franzindo a testa, afastou-se para rodear a estufa. Suspirei e fui atrás dela sem muita vontade. Aquela menina era mais teimosa do que uma mula.
Marina, comecei, aqui não... Encontrei-a na parte traseira da estufa, diante do que parecia ser uma entrada. Ela olhou para mim e ergueu a mão até à vidraça. Limpou a sujeira que cobria uma inscrição no vidro. Reconheci a mesma borboleta negra que marcava o túmulo anónimo do cemitério. Marina pousou a mão sobre ela. A porta cedeu lentamente. Pude sentir o hálito infecto e adocicado que vinha lá de dentro. Era um fedor de pântanos e poços envenenados. Desobedecendo ao pouco de bom senso que ainda restava na minha cabeça, penetrei naquelas trevas.

Um cheiro fantasmagórico de perfume e madeira velha flutuava nas I sombras. O chão, de terra fresca, transpirava humidade. Espirais de vapor dançavam até a cúpula de vidro. A condensação daquelas nuvens sangrava gotas invisíveis na escuridão. Um som estranho palpitava além do meu campo de visão. Um murmúrio metálico como se fosse uma persiana agitada. Marina avançava lentamente. A temperatura era morna, húmida. Notei que a minha roupa estava grudada na pele e que uma película de suor brotava na minha testa. Virei para Marina e comprovei, a meia-luz, que o mesmo estava acontecendo com ela. Aquele murmúrio sobrenatural continuava a agitar-se nas sombras. Parecia vir de todos os lados. O que será isso?, sussurrou Marina, com uma ponta de medo na voz.
Sacudi os ombros. Continuámos a penetrar na estufa. Parámos no local para onde convergiam os feixes de luz que se filtravam do tecto. Marina ia dizer alguma coisa quando ouvimos de novo aquele matraquear sinistro. Perto. A menos de 2 metros. Imediatamente acima de nossas cabeças. Trocamos um olhar mudo e, lentamente, levantámos os olhos para a área mergulhada na sombra do tecto da estufa. Senti a mão de Marina fechando-se sobre a minha com força. Tremia. Tremíamos. Estávamos cercados. Várias silhuetas angulosas pendiam do nada. Identifiquei uma dúzia, talvez mais. Pernas, braços, mãos e olhos brilhando nas trevas. Um rebanho de corpos inertes se balançava sobre nós como marionetes infernais. Ao roçar uns com os outros, produziam aquele ruído metálico. Demos alguns passos para trás e, antes que pudéssemos perceber o que acontecia, o tornozelo de Marina ficou preso numa alavanca ligada a um sistema de roldanas. A alavanca cedeu. Num décimo de segundo, aquele exército de figuras congeladas despenhou-se no vazio. Saltei para cobrir Marina e ambos caímos de bruços. Ouvi o eco de um tranco violento e o rugido da velha estrutura de vidro vibrando. Tive medo que as placas de vidro quebrassem e uma chuva de lâminas transparentes nos pregasse no chão. Naquele momento senti um contacto frio na nuca. Dedos.
Abri os olhos. Um rosto sorria para mim. Olhos brilhantes e amarelos cintilavam, sem vida. Olhos de vidro num rosto esculpido em madeira laqueada. Naquele instante, ouvi Marina sufocar um grito ao meu lado. São bonecos, disse, quase sem fôlego. Levantámos para verificar a verdadeira natureza daqueles seres. Marionetes. Figuras de madeira, metal e cerâmica, suspensas pelos mil fios pendentes de uma treliça. A alavanca, accionada por Marina sem querer, tinha destravado o mecanismo de roldanas que sustentava os bonecos, que despencaram e pararam a três palmos do chão, balançando como um macabro ballet de enforcados. Que droga é essa?, exclamou Marina». In Carlos Ruiz Zafón, Marina, 1999, Planeta Editora, 2010, ISBN 978-989-657-119.1

Cortesia de PlanetaE/JDACT