jdact
A morte do Inquisidor-Geral
«1 de Janeiro de 1653. O bispo Francisco
Castro está a morrer na sua câmara, deitado em leito de pau-santo armado com
quatro cortinas e céu de damasco verde e branco. Assistem-no três médicos e
duas dezenas de fâmulos. Está acamado e sangrado. Na câmara, um Ecce Homo
e as imagens de S. Pedro Mártir e de Santa Catarina de Sena. Do guarda-roupa, constituído
por centenas de peças, vestimentas multicores, camisas, meias de seda, ceroulas,
roupões, capas, sotainas com cauda e sem cauda, barretes, chapéus, escolheu, para
a última viagem, uma vestimenta roxa de chamalote de ouro guarnecida de passamanes
de ouro com estola e manípulo. À volta do pescoço, a cadeia de ouro que sustém a
cruz peitoral também de ouro: no dedo o anel grande de ouro dos pontificais com
cinco pedras em cruz, uma no meio, branca, duas verdes e duas azuis. Por baixo da
roupa, colada ao corpo, traz ainda urna cruz de ouro niquelada com poderes,
concedidos pelo papa Gregório XV, de tirar uma alma do purgatório todas as vezes
que com ela se rezar a missa.
O Inquisidor-Geral está a morrer ao
Rossio, nos aposentos em que vive, situados nos Paços do Santo Ofício que Mateus
Couto, arquitecto das Inquisições deste reino, remodelara por mandado do
Ilustríssimo e Reverendíssimo senhor Francisco Castro, bispo inquisidor-geral e
do Conselho de sua Majestade. As instalações são amplas, as paredes grossas e forradas
de alcatifas, mas não abafam de todo o marulhar do povoléu do Rossio nem os gemidos
dos cárceres. Na capela privativa inventariaram-se centenas de objectos:
alfaias de ouro e prata dourada, toalhas, frontais, panos de damasco, luvas,
albas, sobrepelizes, vestimentas da Índia, de Castela e de Holanda. Nos aposentos
pessoais, além da câmara onde agoniza, dispõe de um lavatório e nele um cântaro
de cobre para aquecer a água, uma bacia de latão com seu jarro coberto para Sua
Ilustríssima lavar as mãos pela manhã, uma bacia de latão para lavar os pés, uma
bacia de barbear, um cuspidor de prata». In António Borges Coelho, A Morte do
Inquisidor-Geral, Editorial Caminho, 2007, ISBN 978-972-211-888-0.
Cortesia de ECaminho/JDACT