terça-feira, 30 de novembro de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Enterrei isso bem fundo dentro de mim e nunca falei a respeito. Eu agora suava. Esses pensamentos se acumularam em minha mente, ao mesmo tempo que os passos de padre Besian ressoavam acima de minha cabeça»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) Ao apanhar a comida, minha sensação de intranquilidade aumentou. Porque Ardelia ficou tão transtornada e porque o pai queria que eu permanecesse no meu quarto? Não me importei muito com isso, em parte porque ele impôs o mesmo a Lorena, mas também porque fiquei contente por não ter de me encontrar com o padre Besian. A ideia de me confessar com ele começava a me perturbar. Não muito tempo depois de ter me recolhido para dormir, ouvi o rangido de tábuas no soalho acima da minha cabeça. O padre Besian devia estar se preparando para dormir. Se eu tivesse de me confessar com ele, o que deveria dizer? Eu detestava Lorena. Isso era um pecado contra a tolerância. Eu contara isso numa confissão ao nosso sacerdote, o padre Andrés, e ele dissera que era por causa da grande dor que eu ainda carregava pela perda de minha mãe. Esses pensamentos ruins eram sentimentos naturais, mas eu precisava superá-los. Ele me garantiu que desapareceriam, principalmente depois que Lorena tivesse um bebê, o que, sem dúvida, aconteceria em pouco tempo. Então eu amaria essa criança e passaria a aceitar Lorena melhor. Eu dissera a Serafina, mulher de Garci, que desgostava muito de Lorena, e ela, com a cabeça curvada sobre o fogão, murmurou: Não tanto quanto eu. Isso me fez rir, mas sabia que não era a reacção de que a mãe teria gostado, e eu tentava viver como ela gostaria que eu vivesse. Quando meus ânimos estavam baixos e esses pensamentos ameaçavam-me dominar, eu ia ao convento-hospital de minha tia Beatriz e procurava um bálsamo para a minha alma.

Zarita, disse-me ela, você não é a sua mãe. Ela era uma santa mulher, mais santa do que eu jamais consegui ser, e sou freira. Embora esta ordem que fundei não seja reconhecida por qualquer decreto formal do papa, fiz votos a mim mesma e a Deus para preservar certas virtudes. Mas saiba disto: eu não fui a criança boa de minha família. Na minha juventude, na corte, levei uma vida mais desenfreada do que era julgado apropriado para uma garota daquela época. Minha irmã, sua mãe, era quem tinha a verdadeira bondade dentro de si. Existem poucas pessoas capazes de rivalizar com ela. Tia Beatriz puxou-me para perto dela, alisou meu cabelo e me tranquilizou. Tem de ser você mesma, Zarita. Não pode ser outra pessoa. Além disso, porém, pesando em minha consciência havia um outro pecado, bem maior, que eu não havia confessado a ninguém: a ocasião em que virei o rosto para Deus porque Ele não poupara a vida de minha mãe e de meu irmãozinho bebê.

Enterrei isso bem fundo dentro de mim e nunca falei a respeito. Eu agora suava. Esses pensamentos se acumularam em minha mente, ao mesmo tempo que os passos de padre Besian ressoavam acima de minha cabeça. Havia em mim uma forte convicção de que, se eu ocultasse algo desse padre numa confissão, ele saberia. Resolvi evitar confessar-me com ele. Fracamente, ouvi o entoar de preces enquanto ele recitava seu ofício nocturno, e mergulhei num sono agitado.

Zarita

Na manhã seguinte, Lorena e eu estávamos tranquilamente tomando o pequeno-almoço na companhia do padre Besian quando meu pai entrou a passos largos na sala. Quero falar com você! Ele se dirigiu rispidamente ao padre. Em particular, acrescentou. O padre Besian olhou-o atentamente e disse: Não há nada que não possa ser falado na frente de sua esposa e de sua filha. Você ordenou que estes panfletos fossem distribuídos e pregados por toda a minha cidade? Meu pai abriu um pedaço de papel que trazia amassado na mão e o entregou ao sacerdote. O padre Besian pegou no papel, colocou-o sobre a mesa e alisou-o calmamente. Sim, ordenei, disse ele. Inclinei a cabeça para tentar ler as palavras que estavam escritas no papel. Você não tem o direito de convocar as pessoas desta cidade para dar informações umas das outras dessa maneira. A voz do pai tremia de raiva. Pelo contrário, retrucou o padre Besian, o Chefe Inquisidor, Tomás Torquemada, garante a mim, como agente da Santa Inquisição (maldita), o direito de fazer isso. É vital que erradiquemos a heresia e descubramos se algum dos proclamados convertidos do judaísmo ainda mantém suas antigas práticas religiosas. Descobri que há judeus e muçulmanos vivendo nesta cidade. Suas influências são potencialmente corruptoras. Pela minha experiência, bons resultados são obtidos quando apelamos à população para ficar vigilante e servir como testemunhas. Há meia dúzia de famílias judias confinadas na parte mais pobre da cidade, perto das docas, e alguns poucos pescadores muçulmanos que amarram seus sambucos no píer mais distante. Eles nunca nos causaram problemas. Eu sou o magistrado desta cidade, de forma que você deveria ter falado primeiro comigo antes de divulgar proclamações que podem incitar agitação. O padre Besian deu um gole na sua xícara de leite morno e então a pousou diante de si. A única agitação que se seguirá às minhas instruções será nos corações dos incrédulos». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião, 

Beije-me onde o Sol não Alcança. Mary del Priore. «Corri para a pilha de Le Miroir Parisien que o trem traz regularmente até Piraí. Vi a crónica: mortes na aristocracia. Os pequeninos filhos da rainha Maria Cristina de Espanha…»

Cortesia de wikipedia e jdact

A bordo do Équateur, Novembro de 1864

«(…) Informaram que o tio de Luís César, certo marquês de Caxias, acaba de ser indicado comandante-geral das Forças Brasileiras e que se prepara uma guerra contra o pequeno Paraguai. O presidente Lopez quer uma saída para o mar e ameaça constantemente Argentina, Brasil e Uruguai. Os três uniram suas forças meses atrás por meio de um acordo conhecido como a Tríplice Aliança. Antes, Lopez já aprisionara um vapor brasileiro e invadira uma longínqua província, certa Mato Grosso: pântanos e índios. Saberei mais quando chegar a terra. Há dez anos, a França assinava o Tratado de Paris, pondo um fim à guerra da Crimeia que fez a fortuna do pai e do nosso tio Garfinkel. Não sou supersticioso, mas gostaria que essa guerra também fizesse a minha. Luís César vai nos apresentar à família. Tudo indica que se trata de gente muito abastada: barões do café. Só não acredito em antecedentes aristocráticos. Os brasileiros gostam de inventar que têm sangue azul. Uma noiva é tudo de que preciso. Alguém que me abra portas. Eu sei, maman. Sangue, património, propriedades. Tudo isso conta. Talvez haja algum problema com a religião. Veremos…

Por fim, peço-lhe: não estrague a educação de Eugène com mimos. Se o pai estivesse vivo não o deixaria tão ocioso. Leve-o para fazer equitação no Bois de Boulogne. A Casa Michaux vende bicicletas em madeira. Aos dezasseis anos, ele já pode conduzi-los. Está tornando-se um jovem balofo e preguiçoso. Soube que já faz apostas entre os colegas do colégio. Será isso defeito de nosso sangue? E, insisto, não vá ao Palais-Royal aos domingos. É dia em que os bilhetes são doados. Não fica bem. Agora o barco dança sobre as ondas e o rumor das vagas golpeia o casco. Vou apagar a vela. Escreverei quando chegar ao Rio de Janeiro. Hoje atravessamos baías e estuários cujos nomes custo a memorizar: Goytacazes, Quissamã, Carapebus, Macaé. Sonharei com tais terras. Bonne nuit, maman. Seu filho, Maurice.

 

1864

Esta manhã, a mãe deu-me um terço de prata. Pediu-me que orasse pelo pai. Quase um ano de luto e ela continua muito abatida. Toda de negro, me assusta quando surge de supetão. Caía uma chuva enquanto eu escrevia. Depois, nada fiz. Entediei-me. Cruzei o terreiro de café e fui até ao hospital dos pretos ajudar tia Maria Gata. Ela perdeu um dedo no monjolo, tem olhos amarelos, e, conhecedora de ervas, cura cambras amarrando barbante vermelho na canela da gente. Gosto de ficar lá, vendo a negra fazer remédio para a botica dos escravos e ouvindo o ranger dos carros de boi que vêm e vão. Juntas, preparamos água da rainha da Hungria com uma tintura de alecrim e outra de lavanda. Tem que macerar um mês, resmungou ela com voz grossa e os beiços tremendo. Contou-me que a receita tinha sido oferecida a certa dona Isabela, por um anjo disfarçado de ermitão. Velha, ela quase não podia andar. Tomou a poção, ficou boa, jovem, linda e o rei da Hungria se casou com ela. Tia Maria Gata sabe tudo. Às quatro horas fui passear, esperando que o dia se acabe. Ele me pareceu bem longo. Comecei a fiar depois do jantar. A mãe leu em voz alta a carta do primo Luís César e recordou que sua mãe, Emiliana, morreu menina em trabalho de parto. Tenho pavor de ter filhos e morrer tão bestamente. Ele chegou de Paris com a esposa russa! Russa, não. Ela é parisiense, mas de família russa. Riquíssimos, dizem. Casa perto do Arco do Triunfo, carruagem e criados de libré.

Corri para a pilha de Le Miroir Parisien que o trem traz regularmente até Piraí. Vi a crónica: mortes na aristocracia. Os pequeninos filhos da rainha Maria Cristina de Espanha, a princesa Czartoryska, o duque de La Rochefoucault. A loja mais frequentada é a Maison Giroux, de onde saem candelabros, móveis e quadros de nomes célebres da arte moderna, seja lá o que isso queira dizer. A moda é a popelina de Irlanda e a lã de cabra com impressão de vasos etruscos. Na Opéra-Comique levam Lara. Céus! Nada terei para conversar com ela. E sobre a Rússia? Pouco sei. Um czar, cidades de sonho sobre planícies geladas, trenós e neve que só conheço de quadros! Primo Luís César explicou que tem uma cunhada, Hélène, casada com um filho do general Magnan, gente muito ligada ao imperador Napoleão III. Luís Bonaparte valeu-se da sua energia de militar para, com a ajuda de um partido, dar o golpe de Estado. Dizem que o general colaborou na revolução governamental, da conspiração à execução. O 2 de Dezembro de 1851, foi obra sua. E na repressão contra a dissolução da Assembleia não poupou ninguém: deixou os resistentes organizarem barricadas, que esmagou de um único golpe. Parece que não gastou nem duas horas no massacre. Na Corte francesa há muitos aristocratas russos. Hélène e Vera são lindas!, insiste a mãe. Têm rostos de madona, mais parecem bonecas de porcelana de Saxe. Não é como o meu, magro, em que saltam olhos de ameixa em calda. Elas, louras, eu, morena. Com essa cara, nunca chegarei a Paris. Saímos ao jardim à noite. Encontramos um vaga-lume. A mãe tinha dor de garganta. Cantei um pouco e a fiz rir». In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

O Concelho de Óbidos na Idade Média Manuela Santos Silva. «O grande concelho de Óbidos conheceria a sua primeira grande cisão em 1371 com a formação do Concelho do Cadaval. Mas para além deste novo município também a geografia política periférica e interna era mais complicada…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«O desafio de descrever como era o Concelho de Óbidos na Idade Média era, de facto, o único que me estava a faltar. Em 1987 escrevera sobre a vila de Óbidos Medieval, sobretudo no tocante às suas Estruturas Urbanas e Administração Concelhia. Dez anos mais tarde defendi na Universidade de Lisboa uma dissertação defendendo a existência de uma Região de Óbidos na Baixa Idade Média, que funcionava com base na vila régia e incorporava os concelhos medievais de Lourinhã, Atouguia, Vila Verde dos Francos e, naturalmente o Cadaval, transformado em concelho autónomo nos finais do século XIV. Faltava-me, de facto, desenhar os contornos deste grande concelho do período pós-Reconquista até finais do século XV. A área ocupada pelo Concelho de Óbidos nesta época era bastante mais extensa do que a actual. À excepção do contacto com a hoje chamada Concha de São Martinho, e do efectuado através da Lagoa de Óbidos, não tinha, porém, ligação directa ao mar. E não era fácil chegar a Salir do Porto e a Atouguia para comerciar, mas, sobretudo, convencer as autoridades financeiras e eclesiásticas, para além dos pescadores locais, a acederem ao abastecimento do concelho com o qual procuravam ter uma relação distante. O grande concelho de Óbidos conheceria a sua primeira grande cisão em 1371 com a formação do Concelho do Cadaval. Mas para além deste novo município também a geografia política periférica e interna era mais complicada do que pode parecer à primeira vista, pois escapavam à jurisdição do concelho vastas áreas florestais, fluviais e até povoações inteiras. O actual concelho do Bombarral era uma fértil área em larga medida aproveitada pelo Mosteiro de Alcobaça que, também, a Norte, guerreava com o concelho, as Rainhas e o próprio Rei pelo aproveitamento de zonas de maior fertilidade e produtividade. Nunca deixando de estar sujeito à jurisdição da Coroa do Reino de Portugal, Óbidos conheceu também a faceta de Senhorio de várias Rainhas, de todas, aliás, a partir dos finais do século XIV. Para o Rei era também um sustentáculo importante; o símbolo da autoridade unificadora real no Oeste estremenho». In Prólogo

 

Introdução

«Não é tarefa fácil tentar buscar as origens do concelho de Óbidos. Aliás, se quiséssemos levar a nossa ânsia de rigor ao extremo não aventaríamos qualquer hipótese, nem tentaríamos apresentar qualquer data nem explicação quer para a formação da circunscrição territorial quer para o nascimento dos principais agregados populacionais que a compõem, tais são as dúvidas que subsistem. E apesar de partilhar um espaço e uma História com outras povoações, nem por isso as nossas dificuldades em fazer afirmações definitivas são menores. A atitude mais cómoda a tomar seria sem dúvida proceder à citação pura e simples dos grandes mestres no que ao passado muçulmano e ao período de Reconquista da Estremadura diz respeito, apresentar - embora apenas a título de curiosidade, algumas conjecturas lendárias acerca da tomada dos castelos e povoações estremenhas, e aproveitar sem discussão a opinião de Ruy Azevedo que estabelece a continuidade a nível físico e administrativo entre as sedes e territórios correspondentes da antiga província muçulmana de Balata e os novos concelhos cristãos surgidos na Estremadura após 1147. Segundo o reputado diplomatista e historiador, a explicação para o fenómeno da constituição, logo nos anos subsequentes à conquista das cidades e praças da linha do Tejo, de diversos concelhos na faixa litoral da Estremadura, precisamente com sede em Santarém, Lisboa, Óbidos, Torres Vedras, Alenquer e Sintra, encontrar-se-ia no facto de estas povoações representarem, já no período anterior, os principais pontos de referência da organização administrativa local e, presumivelmente, de agremiação humana.

Esta opinião torna-se tanto mais atraente quanto nos fornece uma hipótese para um facto reconhecido para o qual ainda não foi encontrada explicação segura. Segundo Ruy Azevedo, a persistência dessas unidades e de suas divisórias tradicionais explica-nos a falta completa de diplomas régios sobre a sua criação e de respectivos estatutos de orgânica local e limites, expedidos nas primeiras décadas que se seguiram à reconquista. Na realidade, diversos historiadores têm já notado com estranheza a falta de interesse por parte dos monarcas portugueses em atribuir prontamente forais às povoações estremenhas. Entre a sua conquista e o reconhecimento jurídico através de uma carta de foral decorreram quase sempre várias décadas se exceptuarmos o praticamente único caso de Sintra, agraciado com um foral logo sete anos após a sua tomada pelo exército cristão. Aparentemente a questão do povoamento rápido da região não preocupava o monarca. A defesa da Estremadura não seria uma questão prioritária em 1147, ou as condições naturais do território teriam sido suficientes para atrair povoadores sem necessidade de outorga de privilégios adjuvantes? Ou a explicação será antes outra?

Os dados que possuímos para a Estremadura da segunda metade do século XII parecem de facto comprovar que a ausência de documentos jurídicos escritos reconhecendo as agremiações municipais não foi de modo algum desmotivadora, pois as povoações que nomeámos e as aldeias das áreas envolventes não tardaram em fornecer dados inequívocos de uma grande procura por parte de novos habitantes. A multiplicação das paróquias urbanas e a construção de perímetros amuralhados de dimensões consideráveis, parecem demonstrá-lo de forma dificilmente contrariável. Curiosamente, talvez possamos apontar como forais precoces para esta região dois diplomas outorgados por particulares, mas confirmados pelo rei, destinados aos povoadores precisamente de duas póvoas litorais cujas aspereza do terreno e demasiada proximidade do mar, talvez não fossem, na altura, muito convidativas a quem procurava segurança e sobrevivência fáceis. Estamos a referir-nos aos forais concedidos pelos donatários Francos da Atouguia e da Lourinhã aos seus conterrâneos e a outros povoadores de outras nacionalidades, ao que se pensa, pelo menos num dos casos, em 1167». In Manuela Santos Silva, O Concelho de Óbidos na Idade Média, Faculdade Letras da Universidade de Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2008, Wikipedia.

Cortesia de FLUL/CHULisboa/JDACT

 JDACT, Manuela Santos Silva, Cultura e Conhecimento,

Lucrécia Borgia. Jean Plaidy. «Lucrécia sentiu uma ponta de inveja. Todos estariam dizendo: essa Giulia Farnese é mais bonita do que Lucrécia. A jovem ajoelhou-se diante de Adriana e chamou-a de mãe…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Monte Giordano

«(…) Orsino estava de pé ao lado de sua mãe. Adriana falara seriamente com ele sobre o seu dever, e o pobre Orsino estava mais pálido do que nunca no seu traje preto espanhol, e não parecia nada um futuro marido; seu estrabismo estava mais aflitivo do que nunca; nos momentos de tensão, ele sempre parecia mais pronunciado, e o frio olhar de sua mãe estava sempre repreendendo-o. Lucrécia também estava de preto, mas no seu vestido havia bordados em ouro e prata. Ela preferia que nem sempre eles tivessem de seguir os costumes espanhóis. Os espanhóis gostavam muito do preto para todas as ocasiões cerimoniosas, e Lucrécia adorava o escarlate vivo e em especial o tom de azul-escuro que fazia com que os seus cabelos parecessem mais dourados do que nunca. Mas o preto fazia um belo contraste com os seus olhos claros e seus cabelos louros, de modo que quanto a isso ela se achava afortunada. E enquanto ela esperava, Giulia Farnese entrou no salão. O irmão, Alessandro, um jovem de seus vinte anos, a levara. Ele era orgulhoso, tinha uma aparência distinta, e estava esplendidamente vestido; mas foi Giulia que atraiu a atenção de Lucrécia e de todos os que estavam ali reunidos, porque era bonita, e seus cabelos eram tão dourados quanto os de Lucrécia. Estava vestida à moda italiana, numa túnica azul e dourada, e parecia uma princesa de uma lenda e bonita demais para aquele clã sombrio dos Orsini.

Lucrécia sentiu uma ponta de inveja. Todos estariam dizendo: essa Giulia Farnese é mais bonita do que Lucrécia. A jovem ajoelhou-se diante de Adriana e chamou-a de mãe. Quando Orsino foi empurrado para a frente, ele caminhou desajeitadamente e foi titubeante e sem graça na saudação que fez. Lucrécia observou o adorável rosto à procura de um sinal da repulsa que sem dúvida a jovem devia estar sentindo, e esqueceu-se da inveja ao ter pena de Giulia. Mas Giulia não demonstrou emoção alguma. Foi recatada e graciosa, tudo o que se esperava dela. As duas ficaram amigas logo. Giulia era vivaz, bem-informada, e muito pronta a prestar atenção a Lucrécia quando não havia homens por perto. Giulia disse a Lucrécia que estava com quase quinze anos. Lucrécia ainda não completara dez; e aqueles anos a mais davam a Giulia uma grande vantagem. Ela era mais frívola do que Lucrécia e não estava tão disposta a aprender, nem tão ansiosa por agradar. Quando ficaram a sós, ela disse a Lucrécia que achava a senhora Adriana muito rigorosa e solene. A senhora Adriana é uma mulher muito boa, insistiu Lucrécia. Eu não gosto de mulheres boas, disse Giulia, soltando uma gargalhada. Será que é porque elas fazem com que todas nós nos sintamos muito más?, sugeriu Lucrécia. Eu prefiro ser má do que boa, disse Giulia, com uma risada. Lucrécia voltou a cabeça para trás e olhou por cima do ombro para a imagem da Virgem com o Menino Jesus, à frente da qual havia uma lamparina acesa. Oh, disse Giulia, rindo, há muito tempo para se arrepender. O arrependimento é para gente velha.

Há algumas freiras jovens no convento de San Sisto, disse Lucrécia. Aquilo fez com que Giulia soltasse uma gargalhada. Eu não fui feita para ser freira. Nem você. Ora, olhe para você! Veja como é bonita..., e vai ficar ainda mais bonita. Espere até ter a idade que eu tenho. Talvez então, Lucrécia, você fique tão bonita quanto eu e vá ter amantes, muitos amantes. Era desse tipo de conversa que Lucrécia gostava. Trazia ecos de um passado de que ela não conseguia lembrar-se. Fazia quatro anos desde que ela deixara a animação da casa de sua mãe para ir para a rígida etiqueta e a depressão espanhola de Monte Giordano. Giulia mostrou a Lucrécia como caminhar com um andar sedutor, como dar brilho aos lábios e como dançar. Giulia possuía conhecimentos secretos e permitia que Lucrécia a provocasse para revelá-los.

Lucrécia estava um tanto preocupada com Giulia; tinha medo de que se Adriana descobrisse o que ela era na realidade a mandasse embora e ela, Lucrécia, perdesse aquela emocionante companheira. Elas não deviam deixar que Adriana visse o carmim nos seus lábios. Não deviam aparecer a ela com os cabelos soltos no penteado que Giulia arrumara. Giulia nunca deveria usar nenhum dos vestidos estonteantes mas ousados que trouxera consigo. Giulia soltava risadinhas e tentava ficar cerimoniosa diante da sogra em perspectiva. Orsino nunca as perturbava, e Lucrécia percebeu que ele parecia ter mais medo da noiva do que a noiva dele. Giulia tinha uma natureza radiosa; disse a Lucrécia que saberia como lidar com Orsino quando chegasse a hora. Estava claro que todos os vestidos bem-decotados, a atenção à aparência que parecia absorver Giulia, não eram para Orsino. Lucrécia achava que Giulia devia ser muito depravada. Mas eu acredito, dizia ela para si mesma, que gosto mais de gente depravada do que de gente bem-comportada. Eu ficaria desolada se Giulia fosse embora, mas não me importaria muito se a senhora Adriana fosse». In Jean Plaidy, Lucrécia Borgia, Edição Record, 1996, ISBN 978-850-104-410-5.

 

Cortesia de ERecord/JDACT

 

JDACT, Jean Plaidy, Itália, Literatura,

domingo, 28 de novembro de 2021

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Já a bordo, da amurada olho a multidão que acena com lenços. Boa viagem! Que Deus vos acompanhe! Tende cuidado convosco!, é a voz forte e timbrada do padre Bonifácio que vem lá de baixo…»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) Dom frei João Soares entregava-me, para a guardiania da Terra Santa, trinta moedas de ouro em memória dos trinta dinheiros de Judas. Em breve farei também minha peregrinação e visitar-vos-ei em Jerusalém. O arcebispo de Braga, dom frei Bartolomeu dos Mártires, também estava, ao pé de frei Bonifácio de Aragusa. Que também ele partia, dizia-me abraçando-me, mas em sentido contrário, caminho da sua diocese. O seu rebanho, as suas ovelhas, compreendia? Já a bordo, da amurada olho a multidão que acena com lenços. Boa viagem! Que Deus vos acompanhe! Tende cuidado convosco!, é a voz forte e timbrada do padre Bonifácio que vem lá de baixo, do cais. Entre as muitas cabeças, vislumbro o olhar curioso de Joseph, é dia de Santa Bárbara, quatro de Dezembro de 1562, uma sexta-feira ao romper da alva.

 

A Tempestade

Cá vamos!, murmurou emocionado frei Zedilho, o rosário de grandes camândulas entre os dedos. Estávamos debruçados na amurada apinhada de passageiros e rodeados dos seis irmãos franciscanos que se haviam atrasado e tinham embarcado connosco. A terra começava a alongar-se, a fugir, a perder a nitidez de cores e formas, a tornar-se uma diluída mancha inflada. Era todavia a paisagem interior que me ocupava. Ao partir, em vez de sentir saudades de uma terra que não era a minha e que se afastava e esbatia nas brumas do amanhecer, apurava os olhos da esperança na expectativa de ver aproximar-se finalmente, vindo dos nevoeiros dos caminhos desconhecidos, esse algo indefinido de que eu tinha uma necessidade esfomeada desde que me conhecia. Cá vamos!, sussurrei também. Soprava um próspero vento de poente e a nau, grande e formosa, chamada Sanuda, sulcava as ondas com rapidez e leveza. Assim passamos a Istria quase toda, mas quando começamos a costear a Dalmácia acudiu-nos vento do sudoeste, tão áspero e forte que fomos constrangidos a procurar abrigo. Fizemo-lo num lugar de nome Cabeça de São Pedro, do lado da Istria, Albânia, Grécia. No Adriático são pouquíssimos, no espaço de duzentas léguas, os portos que se podem tomar da parte da Itália, apenas Ancona, Brundísio e Otranto oferecem segurança, mas ainda assim as naus só os buscam quando têm neles que negociar. O vento ia em crescimento, tornava-se ciclónico quando a noite caiu. Embrulhado na minha manta, sentia-o zunir pelas frinchas, assobiar nas enxárcias. Zimbrava o barco da popa à proa, rangendo e guinchando. Principiei a sentir-me agoniado. Levantei-me, saí do meu camarote aos apalpões, tropeçando aqui e ali nos colchões dos companheiros de viagem que dormiam na coberta. Subi as escadas que levavam ao convés: precisava de alijar carga. Cá fora o vento fustigava e era necessário arrimar-me bem às paredes, ao que encontrava, para não ser arrastado. Estava escuro, mas a espaços as nuvens que doidejavam no céu numa correria infrene deixavam lampejar uns clarões de luar. O vomito assomava-me à garganta, cheguei-me à amurada, tremendo e cheio de suores frios, ourado. Assim que lancei, permaneci uns momentos muito quieto, ofegante. Perto de mim senti um arfar desassossegado, angustioso. Pensei vagamente que alguém, como eu, estaria agoniado. Pouco e pouco o meu corpo recuperava o equilíbrio, a respiração tornou-se normal e calma, o mal-estar desaparecia. Soergui-me apurando o ouvido. Aquele arfar continuava, agora mais apressado, mas de súbito dei conta de que havia dois ritmos e timbres diferentes nesse respirar e suspirar doloroso.

É mais que uma pessoa que está mal disposta, pensei eu, procurando ver no escuro. Por instantes o luar apareceu e eu pude, num relance, distinguir dois vultos que junto de um rolo de cordas se enlaçavam. A escuridão recaiu e os gemidos aumentavam confundindo-se com a ventania. Tolerante, por experiência, com aqueles que se amam, dispunha-me a retirar-me quando um clarão mais forte tornou nítidas as formas: um jovem estava de borco sobre as cordas e um homem abraçando-o pelas costas sodomizava-o!... Corri para as escadas e, como pude, meti-me na cama a tentar adormecer. Onde estavam as amuradas para o vomito da alma?...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

 A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura, 

sábado, 27 de novembro de 2021

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Na minha pressa, na minha impaciência, procurava razão de peso. Que havia três anos a família franciscana da Terra Santa estava sem recursos, não via frei Bonifácio?»

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Roma... Veneza... Trento

«(…) Reparasse que eu era talvez a única pessoa, e de certeza o único padre, a quem ele poderia sem receio dar tal notícia... E, se não tivesse por acaso entrado ali, ele já tencionava procurar-me, pois sabia da minha presença ... Porque confiais assim tanto em mim? Conheço-vos muito bem e sei que sois amigo dos judeus. Como me conheceis tão bem? Começou a desviar a conversa, lá o estava eu a sentir. Ora! Conhecia-me, era tudo! Fosse a Corfu... Fosse a Corfu!... Calava-se Joseph e, apesar da minha insistência, só me respondia fazendo com o polegar e o indicador sinal de que tinha os lábios cerrados. Seria eu judeu?, perguntava a mim próprio. Aquela estrela não seria o sino-saimão?... Em silêncio Joseph acompanhava-me amavelmente até à porta, como a convidar-me a sair. Apoderou-se então de mim uma pressa febril de embarcar, de ir embora... Levantavam-se obstáculos. Era costume, que já vinha dos Romanos, não se navegar entre quinze de Novembro e a oitava da Epifania. Havia grandes penas, quer-me parecer que também a da excomunhão, para quem sem licença fizesse o contrário e só se abria excepção quando o patrão de um barco manifestava necessidade muito urgente, como aconteceu com o patrão de uma nau que estava prestes a partir e na qual frei Bonifácio, eu e frei Antônio Zedilho nos preparávamos para embarcar. Todavia, com grande arrelia minha, mandou a Senhoria chamar o padre Bonifácio e terminantemente lhe ordenou que não embarcasse, que era já Inverno e os mares do Levante muito perigosos. Sentiu muito o guardião de Jerusalém tal impedimento e, por mais razões que desse, nenhuma lhe foi admitida porque todos os senhores venezianos lhe tinham muito amor e reverência, tanto por sua muita virtude e sabedoria como porque havia já sido, uns sete anos guardião de monte Sião, com grande exemplo de sua vida e não menos proveito dos lugares santos. Mas se a insistência de frei Bonifácio junto da Senhoria não surtiu efeito, a minha junto de frei Bonifácio era preciso que não falhasse. Na minha pressa, na minha impaciência, procurava razão de peso. Que havia três anos a família franciscana da Terra Santa estava sem recursos, não via frei Bonifácio?

Urgia partir quanto antes a levar-lhe apoio e conforto. Não me importava de correr o risco da própria vida ... Não era sincero e a mim próprio me soava a falso a minha voz. Acreditou frei Bonifácio? Não sei. Deu-me muitos agradecimentos pela boa vontade revelada e procurou dissuadir-me de tal propósito e de tais trabalhos e canseiras, pondo-me diante os mesmos perigos a si postos pela Senhoria veneziana, prometendo-me que logo que fossem baptizadas as águas nos partiríamos todos na primeira nau que saísse. O baptismos das águas eram certas cerimónias que se faziam nas pias de baptizar, na vigília da Epifania, ao tempo da missa de terça, com ladainha e muitas orações e preces apropriadas àquele ofício, como véspera de Páscoa ao ofício das fontes. Eram em memória do baptismos de Cristo e dali por diante todos têm liberdade para navegarem como lhes parece. Não desisti, nem por isso, da minha determinação e finalmente, a muito custo e com muito rogo, ele consentiu e logo mandou me fosse entregue toda a provisão e matalotagem que para si e para os mais estava feita. Que mal chegasse a Chipre entregasse ao nosso síndico a provisão para a Terra Santa e o fosse esperar à nau que partiria de Veneza depois da bênção das águas... Outra, porém, era a mola que me impelia e não descansei enquanto não senti que levantavam a âncora e começávamos a zarpar. No cais, em Malamoch, diziam-me adeus, além de frei Bonifácio, importantes personagens que desceram de Trento a despedir-se de mim. Ali estava um venerado e doutíssimo padre da Ordem dos Pregadores, teólogo de nomeada, por nome frei Luís de Sottomaior, leitor em Lovaina, chamado a Trento a substituir o padre Pinheiro, da mesma ordem, subitamente falecido em Roma antes do começo das sessões.

Frei Pantaleão, abraçava-me,, trazendo-vos Nosso Senhor a Portugal..., já sei: quereis uma relíquia de Terra Santa. Não mais que qualquer pequena de terra ou pedra da que acheis nas ruas ou caminhos públicos, que todo esse chão até ao abismo está santificado pelas pegadas de Cristo. Assim farei, frei Luís. Bem me custa não embarcar convosco, mas neste momento a minha saúde não mo permite». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

O Pintor das Almas. Ildefonso Falcones. «As mulheres explodiram em gritos de vitória, enquanto os poucos passageiros que ousaram utilizar o transporte e viajavam na parte superior do vagão, ao ar livre, sentados ao sol…»

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Barcelona, Maio de 1901

«(…) Não havia muitos anos, quatro ou cinco, Dalmau cometeu o mesmo desplante perante a polícia; a mãe atrás dele, a gritar, exigindo justiça ou melhorias sociais, encorajando-o à luta, como fazia a maioria das mães que interpunham os filhos em defesa de causas que consideravam superiores, inclusivamente a sua própria integridade física. Por instantes, os gritos das mulheres provocaram em Dalmau uma embriaguez semelhante à que viveu quando fez frente à polícia. Na altura, sentiam-se deuses. Lutavam pelos operários! A Guarda Civil ou o exército carregaram sobre eles algumas vezes, mas hoje nada disso iria acontecer, disse Dalmau para si, desviando o olhar para as grevistas que faziam frente ao eléctrico. Não. Aquele dia não estava destinado a que a força pública atacasse as mulheres; pressentia-o, sabia-o.

Dalmau não tardou a localizá-las. Na primeira fila, à frente de todas, com o olhar desafiante, como se fosse o suficiente para deter o eléctrico da linha de Gràcia que se aproximava. Dalmau sorriu. O que não conseguiriam aqueles olhares? Montserrat e Emma, a sua irmã mais nova e a sua noiva, ambas inseparáveis, unidas pela infelicidade, unidas pela luta operária. O eléctrico aproximava-se fazendo soar a campainha; o sol que se infiltrava por entre o arvoredo das Ramblas arrancava centelhas às rodas e aos restantes elementos metálicos do vagão. Uma ou outra mulher recuou; poucas, muito poucas. Dalmau esticou-se. Não temia por elas; o eléctrico iria parar. Mães e polícias calaram-se, atentos. Muitos curiosos retiveram a respiração. O grupo de mulheres que se encontrava em cima dos carris pareceu crescer sobre si mesmo, firme, tenaz, disposto a ser atropelado.

Parou.

As mulheres explodiram em gritos de vitória, enquanto os poucos passageiros que ousaram utilizar o transporte e viajavam na parte superior do vagão, ao ar livre, sentados ao sol, desciam aos tropeções para fugirem, depois de o condutor e os revisores, todos fura-greves, terem saltado do eléctrico antes mesmo de este parar. Dalmau contemplou Emma e Montserrat, as duas com o punho crispado erguido para o céu, sorridentes, a celebrarem, eufóricas, a vitória com as suas companheiras. Ainda não tinha passado um minuto quando aquelas centenas de mulheres se aproximaram do eléctrico. Vamos! Vamos a ele! A Guarda Civil quis reagir, mas a barreira com as crianças avançou para os agentes. Foram muitas as mãos que se apoiaram na parte lateral do vagão. Outras tantas, as que não alcançavam a máquina, apoiaram-se às costas das grevistas que estavam à frente. Empurrem!, gritaram várias ao mesmo tempo. Com mais força! O eléctrico balançou em cima das rodas de ferro. Mais! Mais, mais… Um, dois… O vaivém aumentou ao ritmo do alento que davam umas às outras. Por fim, um rugido que surgiu daquelas centenas de gargantas precedeu a queda do vagão. O estrondo confundiu-se com o ruído dos estilhaços, o entrechocar dos ferros e uma nuvem de pó que envolveu o eléctrico e as mulheres. Um brado quebrou o silêncio relativo que se tinha instalado depois de o vagão ter embatido no solo. Saúde e revolução! Viva a anarquia! Greve geral! Morte aos frades! Mais trabalho e melhores salários. Reduzir as jornadas extenuantes. Acabar com o trabalho jovem. Pôr fim ao poder da Igreja. Maior segurança. Casas decentes. Expulsão das ordens religiosas. Saúde. Ensino laico. Alimentos acessíveis… Mil reivindicações troaram na Rambla das Flores, de Barcelona, para serem partilhadas por uma mole de gente humilde, cada vez mais numerosa, que se ia reunindo e aplaudia fervorosamente aquelas mulheres trabalhadoras». In Ildefonso Falcones, O Pintor das Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de SumadasLetras/JDACT

JDACT, Barcelona, Ildefonso Falcones, Literatura, A Arte,

O Pintor das Almas. Ildefonso Falcones. «O eléctrico que cobria a linha de Barcelona para Gràcia, que começava na Rambla de Santa Mónica, junto ao porto, aproximava-se»

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Barcelona, Maio de 1901

«Os gritos de centenas de mulheres e crianças ecoavam nas vielas da cidade velha. Greve! Fechem as portas! Parem as máquinas! Baixem as persianas! O piquete de mulheres, muitas delas com filhos pequenos nos braços ou a tentarem mantê-los seguros pela mão, apesar dos seus esforços para fugirem e juntarem-se aos que eram um pouco mais velhos, não sujeitos a controlo, percorria as ruas da cidade velha, incitando os trabalhadores e os comerciantes, que ainda mantinham abertas as oficinas, fábricas e lojas, a interromperem a actividade de imediato. Os bastões e barrotes que empunhavam convenciam a maioria, embora não fosse rara a quebra dos vidros das montras e uma ou outra rixa. São mulheres!, gritou um velho da varanda de um primeiro andar, mesmo por cima da cabeça de um comerciante furioso que fazia frente a algumas delas. Anselmo, eu… O comerciante olhou para cima.

A sua desculpa foi emudecida pelos insultos e vaias proferidos por muitos dos que observavam a cena das varandas daquelas casas velhas e apinhadas, morada de trabalhadores e gente humilde, com as fachadas rachadas, descascadas e com manchas de humidade. O homem cerrou os lábios, abanou a cabeça e fechou a loja, enquanto catraios maltrapilhos e sujos cantavam vitória e troçavam dele. Alguns dos que assistiam à cena sorriam abertamente perante a chacota do grupo de grevistas precoces; o comerciante não era querido no bairro. Confeccionava e vendia alpercatas. Não vendia fiado. Não sorria, e tampouco saudava quem quer que fosse. A catraiada continuou na chacota até que a polícia, que seguia o piquete de mulheres, se aproximou. Então, desatou a correr em busca da marabunta que continuava a deslocar-se pelas ruelas da Barcelona medieval, tão sinuosas quanto sombrias, pois a maravilhosa luz primaveril daquele mês de Maio não conseguia penetrar na estreita malha urbana, apenas nos andares mais altos dos edifícios que se erguiam no empedrado. Os vizinhos das varandas calaram-se à passagem dos guardas-civis, alguns a cavalo, com os sabres embainhados, a maioria com o rosto contraído, uma tensão que se sentia nos seus movimentos sincopados. Uns e outros tinham consciência do conflito com que aqueles homens se debatiam: a sua obrigação era impedir os piquetes ilegais, mas não estavam dispostos a carregar contra as mulheres e crianças.

A história da revolução operária em Barcelona estava ligada às mulheres e aos seus filhos. Eram elas quem, em inúmeras ocasiões, exortavam os seus homens a permanecerem afastados das acções violentas. Connosco não se atreverão, e somos suficientes para conseguirmos o encerramento, argumentavam. E assim era também naquele mês de Maio de 1901, quando os operários foram para as ruas depois de, no final de Abril, a Companhia de Eléctricos ter despedido os trabalhadores em greve e contratado fura-greves para os substituir. A greve geral pretendida pelas associações de operários em defesa dos trabalhadores dos eléctricos estava muito longe de se concretizar e, apesar de algumas acções violentas, a Guarda Civil parecia ter a situação controlada na cidade. De repente, um clamor surgiu nas bocas das centenas de mulheres porque se propagou entre elas a notícia de que um eléctrico estava a circular pelas Ramblas. Ouviram-se insultos e gritos de ameaça: Fura-greves!, Filhos da pu…!, Vamos a eles!

As grevistas acorreram com o passo apressado, algumas quase a correr, à Rua da Portaferrissa para chegarem à Rambla das Flores, acima do mercado da Boqueria, uma lota que, ao contrário de todas as outras em Barcelona, como a de Sant Antoni, a do Born ou a da Concepció, não é fruto de um projecto concreto mas da ocupação, por parte dos vendedores, da Praça de Sant Josep, um magnífico espaço porticado; por fim, venceram os mercadores e a praça cobriu-se com toldos e telhados provisórios, tendo os pórticos dos edifícios, que a rodeavam, sido transformados nas paredes do novo mercado. As tradicionais paradas de venda de flores, estruturas de ferro semelhantes a quiosques colocadas frente a frente ao longo do passeio, estavam fechadas, embora as floristas, muitas delas com as mãos nas ancas, desafiantes, permanecessem junto aos respectivos estabelecimentos, dispostas a defendê-los. Em Barcelona só se vendiam flores naquela zona das Ramblas. No mercado da Boqueria, um número infindável de carroças de transporte, com os seus toldos e cavalos, esperavam estacionadas em fila, lado a lado, a escassos passos dos carris do eléctrico. Os animais reagiram nervosamente à gritaria e à avalancha das mulheres. Poucas prestaram atenção ao alvoroço de cavalos empinados, carregadores e comerciantes a correrem de um lado para o outro. O eléctrico que cobria a linha de Barcelona para Gràcia, que começava na Rambla de Santa Mónica, junto ao porto, aproximava-se.

Dalmau Sala tinha seguido o piquete durante o seu itinerário pela cidade velha, juntamente com muitos outros homens, em silêncio, atrás da Guarda Civil. Agora, numa zona ampla como era a das Ramblas, tinha uma visão mais completa. O caos era absoluto. Cavalos, carroças e comerciantes. Cidadãos a correrem, curiosos; polícias em formatura perante o grupo de mulheres com os filhos que se colocaram diante deles, a formar uma barreira humana que pretendia separar todas as outras que se tinham apinhado em cima dos carris do eléctrico para deter a máquina.

Um calafrio percorreu Dalmau de cima a baixo quando viu que algumas mulheres erguiam os filhos e exibiam-nos perante os guardas-civis. Outros catraios, um pouco mais crescidos, permaneciam agarrados às saias das mães, assustados, com os olhos muito abertos, esquadrinhando o espaço em busca de respostas que não encontravam, enquanto os adolescentes, ensoberbecidos pelo ambiente, chegavam a desafiar os polícias». In Ildefonso Falcones, O Pintor das Almas, Suma das Letras, 2020, ISBN 978-989-665-961-5.

Cortesia de SumadasLetras/JDACT

JDACT, Barcelona, Ildefonso Falcones, Literatura, A Arte, 

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Só se Ama uma Vez. Johanna Lindsey. «Medindo cuidadosamente as palavras, disse calmamente: O baile, Nicky. Tenho estado a falar sobre isso, mas não estás a prestar atenção. Se quiseres, mudo de assunto, mas só se me prometeres que não chegas atrasado…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Regina Ashton já recusou tantos pretendentes à sua mão que a alta-sociedade londrina a considera uma snob sem coração. Não podiam estar mais enganados. Órfã desde cedo, Regina é a sobrinha superprotegida de lord Edward e lady Charlotte Malory, a quem é muito difícil agradar. Aos olhos dos tios, nenhum dos jovens candidatos é suficientemente bom. Cansada de tão infrutífera busca, a jovem sai de casa numa noite escura, decidida a informá-los de que não pensa casar…, nunca! Mas o seu plano coloca-a no sítio errado à hora errada, e é raptada por engano. A sua ira perante a arrogância do raptor, Nicholas Eden, vai inesperadamente dar lugar a sentimentos contraditórios de paixão e vergonha. Aquela noite não mais lhe sairá da cabeça. O visconde Nicholas Eden também tinha um plano: dar uma lição à sua amante descontente, raptando-a ao abrigo da noite. Não contava enganar-se na pessoa e arruinar a reputação de uma menina de família. Mas agora, movido pelo desejo mais desenfreado que alguma vez sentiu, é a custo que reconhece que nunca poderá casar com Regina, apesar do escândalo que paira sobre eles. Implacável, é o destino que os uniu a afastá-los irremediavelmente, ainda que ambos saibam que um amor assim só se vive uma vez…» In Resumo

Londres 1817

«Os dedos que seguravam a garrafa de cristal com brandy eram longos e delicados. Selena Eddington tinha muito orgulho das suas mãos. Exibia-as sempre que surgia uma oportunidade, como naquele momento. Levou a garrafa de cristal a Nicholas, em vez de pegar no copo dele para o encher de brandy. Esta acção deliberada também possuía uma outra finalidade: permitia-lhe ficar de pé à frente dele, que se encontrava recostado num sumptuoso sofá azul, com a luz da lareira nas costas, delineando-lhe de forma provocadora a figura através do fino vestido de noite de musselina. Nem mesmo um libertino inveterado como Nicholas Eden podia deixar de apreciar um belo corpo feminino. Um rubi enorme cintilava-lhe na mão esquerda enquanto segurava o copo de Nicholas e servia o brandy. Era a aliança de casamento. Ainda a usava com orgulho, embora já tivesse enviuvado há dois anos. O seu pescoço estava rodeado por mais rubis, mas nem o mais extraordinário dos rubis podia relegar para segundo plano o seu decote, extraordinariamente descido, o que significava uns meros dez centímetros de tecido antes de a cintura alta cingida do vestido de estilo império se precipitar em linhas direitas até aos seus calcanhares elegantes. O vestido era de uma cor magenta carregada e escura que condizia maravilhosamente com os rubis e com a própria figura de Selena. Estás a ouvir o que estou a dizer, Nicky? Nicholas exibia aquela expressão pensativa irritante que ela reconhecia cada vez mais nele ultimamente. Não estava a ouvir absolutamente nada do que ela dizia, mas estava absorto em pensamentos que decerto não a incluíam. Nem sequer a tinha mirado de relance enquanto ela lhe servia o brandy. Francamente, Nicky, não é nada simpática a forma como te ausentas e me abandonas quando estamos juntos na mesma divisão sem mais ninguém. Deixou-se ficar diante de Nicholas até ele erguer o olhar para ela. O que foi que disseste, minha querida? Os olhos cor de avelã dela faiscaram. Teria começado a bater o pé, se se atrevesse a deixá-lo ver o seu terrível mau génio. Ele estava tão provocador, tão indiferente, tão..., impossível! Se não fosse tão bom partido... Medindo cuidadosamente as palavras, disse calmamente: O baile, Nicky. Tenho estado a falar sobre isso, mas não estás a prestar atenção. Se quiseres, mudo de assunto, mas só se me prometeres que não chegas atrasado quando me vieres buscar amanhã. Que baile? Selena abriu a boca, verdadeiramente espantada. Ele não estava a tentar baralhá-la nem a fingir indiferença. Aquele homem exasperante realmente não fazia a menor ideia do que ela estava a falar.

Não brinques comigo, Nicky. O baile dos Shepford. Tu sabes o quanto tenho estado a aguardá-lo. Ah, sim, disse ele secamente. O baile que irá superar todos os outros, apesar de ainda estarmos no início da temporada. Ela fingiu não reparar no seu tom de voz. Também sabes quanto tempo eu esperei por um convite para um dos bailes da duquesa de Shepford. Este promete ser o seu baile mais grandioso dos últimos anos. Praticamente todas as pessoas que importam vão estar presentes. E depois? Selena contou lentamente até cinco. E depois ficarei para morrer se chegar nem que seja um minuto atrasada. Os lábios dele arquearam-se num sorriso trocista familiar. Ficas para morrer demasiadas vezes, minha querida. Não devias levar a lufa-lufa social tão a sério. Devia ser mais como tu? Se pudesse, ela voltava atrás. O seu mau génio estava muito perto de explodir e isso seria desastroso. Sabia o quanto ele condenava o excesso de emoção em qualquer pessoa, embora fosse perfeitamente aceitável dar largas ao seu próprio mau génio, que podia ser bastante desagradável.

Nicholas limitou-se a encolher os ombros. Podes chamar-me excêntrico, minha querida, um dos poucos que se está a marimbar para toda aquela gente. Aquela era uma grande verdade. Ele ignorava e insultava quem lhe apetecia. De igual modo, também escolhia os amigos como queria, mesmo bastardos publicamente conhecidos que eram desprezados pela sociedade. E nunca tentava agradar a ninguém. Era tão arrogante como todos diziam que era. Mas também conseguia ser devastadoramente charmoso, quando queria. Milagrosamente, Selena conseguiu controlar o seu mau génio. Não obstante esse facto, Nicky, prometeste que me acompanhavas ao baile dos Shepford. Prometi?, perguntou ele indolentemente. Sim, prometeste, conseguiu responder-lhe com calma. E vais prometer-me que não te vais atrasar quando me vieres buscar, certo?» In Johanna Lindsey, Só se Ama uma Vez, Edições ASA, 2015, ISBN 978-989-233-033-4.

Cortesia de EdiçõesASA/JDACT

JDACT, Johanna Lindsey, Literatura, 

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «O pedido de Caridad rompeu o silêncio da noite. Fazia um tempo que já não se ouvia seu cantarolar; havia-se ido apagando como uma brasa»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Estava sentada com as costas contra a laranjeira, como se buscasse refúgio na árvore. Tinha o olhar perdido, alheio à sua presença, e continuou cantarolando, em voz baixa, monotonamente, repetindo vezes seguidas o mesmo estribilho. Melchor verificou que, apesar do frio, tinha o rosto perolado de suor. Tiritava. Sentou-se a seu lado. Não entendia o que dizia, mas aquela voz cansada, aquele timbre, a monotonia, a resignação que impregnava sua voz deixavam transparecer uma dor imensa. Melchor fechou os olhos, rodeou os joelhos com os braços e deixou-se transportar pela canção.

Água.

O pedido de Caridad rompeu o silêncio da noite. Fazia um tempo que já não se ouvia seu cantarolar; havia-se ido apagando como uma brasa. Melchor abriu os olhos. A tristeza e a melancolia da canção haviam conseguido trasladá-lo, uma vez mais, ao banco da galé. Água. Quantas vezes havia tido de pedir água ele mesmo? Acreditou sentir que os músculos de suas pernas, de seus braços e de suas costas se tensionavam como quando o comitre aumentava o ritmo da voga em perseguição de alguma nau sarracena. O torturante apito do comitre aguilhoava seus sentidos enquanto arrancavam a chicotadas a pele de suas costas nuas para que remasse com mais e mais força. O castigo podia durar horas. Ao final, com os músculos de todo o corpo a ponto de rebentar e com as bocas ressecadas, das fileiras de bancos só surgia uma súplica: água! Sei o que é a sede, murmurou para si. Água, implorou de novo Caridad.

Vem comigo. Melchor levantou-se com dificuldade, entorpecido após quase uma hora sentado ao pé da laranjeira. O cigano se esticou e tentou orientar-se para encontrar o caminho da Cartuxa. Dirigia-se aos hortos do mosteiro, onde viviam muitos dos ciganos de Triana, quando o cantarolar havia chamado sua atenção. Vens ou não?, perguntou a Caridad. Ela tentou levantar-se agarrando-se ao tronco da laranjeira. Estava com febre. Estava com fome e frio. Mas sobretudo estava com sede, muita sede. Conseguiu erguer-se quando Melchor já se havia posto em marcha. Dar-lhe-ia água se o seguisse ou a enganaria como haviam feito tantos outros ao longo dos dias que estava em Triana? Caminhou atrás dele. A cabeça lhe dava voltas. Quase todos o haviam feito; quase todos se haviam aproveitado dela. Uma série de luzes provenientes de umas choças amontoadas no caminho iluminou a jaqueta de seda azul-celeste do cigano. Caridad fez um esforço por seguir seu passo. Melchor não se preocupava com ela. Andava lentamente mas erguido, altivo, apoiando-se sem necessidade no bordão de duas pontas próprio do chefe de uma família; às vezes se lhe ouvia falar à noite. A mulher arrastava os pés descalços atrás dele. À medida que se aproximavam da ciganaria, a quinquilharia que adornava as vestiduras de Melchor e o debrum de prata de suas meias refulgiram. Caridad percebeu um bom presságio naqueles brilhos: aquele homem não a havia tocado. Iria proporcionar-lhe beber água». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Amizade, Espanha, Ildefonso Falcones, JDACT, Liberdade,

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «Não pensou. Cantarolou durante o que restava da noite e, quando os primeiros raios de luz se infiltraram entre as frestas das madeiras do quartucho, rebuscou entre os trastes até encontrar uma velha corda»

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Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Uma noite, o oleiro não desceu. Na seguinte tampouco. Na terceira, sim, o fez, mas em lugar de ir para ela dirigiu-se à porta da oficina. Abriu-a e deu passagem a outro homem, depois lhe indicou onde se encontrava Caridad. O oleiro esperou junto à porta que o outro satisfizesse seus desejos, recebeu dele, e depois o despediu. A partir daquela noite, Caridad deixou de trabalhar na oficina. O homem a encerrou num quartucho do térreo, sem ventilação, e colocou um colchão e um urinol junto a alguns trastes inservíveis. Se criares problemas, se gritares ou tentares escapar, eu te matarei, ameaçou-a o oleiro na primeira vez que lhe levou de comer. Ninguém sentirá tua falta. É verdade, lamentou-se Caridad enquanto escutava o homem pôr a chave na porta: quem ia sentir falta dela? Sentou-se no colchão com a tigela de refogado de verduras nas mãos. Nunca antes a haviam ameaçado de morte; os senhores não matavam seus escravos, valiam muito dinheiro. Um escravo servia para toda a vida. Uma vez adestrados, como havia sido Caridad em menina, os negros alcançavam a velhice em suas veigas tabaqueiras, nos seus trapiches ou nos seus engenhos de açúcar. A lei proibia vender um escravo por maior quantia do que havia custado, razão por que nenhum senhor, depois de haver-lhe ensinado um ofício, se desfazia dele; perderia dinheiro. Podiam maltratá-los ou forçá-los até a extenuação, mas o bom capataz era aquele que sabia onde se encontrava o limite da morte. Eram os escravos que tiravam a vida; no amanhecer menos pensado, a luz ia descobrindo a silhueta do corpo inerte de um negro pendurado numa árvore…, ou talvez de vários deles que haviam decidido acompanhar-se na fuga definitiva. Então o senhor se encolerizava, como quando alguma mãe matava seu recém-nascido para livrá-lo da escravidão ou como quando um negro se mutilava para não trabalhar. No domingo seguinte, na missa, o sacerdote do trapiche lhes gritava que aquilo era pecado, que iriam para o inferno, como se pudesse existir um inferno pior que aquele. Morrer? Talvez, sim, disse-se Caridad, talvez tenha chegado a hora de fugir deste mundo onde ninguém me espera. Nessa mesma noite foram dois os homens que desfrutaram dela. Depois o oleiro voltou a fechar a porta, e Caridad ficou na mais absoluta escuridão.

Não pensou. Cantarolou durante o que restava da noite e, quando os primeiros raios de luz se infiltraram entre as frestas das madeiras do quartucho, rebuscou entre os trastes até encontrar uma velha corda. Pode servir, concluiu após puxá-la para verificar seu estado. Amarrou-a ao pescoço e subiu numa caixa desconjuntada. Lançou a corda por cima de uma viga de madeira, sobre sua cabeça, esticou-a e deu um nó na outra extremidade. Em algumas ocasiões havia invejado aquelas figuras negras que pendiam das árvores rompendo a paisagem da veiga cubana, livres já de sofrimento. Deus é o maior dos reis, clamou. Só desejo não me converter numa alma penada. Saltou do caixote. A corda aguentou seu peso, mas não a viga de madeira, que se quebrou e lhe caiu em cima. O estrondo foi tal que o oleiro não tardou a apresentar-se no cárcere de Caridad. Acorrentou-a, e, a partir desse dia, Caridad deixou de comer e de beber, suplicando a morte até quando o oleiro e seu filho a alimentavam à força. As visitas de homens da rua se repetiram, geralmente um, às vezes mais, até que, numa ocasião, um velho que tentava montá-la com inabilidade se levantou e se afastou dela com agilidade assombrosa. Esta negra está ardendo!, gritou. Está com febre. Pretendes que me contagie alguma doença estranha! O oleiro se aproximou de Caridad e pôs a mão na sua testa suarenta.

Vai-te, ordenou-lhe incitando-a com o pé nas costelas enquanto pelejava por abrir e recuperar as correntes com que a mantinha presa, agora mesmo, já!, gritou após consegui-lo. Sem esperar que se levantasse, pegou a trouxa de Caridad e a lançou à rua. Era possível que houvesse ouvido uma canção? Não era mais que um murmúrio que se confundia com os barulhos da noite. Melchor apurou o ouvido. Ali estava outra vez! Yemayá asesú O cigano ficou parado na escuridão, no meio da veiga de Triana, rodeado de hortos e vergéis. O rumor das águas do Guadalquivir lhe chegava com nitidez, como o silvar do vento entre a vegetação, mas… Asesú Yemayá. Parecia um diálogo: um sussurro que o solista entoava para depois responder-se a si mesmo a modo de coro. Virou-se na direcção de que vinha a voz; alguns dos avelórios que pendiam de sua jaqueta tintilaram. A escuridão era quase absoluta, rompida apenas pelas tochas do convento da Cartuxa, algo além de onde se encontrava. Yemayá oloddo. Melchor se afastou do caminho e se internou num laranjal. Pisou pedras e folhagens, tropeçou diversas vezes e até maldisse a todos os santos aos gritos, e, no entanto, apesar de na noite haver ressoado como um trovão, o triste cantarolar não cessou. Parou entre várias árvores. Era ali, ali mesmo. Oloddo Yemayá. Oloddo… Melchor entrefechou os olhos. Uma das pertinazes nuvens que haviam coberto Sevilha durante todo o dia permitiu a passagem de um ténue vislumbre de lua. Então entreviu uma mancha cinzenta no chão, diante dele, a apenas dois passos. Avançou e se acocorou até reconhecer uma mulher tão negra como a noite vestida com roupas cinza». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Amizade, Espanha, Ildefonso Falcones, JDACT, Liberdade,

Ildefonso Falcones. A Rainha Descalça. «Naqueles dias, a escravidão já quase havia desaparecido de Sevilha: a crise demográfica e económica, a guerra de 1640 com Portugal, o grande provedor de escravos do mercado sevilhano…»

jdact

Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Depois voltavam a cantar e a dançar desenfreadamente, à espera

de que algum de seus deuses os possuísse. Às vezes repetiam e voltavam a deixar o barracão. Não, não gostava, mas tampouco sentia nada; haviam-lhe ido roubando os sentimentos, pedaço a pedaço, desde a primeira noite em que o senhor a forçara. Não haveria transcorrido uma hora quando um daqueles homens voltou e interrompeu seus pensamentos. Queres trabalhar na minha oficina?, perguntou-lhe iluminando-a com uma candeia. Sou oleiro. Que é um oleiro?, perguntou-se Caridad tentando vislumbrá-lo na escuridão. Ela só queria… Tu me darás dinheiro para atravessar a ponte?, inquiriu. O homem percebeu a dúvida no seu rosto. Vem comigo, ordenou-lhe. Isso, sim, ela entendeu: uma ordem, como quando algum negro a segurava pelo braço e a levava para fora do barracão. Seguiu-o em direcção à Cava Vieja. Na altura do castelo da Inquisição (maldita), sem virar-se, o oleiro a interrogou: Fugiste? Sou livre. Às luzes do castelo, Caridad viu que o homem assentia com a cabeça. Tratava-se de uma pequena oficina, com habitação no andar superior, na rua de los Alfareros. Entraram, e o homem lhe indicou um colchão de palha num canto da oficina, junto à lenha e o forno. Caridad se sentou nele. Amanhã começarás. Dorme.

O calor dos rescaldos do forno embalou uma Caridad penetrada pela humidade do Guadalquivir, e ela dormiu. Desde a época muçulmana, Triana era conhecida pelas suas manufacturas de barro cozido, sobretudo pelos azulejos vidrados de cavidade ou relevo, nos quais os mestres expertos afundavam uma corda no barro fresco e conseguiam desenhos magníficos. No entanto, fazia algum tempo que aquela cerâmica artesanal havia degenerado em peças repetitivas sem encanto, ao que se somaram a concorrência da louça de pederneira inglesa e a mudança de gosto das pessoas, que se inclinou para a porcelana oriental. No arrabalde, portanto, o ofício decaía. No dia seguinte, ao amanhecer, Caridad começou a trabalhar junto ao homem da noite, um jovenzinho que devia ser seu filho e um aprendiz que não lhe tirava os olhos de cima. Carregou lenha, transportou argila, varreu mil vezes e ocupou-se das cinzas do forno. Assim começaram a passar os dias. O oleiro, Caridad nunca viu sair uma mulher do andar de cima, visitava-a durante as noites. Tenho de atravessar a ponte para ir à igreja dos Anjos, onde estão os negrinhos, teria querido dizer-lhe numa delas, quando o homem, depois de havê-la possuído, se preparava para ir-se. Em vez disso, limitou-se a balbuciar: E meu dinheiro? Dinheiro! Queres dinheiro? Comes mais do que trabalhas e tens um lugar onde dormir, respondeu-lhe o oleiro. Que mais poderia desejar uma negra como tu? Preferes ficar na rua pedindo esmola como a maioria dos negros livres?

Naqueles dias, a escravidão já quase havia desaparecido de Sevilha: a crise demográfica e económica, a guerra de 1640 com Portugal, o grande provedor de escravos do mercado sevilhano, a peste bubónica de que a cidade padeceu alguns anos depois, que se encarniçou nos negros escravos, junto com as constantes e numerosas manumissões que os piedosos sevilhanos vinham ordenando nos seus testamentos, tiveram como consequência uma significativa diminuição da escravidão. Sevilha perdeu seus escravos ao ritmo da perda do seu poder económico. Comes mais do que trabalhas, ressoava nos ouvidos de Caridad. A cantilena do capataz do senhor José na veiga lhe veio então à lembrança: Não trabalhais o que comeis, recriminava-os antes de soltar o látego nas costas de algum deles. Pouco havia mudado sua vida, de que lhe servia ser livre?» In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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