Saulo
A
chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491
«(…) Não tenha medo,
recomendou-lhe, enquanto ela voltava apressada para a cozinha. E diga aos
demais criados que eles nada têm a temer. Eu o segui até a entrada da sala de
jantar, para olhar dali a porta. Você deveria voltar e se sentar, gritou Lorena
para mim. Creio que seu pai ficará aborrecido se não estiver sentada na mesa
quando esses homens entrarem. Lancei-lhe um olhar de desprezo por cima do
ombro. Como se eu fosse fazer alguma coisa que você me aconselhasse. Lorena deu
de ombros. Está bem, disse ela, e sua voz teve um toque de alegre satisfação.
Faça o que lhe der na telha, Zarita. Então acrescentou num tom mais baixo: E
sofra as consequências.
Eu estava determinada a permanecer
onde estava. Então pensei melhor. A chegada daqueles homens tinha afectado meu
pai de uma maneira peculiar. Não tinha a certeza de como ele reagiria agora à
minha desobediência e talvez Lorena tivesse sugerido de propósito que eu
deveria obedecer a ele, sabendo que eu faria o oposto. Considerava minha
madrasta astuta o bastante para armar uma situação que me metesse em encrenca.
Quando ouvi o pai abrir a porta da frente, corri de volta à mesa e ocupei o meu
lugar. Lorena pareceu realmente decepcionada quando me sentei novamente.
Ouvimos vozes vindas da entrada e depois passos se aproximando. Antes que os
homens entrassem na sala, Lorena ergueu seu xale, que estava jogado por cima do
encosto da sua cadeira, e envolveu completamente a parte de cima do corpo,
ocultando o decote e os braços nus. Padre Besian, é com satisfação que o acolho
em minha casa e lhe apresento minha família. O pai falava com o monge que havia
entrado na sala à sua frente. E meu pai, tão acostumado a controlar a si mesmo
e aos outros, fez um gesto nervoso. O padre Besian, por sua vez, nos examinou.
Lorena acenou com a cabeça e baixou os olhos, mas quando o olhar do religioso
alcançou o meu, recusei-me a baixar docilmente a cabeça como ela fizera. Ele me
encarou com profundos olhos negros. Tendo sido tão protegida por minha mãe, eu
só ouvira através dos criados vagas histórias sobre os julgamentos da
Inquisição (maldita) e não via porque
tínhamos de temer seus associados. Era verdade que o tal monge parecia severo,
mas para mim a expressão no seu rosto era de preocupação.
Estou disponível para confissão
enquanto estiver aqui, anunciou ele, e espero que todos desta casa se
confessem. Com honestidade e clareza, acrescentou. Deve-nos desculpar se
estivermos transtornados, pois este é um lar enlutado, disse-lhe meu pai. Ainda
choramos pela minha esposa, que morreu há quase um ano. Entendo. O padre pensou
por um instante e então disse: É possível que a perda de um ente querido leve a
fé de uma pessoa a hesitar. É benéfico para a alma confessar essas dúvidas e
falhas a um padre. Meu próprio coração então palpitou, pois recordei minhas
duras palavras ao sacerdote da nossa região, padre Andrés, sobre a falta de
piedade demonstrada por Deus quando a mãe faleceu. E, do mesmo modo como meu
pai e Lorena, fui tomada pela prudência.
O padre Besian pareceu notar
isso. Olhou-me novamente. Quem é essa jovem? indagou. É minha filha, Zarita,
respondeu meu pai. E essa outra dama? O padre apontou para Lorena. Lorena. Meu
pai pigarreou. Minha esposa. Uma segunda esposa? O padre ergueu uma
sobrancelha. Mas não disse que não se passou um ano ainda do falecimento da mãe
dessa menina? Zarita é minha única filha..., uma mulher. Deve entender, padre
Besian, o pai estendeu as mãos, as palmas viradas para cima, um homem precisa
de um filho para herdar sua terra e seus bens. Ouvi Lorena trincar os dentes.
Teria sido porque meu pai estava dizendo que se casara com ela simplesmente por
causa de sua habilidade em procriar? Fiquei imaginando. Fui tomada por uma
sensação incomum de compaixão por Lorena, mas a rejeitei e ela não chegou a
nutrir minhas ideias. O mais rapidamente possível, Lorena pediu licença e
deixou a sala. Quando reapareceu, pouco depois, foi para ir à bênção na capela
da localidade. Fiquei pasmada. Desde o começo de Maio Lorena não saía no fim da
manhã ou começo da tarde. Ela considerava muito fortes os raios do sol de Verão
e preocupava-se que pudessem estragar sua cútis. Estava vestida de preto; não o
preto elegante de renda de malhas largas e tafetá farfalhante que às vezes ela
usava, mas de materiais simples e escuros, e seu rosto estava coberto com um
pesado véu. O padre Besian deu-lhe um olhar de aprovação e então se dirigiu a
mim. Você não comparece à bênção?, indagou compassivamente. Zarita cuida dos
seus estudos durante o dia, interpôs meu papa antes que eu pudesse dizer
qualquer coisa. Deu-me um olhar firme. E é melhor você fazer isso agora, minha
filha.
Fazia tanto tempo que meu pai não
me chamava de filha que senti as lágrimas brotarem. Fitou-me fixamente, e havia
um apelo nos seus olhos que fez com que eu me levantasse e lhe obedecesse. Fui
para o quarto e apanhei alguns dos livros que meu pai comprara para eu ler na época
em que esteve mais interessado na minha educação. Era difícil me concentrar. A chegada
daqueles homens mudara a atmosfera da casa; um silêncio anormal havia se instalado
por toda a parte. Fui à janela. Normalmente, os criados se sentavam num lugar à
sombra e conversavam por mais ou menos uma hora no calor da tarde: Serafina e
as criadas preparavam vegetais enquanto Garci e o cavalariço, Bartolomé, poliam
os latões das montarias ou se ocupavam de alguma outra tarefa leve. Agora, as únicas
pessoas por ali eram os soldados que acompanhavam o padre Besian, que estavam
sentados debaixo de uma árvore comendo alguma coisa. Enquanto eu observava,
Bartolomé, sobrinho de Serafina, saiu dos estábulos com um balde na mão e um
sorriso contente no rosto. Foi até ao poço e começou a tirar água de uma bica.
Um dos homens acenou-lhe com a cabeça; imediatamente, o cavalariço largou o balde,
espalhando a água que havia recolhido, e seguiu a passos rápidos e parou diante
dele. Bartolomé era muito inocente e faria qualquer coisa para agradá-lo.
Embora tivesse quase 20 anos, sua
mente era a de uma criança. Minha mãe me dissera que pessoas como Bartolomé são
os seres mais preciosos de Deus. São enviadas para esta terra para nos lembrar
de nunca perder nosso senso de deslumbramento. Sorri ao ver Bartolomé agitar
furiosamente a cabeça e abanar os braços no ar. E pensei, se esses homens
pretendem se intrometer nos nossos assuntos, nada conseguirão arrancar dele que
faça sentido. Mais tarde, minha antiga ama, Ardelia, trouxe-me a refeição da
noite. Seu pai pediu que ficasse no seu quarto até à hora de dormir. Porquê?,
perguntei. Ela baixou a voz. Dom Vicente Alonzo acha melhor que você e Lorena não
estejam por perto enquanto esses homens estiverem nos visitando. Olhou para o
tecto. O padre Besian vai dormir no sótão bem em cima de você. Ele pediu o
quarto mais simples da casa. Os outros estão nos aposentos dos criados acima
dos estábulos. Fez uma careta. Ninguém lá está falando com eles. Excepto
Bartolomé, emendei. Mais cedo, eu o vi falando com eles. O quê?, Ardelia
pareceu alarmada. Preciso contar isso a Serafina e Garci. Saiu apressada do
quarto». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera
Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,