terça-feira, 30 de novembro de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Enterrei isso bem fundo dentro de mim e nunca falei a respeito. Eu agora suava. Esses pensamentos se acumularam em minha mente, ao mesmo tempo que os passos de padre Besian ressoavam acima de minha cabeça»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) Ao apanhar a comida, minha sensação de intranquilidade aumentou. Porque Ardelia ficou tão transtornada e porque o pai queria que eu permanecesse no meu quarto? Não me importei muito com isso, em parte porque ele impôs o mesmo a Lorena, mas também porque fiquei contente por não ter de me encontrar com o padre Besian. A ideia de me confessar com ele começava a me perturbar. Não muito tempo depois de ter me recolhido para dormir, ouvi o rangido de tábuas no soalho acima da minha cabeça. O padre Besian devia estar se preparando para dormir. Se eu tivesse de me confessar com ele, o que deveria dizer? Eu detestava Lorena. Isso era um pecado contra a tolerância. Eu contara isso numa confissão ao nosso sacerdote, o padre Andrés, e ele dissera que era por causa da grande dor que eu ainda carregava pela perda de minha mãe. Esses pensamentos ruins eram sentimentos naturais, mas eu precisava superá-los. Ele me garantiu que desapareceriam, principalmente depois que Lorena tivesse um bebê, o que, sem dúvida, aconteceria em pouco tempo. Então eu amaria essa criança e passaria a aceitar Lorena melhor. Eu dissera a Serafina, mulher de Garci, que desgostava muito de Lorena, e ela, com a cabeça curvada sobre o fogão, murmurou: Não tanto quanto eu. Isso me fez rir, mas sabia que não era a reacção de que a mãe teria gostado, e eu tentava viver como ela gostaria que eu vivesse. Quando meus ânimos estavam baixos e esses pensamentos ameaçavam-me dominar, eu ia ao convento-hospital de minha tia Beatriz e procurava um bálsamo para a minha alma.

Zarita, disse-me ela, você não é a sua mãe. Ela era uma santa mulher, mais santa do que eu jamais consegui ser, e sou freira. Embora esta ordem que fundei não seja reconhecida por qualquer decreto formal do papa, fiz votos a mim mesma e a Deus para preservar certas virtudes. Mas saiba disto: eu não fui a criança boa de minha família. Na minha juventude, na corte, levei uma vida mais desenfreada do que era julgado apropriado para uma garota daquela época. Minha irmã, sua mãe, era quem tinha a verdadeira bondade dentro de si. Existem poucas pessoas capazes de rivalizar com ela. Tia Beatriz puxou-me para perto dela, alisou meu cabelo e me tranquilizou. Tem de ser você mesma, Zarita. Não pode ser outra pessoa. Além disso, porém, pesando em minha consciência havia um outro pecado, bem maior, que eu não havia confessado a ninguém: a ocasião em que virei o rosto para Deus porque Ele não poupara a vida de minha mãe e de meu irmãozinho bebê.

Enterrei isso bem fundo dentro de mim e nunca falei a respeito. Eu agora suava. Esses pensamentos se acumularam em minha mente, ao mesmo tempo que os passos de padre Besian ressoavam acima de minha cabeça. Havia em mim uma forte convicção de que, se eu ocultasse algo desse padre numa confissão, ele saberia. Resolvi evitar confessar-me com ele. Fracamente, ouvi o entoar de preces enquanto ele recitava seu ofício nocturno, e mergulhei num sono agitado.

Zarita

Na manhã seguinte, Lorena e eu estávamos tranquilamente tomando o pequeno-almoço na companhia do padre Besian quando meu pai entrou a passos largos na sala. Quero falar com você! Ele se dirigiu rispidamente ao padre. Em particular, acrescentou. O padre Besian olhou-o atentamente e disse: Não há nada que não possa ser falado na frente de sua esposa e de sua filha. Você ordenou que estes panfletos fossem distribuídos e pregados por toda a minha cidade? Meu pai abriu um pedaço de papel que trazia amassado na mão e o entregou ao sacerdote. O padre Besian pegou no papel, colocou-o sobre a mesa e alisou-o calmamente. Sim, ordenei, disse ele. Inclinei a cabeça para tentar ler as palavras que estavam escritas no papel. Você não tem o direito de convocar as pessoas desta cidade para dar informações umas das outras dessa maneira. A voz do pai tremia de raiva. Pelo contrário, retrucou o padre Besian, o Chefe Inquisidor, Tomás Torquemada, garante a mim, como agente da Santa Inquisição (maldita), o direito de fazer isso. É vital que erradiquemos a heresia e descubramos se algum dos proclamados convertidos do judaísmo ainda mantém suas antigas práticas religiosas. Descobri que há judeus e muçulmanos vivendo nesta cidade. Suas influências são potencialmente corruptoras. Pela minha experiência, bons resultados são obtidos quando apelamos à população para ficar vigilante e servir como testemunhas. Há meia dúzia de famílias judias confinadas na parte mais pobre da cidade, perto das docas, e alguns poucos pescadores muçulmanos que amarram seus sambucos no píer mais distante. Eles nunca nos causaram problemas. Eu sou o magistrado desta cidade, de forma que você deveria ter falado primeiro comigo antes de divulgar proclamações que podem incitar agitação. O padre Besian deu um gole na sua xícara de leite morno e então a pousou diante de si. A única agitação que se seguirá às minhas instruções será nos corações dos incrédulos». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,