quarta-feira, 24 de novembro de 2021

A Rainha Descalça. Ildefonso Falcones. «O pedido de Caridad rompeu o silêncio da noite. Fazia um tempo que já não se ouvia seu cantarolar; havia-se ido apagando como uma brasa»

jdact

Porto de Cádiz. 7 de Janeiro de 1748

«(…) Estava sentada com as costas contra a laranjeira, como se buscasse refúgio na árvore. Tinha o olhar perdido, alheio à sua presença, e continuou cantarolando, em voz baixa, monotonamente, repetindo vezes seguidas o mesmo estribilho. Melchor verificou que, apesar do frio, tinha o rosto perolado de suor. Tiritava. Sentou-se a seu lado. Não entendia o que dizia, mas aquela voz cansada, aquele timbre, a monotonia, a resignação que impregnava sua voz deixavam transparecer uma dor imensa. Melchor fechou os olhos, rodeou os joelhos com os braços e deixou-se transportar pela canção.

Água.

O pedido de Caridad rompeu o silêncio da noite. Fazia um tempo que já não se ouvia seu cantarolar; havia-se ido apagando como uma brasa. Melchor abriu os olhos. A tristeza e a melancolia da canção haviam conseguido trasladá-lo, uma vez mais, ao banco da galé. Água. Quantas vezes havia tido de pedir água ele mesmo? Acreditou sentir que os músculos de suas pernas, de seus braços e de suas costas se tensionavam como quando o comitre aumentava o ritmo da voga em perseguição de alguma nau sarracena. O torturante apito do comitre aguilhoava seus sentidos enquanto arrancavam a chicotadas a pele de suas costas nuas para que remasse com mais e mais força. O castigo podia durar horas. Ao final, com os músculos de todo o corpo a ponto de rebentar e com as bocas ressecadas, das fileiras de bancos só surgia uma súplica: água! Sei o que é a sede, murmurou para si. Água, implorou de novo Caridad.

Vem comigo. Melchor levantou-se com dificuldade, entorpecido após quase uma hora sentado ao pé da laranjeira. O cigano se esticou e tentou orientar-se para encontrar o caminho da Cartuxa. Dirigia-se aos hortos do mosteiro, onde viviam muitos dos ciganos de Triana, quando o cantarolar havia chamado sua atenção. Vens ou não?, perguntou a Caridad. Ela tentou levantar-se agarrando-se ao tronco da laranjeira. Estava com febre. Estava com fome e frio. Mas sobretudo estava com sede, muita sede. Conseguiu erguer-se quando Melchor já se havia posto em marcha. Dar-lhe-ia água se o seguisse ou a enganaria como haviam feito tantos outros ao longo dos dias que estava em Triana? Caminhou atrás dele. A cabeça lhe dava voltas. Quase todos o haviam feito; quase todos se haviam aproveitado dela. Uma série de luzes provenientes de umas choças amontoadas no caminho iluminou a jaqueta de seda azul-celeste do cigano. Caridad fez um esforço por seguir seu passo. Melchor não se preocupava com ela. Andava lentamente mas erguido, altivo, apoiando-se sem necessidade no bordão de duas pontas próprio do chefe de uma família; às vezes se lhe ouvia falar à noite. A mulher arrastava os pés descalços atrás dele. À medida que se aproximavam da ciganaria, a quinquilharia que adornava as vestiduras de Melchor e o debrum de prata de suas meias refulgiram. Caridad percebeu um bom presságio naqueles brilhos: aquele homem não a havia tocado. Iria proporcionar-lhe beber água». In Ildefonso Falcones, A Rainha Descalça, 2013, Bertrand Editora, 2014, ISBN 978-972-252-815-3.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Amizade, Espanha, Ildefonso Falcones, JDACT, Liberdade,