domingo, 21 de novembro de 2021

Theresa Breslin. Prisioneira da Inquisição. «Após o casamento deles, Lorena se posicionara do lado direito do meu pai e, durante a refeição, frequentemente focinhava-o do modo mais desavergonhado»

Cortesia de wikipedia e jdact

Saulo

A chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491

«(…) Lomas tinha razão. Alguns dos homens tentaram mesmo me encorajar a tomar vinho, e alguns me olharam de um modo que me assustou de verdade. Na hora das refeições nunca me afastava muito do banco de remador de Lomas e, com a sua protecção, fiquei seguro, pelo menos por um tempo. Eu sofria de pesadelos recorrentes, observando minha mãe morrer de fome e revivendo cada momento, várias e várias vezes, do fim brutal do meu pai. Eu passava meus dias obedecendo às ordens de Panipat e me protegendo de qualquer perigo que pudesse me atingir. O constante pensamento que me sustentava era o de que um dia eu talvez vingasse meus pais.

Enquanto isso, um aspecto dessa nova vida era melhor do que qualquer um da antiga. Eu não vivia mais constantemente com fome. Cada dia eu comia o suficiente para encher o estômago. As semanas se passaram e fomos do Outono para o Inverno. E, mesmo que o tempo se tornasse mais tempestuoso, eu havia adquirido o equilíbrio de um marinheiro, de modo que minhas entranhas não se deslocavam com cada movimento do barco num mar agitado. A exposição ao sol bronzeou a superfície da minha pele, e, por baixo dela, eu podia sentir músculos firmes se formando nos meus braços e pernas, e pelo peito. Trabalhar ao ar livre me tornou mais saudável do que eu jamais fora, tanto que o capitão acabou sendo forçado a me arranjar calções maiores para vestir. Sentia-me feliz com tudo isso, embora soubesse que cada dia de desenvolvimento me levava para mais perto do momento em que teria de substituir um dos homens mais velhos e mais fracos e assumir seus remos na proa. Quando esse dia chegasse, Panipat colocaria uma algema metálica no meu tornozelo e juntaria as duas extremidades. A corrente que mantinha os escravos nos seus lugares no banco seria presa à algema, e então eu estaria condenado a remar pelo resto de minha vida. Meu destino estava selado, sem esperanças. Só que... No cós dos meus calções eu ainda tinha a faca.

Zarita

Havia cavaleiros no pátio.Quando ouvi o barulho de cascos, levantei-me de onde estávamos terminando a nossa refeição do meio do dia para ir até à janela e olhar. Zarita!, repreendeu-me meu pai. Já não é mais uma criança. Não deve sair correndo da mesa porque está entediada e ouviu alguma distracção lá fora. Ele estava sentado com a mão sobre a de Lorena. Atormentava-me vê-lo tão envolvido e eu teria usado qualquer desculpa para deixar a mesa onde o pai gostava que fizéssemos todos os dias pelo menos uma refeição juntos. Dois meses atrás, quando se tornou esposa de meu pai, Lorena não tomara, na mesa, o lugar da mãe, do lado oposto ao dele. Desde minha tenra infância eu me sentara entre meus pais, então conversávamos como um trio e, enquanto comíamos, compartilhávamos nossas histórias e brincadeiras. Após o casamento deles, Lorena se posicionara do lado direito do meu pai e, durante a refeição, frequentemente focinhava-o do modo mais desavergonhado.

Embora eu estivesse contente por ela não usar o lugar da mãe, Lorena usava a cadeira que outrora eu ocupava e considerei uma afronta o facto de ela não ter-me consultado antes de decidir onde se sentaria. Nas refeições, sentia-me deixada de lado, pois ela nunca me incluía em qualquer uma de suas conversas e fazia uma carranca de modo desagradável sempre que eu tentava participar. Chegaram cavaleiros, informei meu pai. Um deles é um monge, e os outros usam um uniforme muito estranho. Meu pai fez um ruído de irritação com a língua por não ter conseguido fazer com que eu voltasse para o meu lugar. Então limpou a boca com o guardanapo e foi até à janela.

Veja... Apontei para onde os homens estavam desmontando. Seis cavaleiros. Um monge usando um hábito negro acompanhado por cinco soldados vestindo túnicas com uma incomum cruz verde pintada no peito. Ouvi i pai inspirar fundo. Olhei-o com curiosidade. Quem são eles? Seguiu-se um silêncio, e então meu pai falou firmemente. Os soldados usam o uniforme da Santa Inquisição (maldita). Atrás de mim, ouvi Lorena suspirar alto. Vou retirar-me para o meu quarto, disse ela rapidamente. Não, espere, ordenou-lhe o pai. Disseram-me que é melhor ser completamente receptivos com essas pessoas. Ficará óbvio que perturbaram a nossa refeição. Portanto, minha esposa e minha filha deverão estar sentadas à mesa. Eles poderão se juntar a nós se quiserem comer. Houve uma batida autoritária na porta da frente. Meu pai mandou-me ficar sentada e ele mesmo foi abri-la, interceptando Serafina no caminho. Eu atendo os visitantes, disse-lhe ele. Creio que são representantes da Inquisição (maldita). Serafina deu um olhar assustado para o pai e fez o sinal da cruz na testa». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014, ISBN 978-850-113-940-0.

Cortesia de EGaleraR/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,