Saulo
A
chegada da Inquisição (maldita). 1490 - 1491
«(…) Lomas tinha razão. Alguns
dos homens tentaram mesmo me encorajar a tomar vinho, e alguns me olharam de um
modo que me assustou de verdade. Na hora das refeições nunca me afastava muito
do banco de remador de Lomas e, com a sua protecção, fiquei seguro, pelo menos
por um tempo. Eu sofria de pesadelos recorrentes, observando minha mãe morrer
de fome e revivendo cada momento, várias e várias vezes, do fim brutal do meu
pai. Eu passava meus dias obedecendo às ordens de Panipat e me protegendo de
qualquer perigo que pudesse me atingir. O constante pensamento que me
sustentava era o de que um dia eu talvez vingasse meus pais.
Enquanto isso, um aspecto dessa
nova vida era melhor do que qualquer um da antiga. Eu não vivia mais
constantemente com fome. Cada dia eu comia o suficiente para encher o estômago.
As semanas se passaram e fomos do Outono para o Inverno. E, mesmo que o tempo
se tornasse mais tempestuoso, eu havia adquirido o equilíbrio de um marinheiro,
de modo que minhas entranhas não se deslocavam com cada movimento do barco num
mar agitado. A exposição ao sol bronzeou a superfície da minha pele, e, por
baixo dela, eu podia sentir músculos firmes se formando nos meus braços e
pernas, e pelo peito. Trabalhar ao ar livre me tornou mais saudável do que eu
jamais fora, tanto que o capitão acabou sendo forçado a me arranjar calções maiores
para vestir. Sentia-me feliz com tudo isso, embora soubesse que cada dia de desenvolvimento
me levava para mais perto do momento em que teria de substituir um dos homens
mais velhos e mais fracos e assumir seus remos na proa. Quando esse dia
chegasse, Panipat colocaria uma algema metálica no meu tornozelo e juntaria as duas
extremidades. A corrente que mantinha os escravos nos seus lugares no banco seria
presa à algema, e então eu estaria condenado a remar pelo resto de minha vida. Meu
destino estava selado, sem esperanças. Só que... No cós dos meus calções eu
ainda tinha a faca.
Zarita
Havia cavaleiros no pátio.Quando
ouvi o barulho de cascos, levantei-me de onde estávamos terminando a nossa
refeição do meio do dia para ir até à janela e olhar. Zarita!, repreendeu-me meu
pai. Já não é mais uma criança. Não deve sair correndo da mesa porque está
entediada e ouviu alguma distracção lá fora. Ele estava sentado com a mão sobre
a de Lorena. Atormentava-me vê-lo tão envolvido e eu teria usado qualquer
desculpa para deixar a mesa onde o pai gostava que fizéssemos todos os dias
pelo menos uma refeição juntos. Dois meses atrás, quando se tornou esposa de
meu pai, Lorena não tomara, na mesa, o lugar da mãe, do lado oposto ao dele.
Desde minha tenra infância eu me sentara entre meus pais, então conversávamos
como um trio e, enquanto comíamos, compartilhávamos nossas histórias e
brincadeiras. Após o casamento deles, Lorena se posicionara do lado direito do
meu pai e, durante a refeição, frequentemente focinhava-o do modo mais
desavergonhado.
Embora eu estivesse contente por
ela não usar o lugar da mãe, Lorena usava a cadeira que outrora eu ocupava e
considerei uma afronta o facto de ela não ter-me consultado antes de decidir
onde se sentaria. Nas refeições, sentia-me deixada de lado, pois ela nunca me
incluía em qualquer uma de suas conversas e fazia uma carranca de modo desagradável
sempre que eu tentava participar. Chegaram cavaleiros, informei meu pai. Um
deles é um monge, e os outros usam um uniforme muito estranho. Meu pai fez um
ruído de irritação com a língua por não ter conseguido fazer com que eu
voltasse para o meu lugar. Então limpou a boca com o guardanapo e foi até à
janela.
Veja... Apontei para onde os
homens estavam desmontando. Seis cavaleiros. Um monge usando um hábito negro
acompanhado por cinco soldados vestindo túnicas com uma incomum cruz verde
pintada no peito. Ouvi i pai inspirar fundo. Olhei-o com curiosidade. Quem são
eles? Seguiu-se um silêncio, e então meu pai falou firmemente. Os soldados usam
o uniforme da Santa Inquisição (maldita). Atrás de mim, ouvi Lorena suspirar
alto. Vou retirar-me para o meu quarto, disse ela rapidamente. Não, espere,
ordenou-lhe o pai. Disseram-me que é melhor ser completamente receptivos com
essas pessoas. Ficará óbvio que perturbaram a nossa refeição. Portanto, minha
esposa e minha filha deverão estar sentadas à mesa. Eles poderão se juntar a nós
se quiserem comer. Houve uma batida autoritária na porta da frente. Meu pai
mandou-me ficar sentada e ele mesmo foi abri-la, interceptando Serafina no
caminho. Eu atendo os visitantes, disse-lhe ele. Creio que são representantes
da Inquisição (maldita). Serafina deu
um olhar assustado para o pai e fez o sinal da cruz na testa». In
Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Editora Galera Record, 2014,
ISBN 978-850-113-940-0.
Cortesia de EGaleraR/JDACT
JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Século XV, Religião,