2019
«(…) Tudo isso parece muito
simples, mas na verdade é assombroso. A Catedral de Notre-Dame de Paris, assim
como a maioria das grandes igrejas góticas que se mantêm como as mais belas construções
de inúmeras cidades europeias, foi erguida na Idade Média, uma época marcada
por violência, fome e peste. A construção de uma catedral era uma empreitada
gigantesca, que se estendia por décadas. A Catedral de Chartres levou 26 anos
para ser erguida, e a de Salisbury, 38 anos, mas ambos os projectos foram extraordinariamente
rápidos. A Notre-Dame de Paris levou quase cem anos, e melhorias continuaram
sendo feitas depois disso. Foram necessárias centenas de trabalhadores, e
custou uma fortuna. Seria um feito equivalente, em tempos actuais, à viagem do
homem à Lua.
Aquela enorme igreja foi erigida
por pessoas que viviam em cabanas de madeira com telhado de palha, pessoas que
dormiam no chão porque apenas os ricos tinham camas. As torres têm quase 70
metros de altura, mas os mestres de obras não dispunham de fórmulas matemáticas
para calcular a tensão nesse tipo de estrutura. Eles se guiavam por tentativa e
erro, que de facto eram cometidos. Às vezes, o trabalho desmoronava: a Catedral
de Beauvais veio abaixo duas vezes. Hoje em dia podemos ir até uma loja de
ferragens e comprar um martelo perfeitamente funcional, com uma cabeça de aço,
por um preço muito baixo, mas as ferramentas dos operários que construíram
essas catedrais eram rústicas e o aço custava tão caro que era usado com bastante
moderação, em geral apenas na ponta de uma lâmina. A Notre-Dame e todas as
catedrais são ricamente ornamentadas, mas os trabalhadores usavam túnicas
simples costuradas em casa. A catedral possuía travessas, cálices, crucifixos e
castiçais de ouro e prata, enquanto a congregação bebia em xícaras de madeira e
usava pedaços secos de junco como velas.
Como isso foi possível? Como uma
beleza tão majestosa emergiu em meio à brutalidade e à imundície da Idade Média?
A primeira parte da resposta é algo quase sempre deixado de fora de qualquer
narrativa sobre as catedrais: o clima. O período compreendido aproximadamente
entre os anos 950 e 1250 é chamado pelos climatologistas de Anomalia Climática
Medieval. Ao longo de trezentos anos, o clima na região do Atlântico Norte foi
melhor que o normal. As evidências vêm de anéis de troncos de árvores, núcleos de
gelo e depósitos de lagos, que nos fornecem informações sobre mudanças climáticas
de longo prazo no passado. Ocasionalmente havia anos de colheitas ruins e fome,
mas em média a temperatura era mais alta. O tempo quente era sinónimo de safras
abundantes e de pessoas mais ricas. Foi dessa forma que a Europa escapou da
longa depressão conhecida como a Idade das Trevas.
Todas
as vezes que seres humanos conseguem
produzir mais do que precisam para sobreviver, aparece alguém para se apossar
do excedente. Na Europa medieval, havia dois grupos que faziam isso: a
aristocracia e a Igreja. Os nobres lutavam nas guerras e, entre uma batalha e
outra, praticavam a caça para exercitar suas habilidades de montaria e
conservar o espírito sanguinário. A Igreja construía catedrais. O bispo Maurício
tinha recursos para executar seu projecto, ou, pelo menos, para dar início a ele.
Ele contratou um mestre de obras, alguém cujo nome não sabemos, que elaborou um
projecto. Mas o projecto não foi desenhado em papel. A arte de fabricar papel
era novidade na Europa do século XII, e o produto era um luxo custoso. Livros
como a Bíblia eram escritos em pergaminho, um couro bem fino, e também caro. Os
pedreiros desenhavam seus projectos no piso. Eles espalhavam argamassa no chão
e esperavam até que endurecesse. Em seguida, traçavam o esboço usando um
instrumento pontiagudo de ferro, como um prego. As linhas traçadas eram brancas
a princípio, mas desapareciam conforme o tempo passava, o que permitia que
novos projectos fossem desenhados sobre os antigos. Alguns desses projectos
desenhados no piso sobreviveram até os dias de hoje, e eu tive a oportunidade
de estudar os das catedrais de York e de Wells». In Ken Follett, Notre Dame, 2019,
Editorial Presença, 2019, ISBN 978-972-236-453-9.
Cortesia de EPresença/JDACT
Ken Follett, Literatura, Paris, JDACT,