terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A História do Bichinho-de-Conta.Tiago Rebelo. «Isabel Juliana revelava-se determinada e senhora de uma coragem notável, de tal modo que às vezes fazia esquecer que não passava de uma menina de 14 anos. Era o dia 11 de Abril…»

jdact

«No dia do seu casamento, Isabel Juliana teve um ataque de pânico à beira da cerimónia. Estava há largos minutos pronta, no seu soberbo vestido de noiva em tule, com as rendas, os bordados, a saia volumosa e uma extensa cauda. Levava o exuberante cabelo castanho muito bem penteado e apanhado com ganchinhos escondidos. E usava um véu a cobrir-lhe a cabeça. Passara a última hora a chorar no quarto de vestir, rodeada pelas duas criadas, Engrácia Joaquina e Maria Joaquina, enquanto a costureira dava os derradeiros retoques no seu lindo vestido branco, com a ajuda de uma jovem tímida e assustadiça que tremia a cada ordem seca da mulher. Já para a noiva, a costureira era só delicadezas e, como atribuiu as lágrimas aos nervos, foi apaziguando-a, dizendo que ia correr tudo pelo melhor. Pois bem, não ía!

Isabel Juliana revelava-se determinada e senhora de uma coragem notável, de tal modo que às vezes fazia esquecer que não passava de uma menina de 14 anos. Era o dia 11 de Abril, a Primavera ainda agora chegara e ela só faria quinze em Dezembro. Estava-se em 1768. Sebastião José de Carvalho Melo, conde de Oeiras e omnipotente ministro do senhor dom José, punha e dispunha do reino e dos vassalos de Sua Majestade com uma amplitude muito lata. Extremamente lata, na verdade. E era a este homem, todo-poderoso e que ninguém ousava contrariar, que Isabel Juliana Sousa Coutinho Paim, uma criança magrinha de olhos escuros, fazia frente. Ela mantinha-se de pé, sem se mexer, em cima de um pequeno estrado, um quadrado de madeira da altura de um degrau, que facilitava o trabalho à costureira enquanto esta andava à roda dela com linhas, agulhas e alfinetes.

Justamente, pensou Isabel Juliana, muito direita, olhando a parede com a vista turva de tanto chorar, o que lhe interessava se o vestido ficava perfeito? De resto, parecia-lhe que ficara pronto há bastante tempo e que a mulher jâ nada tinha a fazer, senão fingir melhoramentos para agradar a menina. Saiam todas, ordenou, de súbito, Isabel Juliana. A costureira interrompeu o que fazia, ergueu os olhos por cima dos óculos, e protestou: Não posso sair agora, dona Isabel Juliana. Temos de acabar isto o quanto antes. Está terminado. Saiam todas, já. Preciso de ficar sozinha. A costureira consternada, a sua ajudante, as duas criadas, saíram. Isabel Juliana ficou, como se hipnotizada, a olhar a porta que se fechou. Mas logo um medo terrível tomou conta dela. O coração acelerou e toda ela tremia e transpirava. Teve até dificuldade em respirar. Por instantes, acreditou que morria. Antes morresse..., pensou». In Tiago Rebelo, A História do Bichinho-de-Conta, Edições ASA II, 2022, ISBN 978-989-235-394-4.

 Cortesia de ASA/JDACT

 JDACT, Tiago Rebelo, Literatura, História, Século XVIII,

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Poesia. Soneto. Antero de Quental. «Mas que filha de reis, que anjo ou que fada, era essa que assim a mim descia, do meu casebre à húmida pousada?»

jdact

1862 - 1866

Visita

«Adornou o meu quarto a for do cardo,

Perfumei-o de almíscar recendente;

Vesti-me com a púlpura fulgente,

Ensaiando meus cantos, como um bardo.


Ungi as mãos e a face com o nardo

Crescido nos jardins do Oriente,

A receber com pompa, dignamente.

Misteriosa visita a quem aguardo.


Mas que filha de reis, que anjo ou que fada

Era essa que assim a mim descia,

Do meu casebre à húmida pousada?


Nem princesas, nem fadas. Era, flor,

Era a tua lembrança que batia…

Às portas de ouro e luz do meu amor!

In Antero de Quental, Sonetos Completos, Publicações Europa-América, 1998, ISBN 972-104-421-0.


Cortesia de PEAmérica/JDACT

JDACT, Antero de Quental, Poesia, Açores, Cultura,

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Poesia. Soneto. Antero de Quental. «Sim, vivo e quente! E já a luz do dia não virá dissipá-lo nos meus braços como névoa da vaga fantasia…»

jdact

1862 - 1866

Amor Vivo

«Amar! Mas dum amor que tenha vida…

Não sejam sempre tímidos harpejos,

Não sejam só delírios e desejos

Duma doida cabeça escandecida…

 

Amor que viva e brilhe! Luz fundida

Que penetre o meu ser, e não só beijos

Dados no ar, delírios e desejos

Meu amor… dos amores que têm vida…

 

Sim, vivo e quente! E já a luz do dia

Não virá dissipá-lo nos meus braços

Como névoa da vaga fantasia…


Nem murchará do Sol à chama erguida…

Pois que podem os astros dos espaços

Contra uns débeis amores… se têm vida?»

In Antero de Quental, Sonetos Completos, Publicações Europa-América, 1998, ISBN 972-104-421-0.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

 JDACT, Antero de Quental, Poesia, Açores, Cultura,

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Assim, num abrir e fechar de boca, tudo o que pertence aos infantes passa para o nosso filho Fernando? E o que pedem eles em troca?»

jdact

Agora ou Nunca

«(…) O afastamento toÍnâ a paixão maioÍ, dizem, que destas coisas cada um só sabe o que lhe respeita. Assim terá pensado também Duarte. Entregar-se-ia aos odores sublimes do colo da esposa, daria liberdade às mãos, à boca, ao olfacto, tudo misturado para dar vida ao seu amor ardente, abençoado por Deus, não apenas porque eram ambos crentes, mas porque a sua vida conjugal era irrepreensível. Quando o rei se desprendeu da esposa as horas já iam altas. Duarte jazia deitado de costas no leito, de olhos fechados, como a entrever as fantasias exibidas havia instantes, enquanto dona Leonor mantinha a ternura do corpo satisfeito, partilhado com o seu amante de sempre.

Dos dois, só à rainha servia a insónia voluntária. Por isso vá de dar asas ao desejo, manter o rei acordado, deixar pouco corpo sem afagos, porque qualquer homem assim tão massajado dirá a tudo que sim. Meu carinhoso marido, sussurrava a rainha, deixai que a noite nos traga boas razões para amar, permiti que o cansaço nos conduza à ternura do sono que embala os sonho apagados, ou então, se eles derem luz, se mantenham intensos na nossa mente acordada. A noite era já franca, razão pela qual a chegada das trevas se ia apoderando de Duarte. Um justificado cansaço envolveu-o, mas Leonor, de saudades ternas, combatia essa frouxidão com a suave languidez dos afectos, interessada em não deixar o seu apaixonado apagar-se pela moleza do aconchego.

De repente, tão imprevisível como desnecessária, ouviu-se a voz de Leonor. Dirigia-se ao único ouvinte presente, o ser despojado que estava a seu lado, auditor dos sons que num instante lhe roubaram o bem-estar. Assim, Duarte, por momentos, sentiu-se impedido de saborear a doce preguiça que lhe tinha chegado, pondo-se-lhe os sentidos em guarda logo que as palavras da rainha começaram a ter significado. Não sei como dizer-vos, mas no outro dia, pouco depois de estares em Almeirim, Henrique e Fernando, vossos irmãos e meus amados cunhados, procuraram-me para nos oferecerem o que é deles, balbuciou a rainha, aparentemente receosa. Tudo o que lhes pertence passará para o nosso filho segundo, Fernando, que o querem testamenteiro de ambos, filho adoptivo dos dois e herdeiro de tudo quanto têm. Para vos falar verdade, fiquei naturalmente surpreendida com a oferta, mas logo senti quão honrosa era a proposta vinda de tais senhores.

Perguntas, muitas perguntas assolaram a cabeça do rei. Desde logo, precisava de compreender quais seriam os motivos que levaram os irmãos a aparecer junto da esposa e de presentear o juvenil príncipe daquela forma; por outro lado, como poderia entender que tal oferta fosse anunciada em primeiro lugar à rainha, omitindo os irmãos obrigações que tinham para com ele, ainda mais quando Fernando na entrevista que tiveram omitira essa conversa; depois, mostrava-se apreensivo por tanto altruísmo, uma fartura de bem-fazer, obrigando-o ao pensamento racional que impõe a devida questão: o que quererão eles em troca? Que me dizeis?, interrogou Duarte, espantado. O que me disseste?, voltava ao mesmo, noutro tempo do verbo. Assim, num abrir e fechar de boca, tudo o que pertence aos infantes passa para o nosso filho Fernando? E o que pedem eles em troca?» In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-407-0.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Jorge Sousa Correia, Literatura, Cultura, Conhecimento,

sábado, 18 de fevereiro de 2023

O Mistério do Infante Santo. Jorge Sousa Correia. «Meu senhor! Era já tempo que não vos via e o contentamento que sinto da vossa chegada só vós sabeis, porque sentis como o meu coração se sobressalta quando estais perto de mim»

jdact

Agora ou Nunca

«(…) Já o dia começava a querer entrar na noite quando dom Duarte, com o seu séquito, entrou no lanço sul do Castelo de São Jorge, depois de uma jornada inteira de Almeirim a Lisboa. Chegou para se avistar com Henrique, mais nada o preocupa, apenas subtrairá do seu pensamento a parte que compartilhará com a esposa. Para o aliviar, saiu ao seu encontro o único ser humano capaz de lhe dar às pupilas a sua máxima expansão, incendiá-las de brilho. Leonor, após um merecido intervalo entre partos, apresenta-se radiosa nos seus trinta e poucos anos, um raio de luz, um clarão para os olhos do marido na tarde que esmorecia na bela colina lisboeta.

Ao saltar do cavalo, ainda antes de cumprimentar a esposa, trouxeram-lhe logo a notícia de que dom Henrique estava ausente. Disfarçou mal a irritação, mas logo fez os possíveis por não deixar transparecer esse desconforto. Vendo bem, até nem valia a pena. Determinado a ter uns momentos de felicidade, nem sequer chegou a dar substância ao mundo de averiguações que o seu cérebro lhe exigiu, porque assim que viu a silhueta da rainha a indignação cedeu sem resistir ao exalar os odores perfumados que vinham dela.

Num requebro harmonioso, Leonor dobrou o joelho direito até tocar o chão, e à aproximação da mão do esposo encostou-lhe os lábios, demorando-se o tempo suficiente para Duarte sentir na pele o calor e a humidade segregada pelo tecido finíssimo dos lábios aveludados. Este contacto, na posição submissa em que se encontrava, terminaria com todos os maus pensamentos, um reino de coisas abomináveis que não resistiam ao encontro poderoso daqueles olhos. Faltava ouvir-lhe a voz para que tudo ficasse completo, o paraíso dentro do espaço alargado do Castelo de São Jorge, ou no quarto de dormir, mais tarde, quando a paixão não dispensasse alimento.

Meu senhor! Era já tempo que não vos via e o contentamento que sinto da vossa chegada só vós sabeis, porque sentis como o meu coração se sobressalta quando estais perto de mim. Palavras amáveis as da rainha, insinuando um conjunto de propostas que só eles entendiam. Na vossa ausência o tempo passa devagar, pasma, e o coração até aí tão sossegado, lazarento, sem se ouvir, ganha fúria quando vos miro. Levantai-vos, senhora. Chegai até mim, posto que qualquer trejeito do vosso rosto não quero perdê-lo, agora que já não estou ausente e nada quero dispensar, retorquiu dom Duarte, afectuoso.

Terminada a recepção institucional, com visíveis manifestações de carinho e ofertas de ternura de parte a parte, o rei deixou a esplanada da fortaleza e dirigiu-se para o Paço Real, seguido pela esposa , para logo fazer os últimos aprontos para a sua estada e encomendar a ceia. A hora assim o exigia e Duarte pretendia descansar da jornada, incluindo a hora em que se deitaria com a amada à luz insignificante das velas». In Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-407-0.

Cortesia de CdoAutor/JDACT

JDACT, Jorge Sousa Correia, Literatura, Cultura, Conhecimento,

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo. João P. Rodrigues Carvalho. «Um lento desprazer, uma solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima, como um silêncio, o antigo de minha voz…»

jdact e Cortesia de wikipedia

«(…)

Transforma-se o amador na coisa amada com seu

feroz sorriso, os dentes,

as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído

e silêncio [...].

O amador transforma-se de instante para instante,

e sente-se o espírito imortal do amor

criando a carne em extremas atmosferas, acima

de todas as coisas mortas. (HELDER, 2004)

Um lento prazer esgota a minha voz. Quem

canta empobrece nas frementes cidades

revividas. Empobrece com a alegria

por onde se conduz, e então é doce

e mortal. (Ibid.)

Um lento desprazer, uma

solidão verde, ou azul, esgota por dentro e para cima,

como um silêncio, o antigo

de minha voz. (Ibid.)

Sei de um poeta que passou os anos mais próximos do seu

suicídio

a bater com os nós dos dedos pelas paredes [...]

e foi-se vendo pelo seu rosto que não era fácil tomar a cargo

a coruscante caligrafia do mundo

mas ele tomou-a até onde pôde e o corpo era já

o outro lado da agonia um texto monstruoso que se decifrava

apenas a si próprio (Ibid.)

Eu poderia contar  gemeamente duas histórias: uma  afro-carnívora,  simbólica, a outra silenciosa, subtil, japonesa. De cada uma delas acabariam por decorrer um tom e um tema. A história carnívora foi colhida algures, de leitura, e respeita uma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome do povo: baobab,  devoravam os cadáveres,  deles iam urdindo a sua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a tribo investia-se  nas  transmutações  gerais: a  morte  levava  o  nome, e  o  nome, activo e tangível, crescia na terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das copas, o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável entendimento das metamorfoses da carne no esquema orgânico da matéria. (HELDER, 1985)». In João P. Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.

Cortesia de FCSH/JDACT

JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,

O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo. João P. Rodrigues Carvalho. «… assumindo o poeta o preço altíssimo desta alteração: o assassínio do Outro (e do Eu (suicida), tornado Outro), o crime inerente à poesia (como a lei é inerente à polícia), o seu posicionamento anticultural, antissocial, irónico…»

jdact e Cortesia de wikipedia

«(…) Além desta tensão, desta intensíssima incoerência dentro do texto, a reescrita apresenta uma outra grande vantagem para o crítico (além, ainda, da concentração de bibliografia activa): como todos os poemas estiveram vulneráveis a potenciais alterações ao longo da vida do autor, eles acabaram por ser publicados na mesma data, na data da morte deste. Assim, rejeita-se a leitura cronológica, sequencial, abrindo-se um único poema (e talvez, também, um segundo poema-sombra, a tal raio de luz, apócrifo, incluindo os textos excluídos), o poema contínuo (um poema equivalente ao próprio nome autoral: o poema Herberto Helder), para ser lido livremente, como um mosaico, podendo ser visto (e percorrido com o corpo, como braille) a partir de qualquer um dos seus ladrilhos. Apesar da expressão poema contínuo ser abandonada no título das antologias seguintes (Ofício Cantante e Poemas Completos), a noção dum poema único, duma tensão única, permanecerá: por exemplo, na contínua insistência em vocábulos como língua, idioma e sintaxe, pressentindo uma única linha secreta que una todos os poemas num, uma fricção violenta (entre estes) criando uma única corrente eléctrica, harmonizada por uma lei absurda, incompreensível para nós, finitos leitores.

Fora dos Poemas Completos, aparecem ainda os livros de poemas estrangeiros mudados para português (não-traduzidos): O Bebedor Nocturno e Doze Nós numa Corda; poemas que definitivamente pertencem à autoria de Herberto Helder (não-tradutor), que os lê em francês, inglês, castelhano, italiano ou até português, e os transforma pela razão secreta do seu poema (compreendendo-os no poema contínuo), tal como faz à sua própria biografia: rouba a sua singularidade, o seu segredo, e torna-os singularmente seus: tensos, Diferentes. Quanto à estrutura deste ensaio, ele começará por pensar o papel da memória no poema, a sua transformação (o fingimento, no idioma pessoano) em imemorialidade; assumindo o poeta o preço altíssimo desta alteração: o assassínio do Outro (e do Eu (suicida), tornado Outro), o crime inerente à poesia (como a lei é inerente à polícia), o seu posicionamento anticultural, antissocial, irónico, subvertendo as leis morais. A ironia, por sua vez, invocará a questão do humor (onde um excerto do romance 2666 de Roberto Bolaño é chamado, pela sua terrível fusão de humor negro com a mais explícita violência), duplicando o significado de tudo (a expectativa e a sua quebra, como lei fundamental da comicidade), ironicamente: dizendo uma coisa e significando o seu contrário, partindo o mundo ao meio, espelhando-o, tenso, lutando contra si mesmo, imagem-contra-imagem. Esta leitura violentamente polar obscurecerá o poema, tornando a sua leitura impossível, paradoxal, quebrando a nossa razão (por força da sua), fechando-se sobre si mesmo, isolado, independente, um ponto concreto no espaço, liberto do Homem. E este encerramento, por sua vez, trará o silêncio (sendo a linguagem uma marca humana), como possível fundo do poema, o indizível, marcado na concretude, no tacto (o mais concreto dos sentidos), no poeta tornado puro corpo.

Por último, uma ressalva em relação à lacónica bibliografia passiva neste ensaio: por influência excessiva (não havendo outro tipo possível) do poeta estudado, tentou-se libertar a leitura, afastando-a da cultura, não academizando o autor mais do que já terá de ser feito, criminosamente (transgredindo a lei do poema, traindo-o, estudando-o num ambiente universitário); tentando criar-se uma leitura pessoalíssima, o mais perto possível do poema, para poder, depois, expandir-se o máximo possível. A bibliografia partirá, assim, da obra helbertiana, maioritariamente (ao ler os dois livros de crítica literária escolhidos (Tatuagem & Palimpsesto de Manuel Gusmão e Arte de Sublinhar de Gustavo Rubim), infelizmente, o movimento, por vezes, inverte-se: lendo-se da prosa ensaística para o poema), quer directamente (no caso de Borges, Camões, Cesariny, Kierkegaard, Michaux, Nietzsche, Rimbaud; todos nomeados em Herberto Helder), quer indirectamente (especialmente no caso de Emmanuel Levinas, cujo pensamento foi fundamental para a leitura éptica da obra, para a reflexão sobre a natureza do seu crime)». .In João P. Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.

Cortesia de FCSH/JDACT

JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,

O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo. João P. Rodrigues Carvalho. «Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante. Se toco (e é apaixonante) a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra»

 
jdact e Cortesia de wikipedia

«(…)

Mulher, casa e gato.

Uma pedra na cabeça da mulher; e na cabeça

da casa, uma luz violenta.

Anda um peixe comprido pela cabeça do gato.

A mulher senta-se no tempo e a minha melancolia

pensa-a, enquanto

o gato imagina a elevada casa.

Eternamente a mulher da mão passa a mão

pelo gato abstracto,

e a casa e o homem que eu vou ser

são minuto a minuto mais concretos.

[...]

Se toco a mulher toco o gato, e é apaixonante.

Se toco (e é apaixonante)

a mulher, toco a pedra. Toco o gato e a pedra.

Toco a luz, ou a casa, ou o peixe, ou a palavra.

Toco a palavra apaixonante, se toco a mulher

com seu gato, pedra, peixe, luz e casa.

A mulher da palavra. A Palavra.

[...] (HELDER, 2004)»

 

«Pois meus olhos não cansam de chorar

tristezas, que não cansam de cansar-me;

pois não abranda o fogo, em que abrasar-me

pôde quem eu jamais pude abrandar;

não canse o cego Amor de me guiar

a parte donde não saiba tornar-me;

nem deixe o mundo todo de escutar-me,

enquanto me a voz fraca não deixar.

E se em montes, rios, ou em vales,

piedade mora, ou dentro mora Amor

em feras, aves, prantas, pedras, águas,

ouçam a longa história de meus males

e curem sua dor com minha dor;

que grandes mágoas podem curar mágoas.

(CAMÕES, 1980)

.In João P. Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.

Cortesia de FCSH/JDACT

JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder, 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo. João P. Rodrigues Carvalho. «Também pode ser uma ironia, explicitando a perpétua posição irónica do poema em relação à prosa, invertendo-a, atacando-a, ainda que não podendo prescindir dela, para poder marcar a sua própria superioridade…»

jdact e Cortesia de wikipedia

«Análise da obra literária de Herberto Helder, contrapondo a autossuficiência de cada poema à possível existência de um único poema contínuo, uma linha semântica percorrendo todos os poemas da obra. Partindo da arte poética Photomaton & Vox, como possível chave de leitura, é pensada a sua concepção de poema: a criminalidade, como acto antissocial, apocalíptico, atacando e destruindo o mundo, isolando-se no processo. Esta destruição começa na própria memória do poeta, partindo depois para o Outro, alterado, assassinado, e ironizado, como tudo, alvos do negro riso poético. Este tom irónico duplica o significado de todo o símbolo, dualizando o sentido do poema, tornando impossível a sua leitura plena, encerrando-o, dentro de si mesmo, obscuro, ponto inalcançável para o leitor, que simplesmente sofrerá o mesmo destino do poeta e das suas fontes: a morte, a transformação. Este fracasso na leitura do poema aponta-o para o silêncio, como paz final: ausência da palavra criminosa, estado pré-linguístico onde o mal (do poema e do leitor) seria evitado, onde o poeta, demonizado, seria salvo. Assim sendo, esta dissertação falha». In Resumo

Herberto Helder morreu a 23 de Março de 2015, finalizando a sua obra; exceptuando os livros póstumos entretanto publicados (Letra Aberta e Poemas Canhotos, e, possivelmente, outros que ainda se irão publicar), que, de qualquer maneira, apenas se somaram, ou somarão, à obra, sem a rasurar. Este fim biológico torna-se especialmente significativo para o estudo literário dum poeta em constante reescrita, constantemente ameaçando (alterando e eliminando) os seus poemas anteriores (agora salvos), num exercício exclusivista que acabou por culminar nos Poemas Completos. Este exercício vitalício tem um instante peculiar na antologia (de 2001) Ou o poema contínuo, onde o poeta, explicitamente: no título, une os poemas escolhidos numa única tensão, um único poema, um poema contínuo, purificado dos textos menores, reconstruindo a obra. Sendo Herberto Helder essencialmente um poeta, este livro tem, inevitavelmente, uma tendência totalizante, excluindo tudo o resto; no entanto, aqui emerge o caso particular dos livros Os Passos em Volta (um conjunto de contos) e Photomaton & Vox (em parte, uma arte poética, completada por seis poemas, incluídos nos Poemas Completos, criando a secção Dedicatória), dois livros de prosa (ficcional e ensaística, respectivamente), genologicamente à margem do poema contínuo, como fronteiras que marcam o centro: como linhas da circunferência necessárias para marcar o centro do círculo (quer como arte poética, pressupondo um poema, quer como prosa ficcional, recuperando temas e até excertos, no conto O estilo, deste). O próprio Photomaton & Vox expõe ostensivamente esta tensão interna na obra, entre centro e fronteira: Não nos acercamos da prosa, a prosa não existe, a prosa é uma instância degradada do poema, a prosa não presume uma qualidade particular de visão e execução, especula um modo extensivo e extrapolado de desgaste do tempo, do espaço. Apesar do tom hiperbólico, não existem dúvidas sobre a existência dum paradoxo: a prosa é declarada inexistente enquanto se escreve (impossivelmente, autodestruindo-se, ironicamente). Uma segunda divergência surge no autorretrato presente no mesmo livro: Isto pode ser uma arte poética; onde este texto se coloca contra a natureza absurda da poesia, adversa às simplificações da cultura, às explicações, que mortificam o poema, que lhe tiram a sua ambiguidade, o seu potencial, explicar a obra (como uma arte poética, em parte, faz), por muito singular que seja a explicação, equivaleria a excluir todos os seus poemas, já não-poéticos: explicados. Esta contradição exige que o próprio livro de prosa duvide da sua natureza: Também pode ser uma ironia, explicitando a perpétua posição irónica do poema em relação à prosa, invertendo-a, atacando-a, ainda que não podendo prescindir dela, para poder marcar a sua própria superioridade (necessariamente comparativa, necessitando de um segundo termo)» .In João P. Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.

Cortesia de FCSH/JDACT

JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,

domingo, 12 de fevereiro de 2023

Levantado do Chão. José Saramago. «João foi feito, ou, para biblicamente falar, concebido, nesse mesmo dia, o que, segundo parece, é raro, pois da primeira vez, por razões do desconcerto da ocasião, não costuma a semente pegar, só depois»

jdact e Cortesia de wikipedia

«(…) Domingos Mau-Tempo não chegará a velho. Um dia, quando já tiver feito cinco filhos à mulher, mas não por essa razão tão comum, passará uma corda pelo ramo duma árvore, num descampado quase à vista de Monte Lavre, e enforcar-se-á. Entretanto, andou com a casa às costas por outros lugares, fugiu por três vezes à família e da última não pôde tomar às boas pazes porque tinha chegado a sua hora. Fim desgraçado lhe futurara o sogro Laureano Carranca quando teve de ceder à teimosia de Sara, enquerençada ao ponto de jurar que se não casasse com Domingos Mau-Tempo, não casaria com ninguém. Bem clamou Laureano Carranca em suas cóleras, É um landim relaxado, com fama de bêbedo e que mal acabará. Andava nisto a guerra familiar, eis que Sara da Conceição apareceu grávida, argumento derradeiro e em geral eficaz quando os da persuasão e imploração se gastaram. Certa manhã, Sara da Conceição saiu de casa, era Maio o mês, e atravessou os campos até ao lugar onde combinara encontrar-se com Domingos Mau-Tempo. Ali estiveram nem tanto como meia hora, deitados entre o trigo alto, e quando Domingos regressou às suas formas e Sara a casa dos pais, ele ia assobiando de comprazido e ela tremia como se o sol não queimasse já. E, quando atravessou a ribeira a vau, teve de ir agachar-se e lavar-se debaixo duns salgueiros porque o sangue não parava de escorrer-lhe pelas pernas.

João foi feito, ou, para biblicamente falar, concebido, nesse mesmo dia, o que, segundo parece, é raro, pois da primeira vez, por razões do desconcerto da ocasião, não costuma a semente pegar, só depois. E é certo que os seus olhos azuis, que ninguém na família tinha ou se lembrava de ter visto em parente chegado ou afastado, grande espanto causaram, senão suspeita, sabemos nós que injusta esta era em mulher que só para rectamente casar se desviara do direito caminho das virgens e fora deitar-se no meio duma seara de trigo com aquele único homem, abrindo de sua vontade as pernas, com muito sofrimento. Já de vontade não fora aquela outra rapariga, quase quinhentos anos antes, que estando um dia sozinha na fonte a encher sua infusa, viu chegar-se um daqueles estrangeiros que viera com Lamberto Horques Alemão, alcaide-mor de Monte Lavre por mercê do rei dom João o primeiro, gente de falar desentendido, e que, desatendendo aos gritos e rogos da donzela, a levou para uma espessura de fetos onde, a seu prazer, a forçou. Era um galhardo homem de pele branca e olhos azuis, que não tinha outra culpa que o atiçado do sangue, mas ela não foi capaz de lhe querer bem e sozinha pariu como pôde ao fim do tempo.

Assim, durante quatro séculos estes olhos azuis vindos da Germânia apareceram e desapareceram, tal como os cometas que se perdem no caminho e regressam quando com eles já se não conta, ou simplesmente porque ninguém cuidou de registar as passagens e descobrir a sua regularidade. Está a família na sua primeira mudança. Vieram de Monte Lavre a São Cristóvão em dia de Verão que acabou chuvoso. Atravessaram todo o concelho de norte a sul, que ideia teria dado na cabeça de Domingos Mau-Tempo mudar-se para tão longe, este homem é um remendão, um landim relaxado, mas em Monte Lavre já a vida se lhe ia dificultando, era o vinho e alguns tratos de mão canhota, Senhor sogro, empreste-me a sua carroça e o seu burro, que eu vou viver para São Cristóvão, Pois vá e veja se cobra juízo para seu bem, de sua mulher e filho, e traga-me depressa o burro e a carroça, que me fazem falta. Vieram atalhando caminho, por carreteiros, aproveitando quando podiam a estrada real, mas logo para encurtar metendo ao campo, pelo sopé dos cabeços. Almoçaram à sombra duma árvore, e Domingos Mau-Tempo emborcou uma garrafa de vinho que se perdeu com o suor da jornada. Viram Montemor de longe, a banda esquerda, e continuaram para o sul. Choveu-lhes a uma hora de São Cristóvão, foi um dilúvio de mau prenúncio, mas hoje o dia está de sol e Sara da Conceição, sentada no quintal, ponteia uma saia, enquanto o filho, ainda pouco seguro nas pernas, vai tenteando ao longo da parede da casa». In José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT

JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita, 

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Dan Brown. O Símbolo Perdido. «Eu não sabia que os modelos de metas-sistemas tinham avançado tanto. Pode crer que sim, conseguiu responder Trish, fascinada por estar falando com Katherine. Os modelos de dados são uma tecnologia em franca expansão que pode ser aplicada a diversas áreas»

jdact

«(…) Um pedido estranho, pensou Trish, mas com certeza factível. Dez anos antes, a tarefa teria sido impossível. Actualmente, porém, com a internet, a rede mundial de computadores e a crescente digitalização de grandes bibliotecas e museus do mundo, o objectivo de Katherine podia ser alcançado usando uma ferramenta de busca relativamente simples equipada com um exército de módulos de tradução e algumas palavras-chave bem escolhidas. Sem problemas, disse Trish. Muitos dos livros de referência da biblioteca do laboratório continham trechos em línguas antigas, de modo que ela várias vezes precisava elaborar módulos de tradução específicos com base em Reconhecimento Óptico de Caracteres, ou OCR, para gerar textos em inglês a partir de línguas obscuras. Ela devia ser a única especialista em metas-sistemas do mundo a ter elaborado módulos desse tipo em frísio antigo, maek e acádio. Os módulos iriam ajudar, mas o segredo para construir um agente de busca, ou web spider, eficaz era escolher as palavras-chave certas. Específicas, mas não excessivamente restritivas.

Katherine parecia estar um passo à frente de Trish, pois já estava anotando algumas palavras num pedaço de papel. Depois de anotar várias, parou, pensou alguns instantes e incluiu outras. Pronto, disse por fim, entregando o papel a Trish. Trish percorreu rapidamente a lista de strings a serem buscados, e seus olhos se arregalaram ao ver as sequências de caracteres. Que tipo de lenda maluca Katherine está investigando? Você quer procurar todas essas expressões-chave? Uma das palavras Trish nem reconheceu. Meu Deus, que língua é essa? Acha que vamos encontrar tudo isso num lugar só? Ipsis litteris? Eu gostaria de tentar. Trish teria dito impossível, mas aquela palavra era proibida ali dentro. Katherine considerava esse tipo de mentalidade perigosa numa disciplina que muitas vezes transformava falsos pressupostos em verdades confirmadas. Trish Dunne duvidava seriamente que aquela busca fosse entrar nessa categoria.

Quanto tempo até termos os resultados?, perguntou Katherine. Alguns minutos para programar o spider e disparar a pesquisa. Depois disso, talvez uns 15 para ele concluir a busca. Rápido assim? Katherine parecia animada. Trish aquiesceu. As ferramentas de busca convencionais muitas vezes levavam um dia inteiro para se arrastarem por todo o universo on-line, encontrar novos documentos, digerir seu conteúdo e incluí-los na base de dados da pesquisa. Mas Trish não iria programar algo simples assim. Vou escrever um programa chamado delegador, explicou Trish. Não é lá muito católico, mas é rápido. Essencialmente, é um software que coloca as ferramentas de busca de outras pessoas para fazer o nosso trabalho. A maioria das bases de dados tem uma função de busca embutida... bibliotecas, museus, universidades, governos. Então eu vou programar um spider que encontra as ferramentas de busca deles, insere as palavras-chave que você me deu e pede que eles façam a pesquisa. Assim, nós aproveitamos a capacidade de milhares de ferramentas e fazemos com que elas trabalhem simultaneamente. Katherine parecia impressionada. Processamento paralelo.

Uma espécie de metassistema.

Eu chamo você se encontrar alguma coisa. Obrigada, Trish. Katherine afagou-lhe as costas e se encaminhou para a porta. Vou estar na biblioteca. Trish começou a escrever o programa. Codificar um spider de busca era uma tarefa menor, bem abaixo de seu nível de competência, mas ela não ligava para isso. Faria qualquer coisa por Katherine Solomon. Às vezes, Trish ainda não conseguia acreditar na sorte que a levara até ali.

Você foi mais longe do que imaginava, garota.

Pouco mais de um ano antes, Trish havia deixado seu emprego como analista de metas-sistemas numa das grandes empresas impessoais da indústria de alta tecnologia. Nas horas vagas, trabalhava como programadora freelance e criou um blog sobre a indústria, Futuras Aplicações em Análise Computacional de Metas-sistemas, embora tivesse dúvidas de que alguém o lesse. Então, certa noite, seu telefone tocou. Trish Dunne?, indagou uma voz educada de mulher. Sim, sou eu. Quem está falando? Meu nome é Katherine Solomon. Trish quase desmaiou ali mesmo. Katherine Solomon?

Eu acabei de ler o seu livro, Ciência Noética: Portal Moderno para o Conhecimento Antigo. Até escrevi sobre ele no meu blog! É, eu sei, devolveu a mulher em tom cortês. É por isso que eu estou ligando. É claro que é por isso, percebeu Trish, sentindo-se uma boba. Mesmo os cientistas mais brilhantes pesquisam o próprio nome no Google. Achei seu blog intrigante, disse-lhe Katherine. Eu não sabia que os modelos de metas-sistemas tinham avançado tanto. Pode crer que sim, conseguiu responder Trish, fascinada por estar falando com Katherine. Os modelos de dados são uma tecnologia em franca expansão que pode ser aplicada a diversas áreas». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Washington DC, Dan Brown, Literatura, Maçonaria,

O Símbolo Perdido. Dan Brown. «Adoraria saber se essa lenda já foi corroborada em algum momento da história. De toda a história? Katherine assentiu. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer idioma, em qualquer momento da história»

jdact

«(…) A directora do ES parecia estar com uma ideia totalmente diferente na cabeça. Anderson também parecia intrigado. Segurança nacional? Com todo o respeito, senhora... Até onde eu sei, interrompeu ela, o meu cargo é superior ao seu. Sugiro que faça exactamente o que eu disser, sem questionar nada. O chefe de polícia aquiesceu e engoliu em seco. Mas não deveríamos pelo menos tirar as digitais dos dedos para confirmar que a mão pertence a Peter Solomon? Eu confirmo, disse Langdon, sentindo uma certeza nauseante. Reconheço o anel... e a mão dele. Ele fez uma pausa. Mas as tatuagens são novas. Alguém fez isso com ele recentemente. Como disse? Pela primeira vez desde sua chegada, a directora pareceu perturbada. A mão está tatuada? Langdon assentiu. O polegar tem uma coroa. E o indicador, uma estrela. Sato sacou seus óculos e caminhou até à mão, rodeando-a feito um tubarão. Além disso, disse Langdon, embora não dê para ver os outros três dedos, tenho certeza de que eles também vão estar com as pontas tatuadas. Sato pareceu intrigada com a observação e gesticulou para Anderson se aproximar. Chefe, pode dar uma olhada nos outros dedos para nós, por favor? Anderson se agachou ao lado da mão, tomando cuidado para não tocar nela. Aproximou a bochecha do chão e examinou a parte de baixo dos dedos fechados. Ele tem razão, directora. Todos os dedos estão tatuados, mas não estou conseguindo ver muito bem o que os outros... Um sol, uma lamparina e uma chave, disse Langdon em tom neutro. Sato ficou de frente para Langdon, avaliando-o com os olhos miúdos.

E como é que o senhor pode saber isso? Langdon retribuiu seu olhar. A imagem da mão humana marcada dessa forma nas pontas dos dedos é um ícone muito antigo. É conhecida como a Mão dos Mistérios. Anderson se levantou abruptamente. Esta coisa tem nome? Langdon aquiesceu. É um dos ícones mais secretos do mundo antigo. Sato entortou a cabeça. Então posso perguntar que raios isso está fazendo no meio do Capitólio dos Estados Unidos? Langdon desejou poder acordar daquele pesadelo. Tradicionalmente, minha senhora, a mão era usada como um convite. Um convite... para quê?, quis saber ela. Ele baixou os olhos para os símbolos tatuados na mão cortada do amigo. Durante séculos, a Mão dos Mistérios representou uma convocação mística. Basicamente, ela é um convite para receber conhecimentos sagrados, um saber protegido a que apenas uma pequena elite tinha acesso. Sato cruzou os braços finos e ergueu para ele os olhos negros feito carvão. Bem, professor, para alguém que alega não ter a menor ideia do que está fazendo aqui... o senhor está se saindo muito bem até agora.

Katherine Solomon vestiu a bata branca e começou sua habitual rotina de chegada, sua ronda, como dizia o irmão. Como uma mãe nervosa conferindo o sono de um bebé, Katherine espichou a cabeça para dentro da sala de máquinas. O gerador de hidrogénio estava funcionando bem, com os tanques de reserva aninhados em segurança nos suportes. Katherine prosseguiu pelo corredor até à sala de armazenamento de dados. Como sempre, as duas unidades holográficas redundantes de backup emitiam um zumbido reconfortante dentro de seu compartimento com temperatura controlada. Toda a minha pesquisa, pensou ela, olhando através do vidro de segurança de 7,5 centímetros de espessura. Os dispositivos de armazenamento holográfico de dados, ao contrário de seus antepassados do tamanho de geladeiras, pareciam mais os elegantes componentes de um aparelho de som, cada qual empoleirado num pedestal em forma de coluna.

Os dois drives holográficos do laboratório eram sincronizados e idênticos, funcionavam como backups redundantes para salvar cópias iguais de seu trabalho. A maioria dos protocolos de armazenamento de dados recomendava um segundo sistema de backup que fosse externo ao local, para o caso de haver um terremoto, um incêndio ou um roubo, mas Katherine e o irmão haviam concordado que a confidencialidade era de suma importância; se aqueles dados saíssem dali para um servidor externo, eles não poderiam mais ter certeza de que continuariam secretos. Convencida de que tudo estava correndo bem ali, ela voltou pelo corredor. Ao fazer a curva, porém, viu algo inesperado do outro lado do laboratório. Mas o que é isso? Um brilho difuso emanava de todo o equipamento. Ela se apressou para examiná-lo, surpresa ao ver luz saindo de trás da divisória de plexiglas da sala de controle.

Ele está aqui. Katherine atravessou voando o laboratório, chegou à porta da sala de controle e a abriu. Peter!, disse, entrando às pressas. A moça gorducha diante do terminal da sala de controle se sobressaltou. Ai, meu Deus! Katherine! Que susto você me deu! Trish Dunne, a única outra pessoa na face da Terra com permissão para entrar al, era a analista de metassistemas de Katherine e raramente trabalhava nos fins de semana. A ruiva de 26 anos era um génio em elaboração de modelos de dados e havia assinado um contrato de confidencialidade digno da KGB.

Naquela noite, estava aparentemente analisando dados no telão de plasma que cobria a parede da sala de controle, um imenso monitor que parecia ter saído do centro de controle de missões da NASA. Desculpe, disse Trish. Eu não sabia que já tinha chegado. Estava tentando terminar antes de você e seu irmão se reunirem. Você falou com ele? Ele está atrasado e não atende o telefone móvel. Trish fez que não com a cabeça. Aposto que ele ainda está tentando descobrir como usar o iPhone novo que deu para ele. Katherine gostava do bom humor de Trish e a presença da ruiva ali acabara de lhe dar uma ideia. Na verdade, que bom que você está aqui hoje. Talvez possa ajudar-me com uma coisinha, se não se importar. Seja o que for, tenho certeza de que é melhor do que futebol. Katherine respirou fundo, acalmando a própria mente. Não sei muito bem como explicar isso, mas hoje mais cedo ouvi uma história estranha...

Trish Dunne não sabia que história Katherine Solomon tinha escutado, mas algo a deixara claramente nervosa. Os olhos cinzentos geralmente calmos de sua chefe pareciam ansiosos, e ela já havia ajeitado os cabelos atrás das orelhas três vezes desde que entrara na sala, um sinal de nervosismo, como Trish costumava dizer. Cientista brilhante. Péssima jogadora de pôquer. Para mim, disse Katherine, essa história parece inventada... tipo uma lenda antiga. Mas... Ela fez uma pausa, arrumando outra vez uma mecha atrás da orelha. Mas...? Katherine deu um suspiro. Mas hoje uma fonte segura me disse que a lenda é verdadeira. Certo... Aonde ela quer chegar com isso? Vou conversar com meu irmão a respeito, mas antes disso talvez você possa me ajudar a lançar alguma luz sobre a questão. Adoraria saber se essa lenda já foi corroborada em algum momento da história. De toda a história? Katherine assentiu. Em qualquer lugar do mundo, em qualquer idioma, em qualquer momento da história». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Washington DC, Dan Brown, Literatura, Maçonaria,