Agora ou Nunca
«(…) O afastamento toÍnâ a paixão
maioÍ, dizem, que destas coisas cada um só sabe o que lhe respeita. Assim terá pensado
também Duarte. Entregar-se-ia aos odores sublimes do colo da esposa, daria liberdade
às mãos, à boca, ao olfacto, tudo misturado para dar vida ao seu amor ardente, abençoado
por Deus, não apenas porque eram ambos crentes, mas porque a sua vida conjugal era
irrepreensível. Quando o rei se desprendeu da esposa as horas já iam altas. Duarte
jazia deitado de costas no leito, de olhos fechados, como a entrever as fantasias
exibidas havia instantes, enquanto dona Leonor mantinha a ternura do corpo satisfeito,
partilhado com o seu amante de sempre.
Dos dois, só à rainha servia a insónia
voluntária. Por isso vá de dar asas ao desejo, manter o rei acordado, deixar
pouco corpo sem afagos, porque qualquer homem assim tão massajado dirá a tudo que
sim. Meu carinhoso marido, sussurrava a rainha, deixai que a noite nos traga
boas razões para amar, permiti que o cansaço nos conduza à ternura do sono que embala
os sonho apagados, ou então, se eles derem luz, se mantenham intensos na nossa mente
acordada. A noite era já franca, razão pela qual a chegada das trevas se ia
apoderando de Duarte. Um justificado cansaço envolveu-o, mas Leonor, de saudades
ternas, combatia essa frouxidão com a suave languidez dos afectos, interessada em
não deixar o seu apaixonado apagar-se pela moleza do aconchego.
De repente, tão imprevisível como
desnecessária, ouviu-se a voz de Leonor. Dirigia-se ao único ouvinte presente, o
ser despojado que estava a seu lado, auditor dos sons que num instante lhe roubaram
o bem-estar. Assim, Duarte, por momentos, sentiu-se impedido de saborear a doce
preguiça que lhe tinha chegado, pondo-se-lhe os sentidos em guarda logo que as palavras
da rainha começaram a ter significado. Não sei como dizer-vos, mas no outro dia,
pouco depois de estares em Almeirim, Henrique e Fernando, vossos irmãos e meus amados
cunhados, procuraram-me para nos oferecerem o que é deles, balbuciou a rainha,
aparentemente receosa. Tudo o que lhes pertence passará para o nosso filho segundo,
Fernando, que o querem testamenteiro de ambos, filho adoptivo dos dois e herdeiro
de tudo quanto têm. Para vos falar verdade, fiquei naturalmente surpreendida com
a oferta, mas logo senti quão honrosa era a proposta vinda de tais senhores.
Perguntas, muitas perguntas assolaram
a cabeça do rei. Desde logo, precisava de compreender quais seriam os motivos
que levaram os irmãos a aparecer junto da esposa e de presentear o juvenil
príncipe daquela forma; por outro lado, como poderia entender que tal oferta fosse
anunciada em primeiro lugar à rainha, omitindo os irmãos obrigações que tinham para
com ele, ainda mais quando Fernando na entrevista que tiveram omitira essa conversa;
depois, mostrava-se apreensivo por tanto altruísmo, uma fartura de bem-fazer, obrigando-o
ao pensamento racional que impõe a devida questão: o que quererão eles em troca?
Que me dizeis?, interrogou Duarte, espantado. O que me disseste?, voltava ao mesmo,
noutro tempo do verbo. Assim, num abrir e fechar de boca, tudo o que pertence aos
infantes passa para o nosso filho Fernando? E o que pedem eles em troca?» In Jorge
Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, Clube do Autor, 2017, ISBN
978-989-724-407-0.
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