«(…) Além desta tensão, desta intensíssima incoerência dentro do texto, a reescrita apresenta uma outra grande vantagem para o crítico (além, ainda, da concentração de bibliografia activa): como todos os poemas estiveram vulneráveis a potenciais alterações ao longo da vida do autor, eles acabaram por ser publicados na mesma data, na data da morte deste. Assim, rejeita-se a leitura cronológica, sequencial, abrindo-se um único poema (e talvez, também, um segundo poema-sombra, a tal raio de luz, apócrifo, incluindo os textos excluídos), o poema contínuo (um poema equivalente ao próprio nome autoral: o poema Herberto Helder), para ser lido livremente, como um mosaico, podendo ser visto (e percorrido com o corpo, como braille) a partir de qualquer um dos seus ladrilhos. Apesar da expressão poema contínuo ser abandonada no título das antologias seguintes (Ofício Cantante e Poemas Completos), a noção dum poema único, duma tensão única, permanecerá: por exemplo, na contínua insistência em vocábulos como língua, idioma e sintaxe, pressentindo uma única linha secreta que una todos os poemas num, uma fricção violenta (entre estes) criando uma única corrente eléctrica, harmonizada por uma lei absurda, incompreensível para nós, finitos leitores.
Fora dos Poemas Completos, aparecem ainda
os livros de poemas estrangeiros mudados para português (não-traduzidos): O Bebedor Nocturno e Doze Nós numa Corda; poemas que
definitivamente pertencem à autoria de Herberto Helder (não-tradutor), que os
lê em francês, inglês, castelhano, italiano ou até português, e os transforma
pela razão secreta do seu poema (compreendendo-os no poema contínuo), tal como
faz à sua própria biografia: rouba a sua singularidade, o seu segredo, e
torna-os singularmente seus: tensos, Diferentes. Quanto à estrutura deste
ensaio, ele começará por pensar o papel da memória no poema, a sua
transformação (o fingimento, no idioma pessoano) em imemorialidade; assumindo o
poeta o preço altíssimo desta alteração: o assassínio do Outro (e do Eu
(suicida), tornado Outro), o crime inerente à poesia (como a lei é inerente à
polícia), o seu posicionamento anticultural, antissocial, irónico, subvertendo
as leis morais. A ironia, por sua vez, invocará a questão do humor (onde um
excerto do romance 2666 de
Roberto Bolaño é chamado, pela sua terrível fusão de humor negro com a mais
explícita violência), duplicando o significado de tudo (a expectativa e a sua
quebra, como lei fundamental da comicidade), ironicamente: dizendo uma coisa e
significando o seu contrário, partindo o mundo ao meio, espelhando-o, tenso,
lutando contra si mesmo, imagem-contra-imagem. Esta leitura violentamente polar
obscurecerá o poema, tornando a sua leitura impossível, paradoxal, quebrando a
nossa razão (por força da sua), fechando-se sobre si mesmo, isolado,
independente, um ponto concreto no espaço, liberto do Homem. E este
encerramento, por sua vez, trará o silêncio (sendo a linguagem uma marca humana),
como possível fundo do poema, o indizível, marcado na concretude, no tacto (o
mais concreto dos sentidos), no poeta tornado puro corpo.
Por
último, uma ressalva em relação à lacónica bibliografia passiva neste ensaio:
por influência excessiva (não havendo outro tipo possível) do poeta estudado,
tentou-se libertar a leitura, afastando-a da cultura, não academizando o autor
mais do que já terá de ser feito, criminosamente (transgredindo a lei do poema,
traindo-o, estudando-o num ambiente universitário); tentando criar-se uma
leitura pessoalíssima, o mais perto possível do poema, para poder, depois,
expandir-se o máximo possível. A bibliografia partirá, assim, da obra
helbertiana, maioritariamente (ao ler os dois livros de crítica literária
escolhidos (Tatuagem &
Palimpsesto de Manuel Gusmão e Arte de Sublinhar de Gustavo Rubim), infelizmente, o
movimento, por vezes, inverte-se: lendo-se da prosa ensaística para o poema), quer
directamente (no caso de Borges, Camões, Cesariny, Kierkegaard, Michaux,
Nietzsche, Rimbaud; todos nomeados em Herberto Helder), quer indirectamente
(especialmente no caso de Emmanuel Levinas, cujo pensamento foi fundamental
para a leitura éptica da obra, para a reflexão sobre a natureza do seu crime)».
.In
João P. Rodrigues Carvalho, O Poema Herberto Herder: Caos e Contínuo, Caso de
Estudo, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, FCSH, 2018.
Cortesia de FCSH/JDACT
JDACT, João P. Rodrigues Carvalho, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Herberto Helder,