segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Disse que se chamava Elvira e sorriu levemente quando Ramiro lhe perguntou onde podia encontrar uma montada. Ides roubar um cavalo? Não era boa ideia, explicou, amanhã seria procurado como ladrão»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Nem isso fez recuar o príncipe, que reafirmou, convicto: É como vos digo. Só irei a Ricobayo se me casar com Chamoa. Preocupado, Fernão Peres murmurou: Isso é a guerra. Que seja, ripostou Afonso Henriques. E se a temeis, minha mãe sabe como pará-la. De cabeça perdida, a rainha enfureceu-se e apontou o dedo ao filho: Ainda não chegou o vosso tempo. Chamoa vai casar com Paio Soares e ireis a Ricobayo! São as minhas ordens, sou a rainha! Afonso Henriques, cada vez mais furioso, ripostou com desdém: Não, minha mãe, não sois uma rainha. Sois apenas uma condessa mentirosa, e não farei o que me ordenais! Irado, deu meia-volta e saiu, fechando a porta com estrondo. Na sala, deu de caras com as suas irmãs, Bermudo e as três mouras. Urraca Henriques ainda tentou acalmá-lo, dizendo: Meu irmão, não vos zangueis com nossa mãe!

Porém, o descontrolo apoderou-se dele. Aproximou-se de uma arca e com um gesto brusco levantou-a e atirou-a à parede. Depois, num acesso de cólera imparável, pegou num banco corrido e lançou-o contra a porta do quarto da mãe. De seguida, dirigiu-se a uma mesa, onde estavam inúmeras escudelas de barro, e varreu-as com o braço para o chão, onde se desfizeram em cacos. As únicas pessoas que se aproximaram foram Sancha Henriques e Fátima, mas logo que as viu perto o príncipe ergueu o braço e preparava-se para o descer quando Fátima, entredentes, o provocou: Não lutais com mulheres, já sabeis que perdeis.

Aquela antiga lembrança pareceu desequilibrá-lo e, enfurecido, deu meia-volta e saiu do quarto. Desceu as escadas a correr, pregando no final um violento pontapé na porta, que saltou das dobradiças. A sua fúria parecia impossível de estancar, e atravessou o pátio às biqueiradas em barris e fardos de palha. Por fim, entrou de rompante na casa onde pernoitava e logo saiu de volta, com uma espada na mão. Colérico, vergastou o alpendre, sulcando as vigas de madeira, e trespassou mais barris e fardos, desvairado e aos urros: Canalhas, malditos! Só perante a chegada de meu pai, Egas Moniz, o meu melhor amigo acalmou e suspendeu aquelas brutais investidas. Eu estava na varanda, e vi-o a arfar e a ranger os dentes. Meu pai e ele ficaram a olhar um para o outro calados, como se soubessem que um novo tempo, conturbado e perigoso, iria começar. Depois, estranhamente sereno, Afonso Henriques disse a meu pai, antes de entrar em casa: Preparai-vos para a guerra.

Meu pai ficou no alpendre, pensativo, a mirar a habitação da rainha, no interior da qual se via ainda a luz trémula das velas. Depois, minha prima Raimunda apareceu, vinda do escuro onde se escondia para todos espiar, e quando se preparava para entrar meu pai apenas lhe disse: Hoje não, deixai-o sozinho.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

Quando se soube da sua partida, suspeitei de que Ramiro decidira fugir do pai. É evidente que ele teria preferido mil vezes que Chamoa casasse com o príncipe, pois assim ficaria longe dela, e o seu coração não sofreria tanto. Com aquela decisão da rainha, sentia-se a enlouquecer. Não podia regressar à Maia, seria incapaz de ver Chamoa nas mãos e na cama do seu progenitor. Ao planear a sua escapada, confessou-me tempos mais tarde, lembrara-se de Gondomar. Ouvira-o dizer que partiria de Viseu no domingo e a ideia de se juntar à Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo pareceu-lhe a única saída. Ao fazê-lo, aproximava-se perigosamente do segredo da relíquia, que só seu pai conhecia. Naquela noite, Ramiro levou apenas o arco e as flechas, e correu pelas ruas, saindo por uma das portas da muralha. Já na estrada, além de vários mendigos que se arrastavam, gemendo enregelados, viu uma mulher, que caminhava à sua frente. Era alta e forte, e estava enrolada num manto, para se proteger do frio da noite. Ao ouvir passos, virou-se para ver quem a seguia e Ramiro perguntou-lhe pelos homens de Gondomar. Acho que já partiram, informou ela.

Disse que se chamava Elvira e sorriu levemente quando Ramiro lhe perguntou onde podia encontrar uma montada. Ides roubar um cavalo? Não era boa ideia, explicou, amanhã seria procurado como ladrão. Curiosa, Elvira questionou-o: Porque quereis fugir? Num arremesso de honestidade só possível perante estranhos, Ramiro contou-lhe a verdade. A normanda suspirou, desalentada. Quem me dera ir convosco, mas eles só levam homens. Intrigado, Ramiro perguntou-lhe se estava enamorada de alguém, mas ela apenas encolheu os ombros. Ninguém me quer». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Dona Teresa também teria de se apresentar, bem como o seu filho, herdeiro do Condado Portucalense. Não o fazer seria um insulto, um desafio que só poderia trazer desgraças aos ausentes»

 

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) Na cama, seminus, estavam Fernão Peres Trava e a rainha, nos seus jogos amorosos, mas nem essa visão deteve Afonso Henriques. Porque me haveis mentido?, gritou. O seu berro ouviu-se pela casa toda. À porta do quarto da rainha juntou-se um preocupado grupo, que incluía as duas irmãs do príncipe, Urraca e Sancha Henriques, bem como o marido da primeira, Bermudo, e ainda as três mouras. Como vos atreveis?, replicou dona Teresa. Fernão Peres Trava saltou da cama e enrolou-se num manto escarlate, protegendo o seu exposto corpo. Afonso Henriques ignorou-o e os seus olhos fixaram-se na mãe, que se cobrira rapidamente com um cobertor de seda.

Porque me haveis traído?, perguntou. Dona Teresa parecia confundida. De que falais? Então, Afonso Henriques recordou a conversa da véspera e Fernão Peres Trava pasmou-se. A rainha não lhe dera a conhecer as promessas trocadas. Aflita, sentindo-se a perder a confiança do amante, dona Teresa declarou: Disse-vos que tinha dúvidas sobre a lealdade de Paio Soares! Nunca vos prometi nada! Hoje de manhã, o Fernão conversou com o Paio e tudo ficou esclarecido! O seu amante relaxou, aliviado. Porém, Afonso Henriques berrou: Mentira! Haveis dito que não iam casar, que Chamoa seria minha! Apontou para Fernão Peres e prosseguiu: Agora, que ele está aqui, falta-vos coragem! Foi ele quem vos fez mudar de ideias! O vosso amante é mais importante do que o vosso filho! O Trava, enrolado no seu manto, falou pela primeira vez. Príncipe, se já eram conhecidas as intenções de vossa mãe em casar Chamoa com Paio Soares, porque a haveis seduzido? Com habilidade manipuladora, o nobre galego tentava inverter a situação, mas o príncipe não o deixou.

E como podia saber das vossas ideias? Acaso me informaram delas? Governais o Condado na vossa cama! Casais os meus melhores amigos e nem sequer me consultais! Atrapalhado pelas duras acusações de Afonso Henriques, o casal de amantes não reagiu, e ele continuou: Mas isto, isto é muito mais grave! Fui falar convosco ontem! Pedi-vos que cancelassem o casamento de Chamoa com Paio Soares! Disse-vos que me enamorara dela! Não vos interessam os meus pedidos? Com uma voz serena e pausada, e depois de um curto silêncio, Fernão Peres tentou chamar o príncipe à razão. Afonso VII ameaçou Toronho! Casar Chamoa com Paio Soares anula esse desejo bélico, sem ofender o novo rei. Já o vosso casamento com Chamoa seria perigoso, pois Toronho passaria a ser pertença do Condado Portucalense, e não do rei de Leão, Castela e Galiza! Desejais uma guerra com vosso primo? Mantendo o mesmo tom de voz calmo, o nobre galego admitiu: Não podeis enfrentá-lo, não tendes força para tal. A Galiza e o Condado terão de unir-se devagar, passo a passo, a vossa pressa é má conselheira.

Irritado com as insinuações do Trava, de que ele era impetuoso, mas pouco inteligente, Afonso Henriques gritou-lhe: Decerto julgais que sou estúpido? Todo o Condado conhece a vossa vontade de ter um filho varão! É por isso que quereis tempo! O receio de perder Toronho é uma miserável desculpa! Com asco estampado no rosto, o príncipe exclamou: Afonso VII tem mais com que se preocupar do que com Toronho! Se me casasse com Chamoa e lhe fosse prestar vassalagem a Ricobayo, meu primo esquecia qualquer agravo! Na cara de Fernão Peres nasceu um misto de admiração e espanto. Por um lado, surpreendia-o o conhecimento que o príncipe tinha das intenções íntimas da mãe; por outro, admirava os seus raciocínios rápidos sobre os supostos desejos de Afonso VII. A surpresa venceu a admiração, pois sorriu levemente e murmurou: Estais bem informado. Suspeito de que andais a espiar a rainha. Dona Teresa, indignada, explodiu: Meu Deus, e chamais-me traidora! Afonso Henriques ignorou este contra-ataque e enfrentou a mãe. Se não for cancelado o casamento de Chamoa com Paio Soares, não vou a Ricobayo prestar vassalagem ao meu primo! Dona Teresa mostrou-se verdadeiramente espantada. O que dizeis?, balbuciou. Estais louco?

A cerimónia de coroação de Afonso Raimundes como Afonso VII estava marcada para breve, e já chegara a Viseu a notícia de que o novo rei exigira aos principais nobres de Leão, Castela e Galiza, que se dirigissem a Ricobayo, onde lhe teriam de prestar vassalagem. Dona Teresa também teria de se apresentar, bem como o seu filho, herdeiro do Condado Portucalense. Não o fazer seria um insulto, um desafio que só poderia trazer desgraças aos ausentes». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

domingo, 29 de janeiro de 2023

Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «A pescada previu isto, recorda Miguel. Ana adivinhou grande infortúnio no peixe que examinou na véspera, enviado pela condessa da Ega»

jdact

A Invasão Francesa

30 de Setembro de 1808 (dia da morte de Ana)

«(…) Talvez o coraçã dela tenha parado, avança Francisca Tava tã mal, tadita. Na véspera, Ana desejara morrer, mas também fugir para França, enquanto falava com um homenzinho que só ela via, sentado ao canto do quarto. Ter-se-á matado?, questiona Miguel. A ameaça suicida andara sempre presente nos berros de Ana, um aviso que ele ignorara, atribuindo a causa de tais dislates à evidente loucura dela. Tinha terror de ser presa, lembra Francisca, como a outra...

A rapariga refere-se à condessa da Ega, que alinhou com os franceses e que o povo considera uma traidora à pátria. A Ega não é uma mulher, reflecte Miguel, é uma cama de estalagem, tantos são os que já se deitaram em cima dela. Mas era a melhor amiga de Ana e esta receava ser também acusada de traidora. Talvez..., especula Miguel. Mas matou-se como? Não há sangue na cama, nem se vê por perto algo com que se pudesse magoar. Na mesa-de-cabeceira apenas moram um copo e um jarro com água, um frasco com o xarope que Charles lhe deixou e a colher que Ana usou para o tomar. Coisas que já lá estavam nos últimos dias, nada de novo.

Tinha muitas dores, tadita, recorda Francisca… As na cabeça eram as piores. Por isso, a ausência de luz, as cortinas corridas, os xaropes para dormir. Terá sido por causa do que eu fiz ou do que lhe disse?, questiona-se Miguel em silêncio. Os franceses deram cabo dela, proclama Francisca. Ana deu-se bem com os invasores do reino. Foi amiga de Junot, o comandante dos exércitos de Napoleão, mas também dos generais Kellerman e Delaborde, talvez até do nefasto Maneta. E ontem Miguel chegou a temer que Ana tivesse privado com o Príncipe de Salm, um terrível assassino que degolou centenas. Foi o demónio, repete Francisca. Qual deles?, filosofa Miguel. Estiveram cá tantos. Em dez meses, pela vida de Ana passou muita gente má. Uma confraria de generais cruéis, cuja aura empestou o ar do palacete. Diz-se que a morte ronda os que convivem muito com ela.

A pescada previu isto, recorda Miguel. Ana adivinhou grande infortúnio no peixe que examinou na véspera, enviado pela condessa da Ega. As duas amigas acreditavam piamente nas vísceras das pescadas, nos veios das conchas, em cometas e em profecias cantadas pelos populares nas ruas de Alfama. Miguel não crê nessas tolices, mas pode ter-se enganado. A verdade é que o infortúnio está ali, à sua frente. Temos de informar o general Galopim. Mal o ouve, Francisca empalidece em sofrimento. Não quer ser ela a avisar o pai de Ana. Deixai comigo, acalma-a Miguel. Ide chamar o médico. Quando Francisca lhe sorri, aliviada, admira a beleza dela. Cabelo claro, sangue celta, olhinhos azuis brilhantes e agora já com menos medo. O que se esteve para perder... Ide rápido, arranjai um cocheiro!, ordena. E o menino?, pergunta Francisca. O dono do palacete lembra-se pela primeira vez do filho de quatro anos e tem pena. A criança vai ficar órfã e bem mais cedo do que Ana, que perdeu a mãe só aos doze. Deixai-o com a cozinheira». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal, 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Horizonte Perdido. James Hilton. «Em região de tão escassa população era magra a esperança, mas valia a pena tentá-la. O quarto passageiro era uma mulher, miss Brinklow»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Conway, que conhecia um pouco o idioma afegane, arengou com os homens conforme pôde, naquela língua, mas sem resultado. Quanto ao piloto, a única resposta a qualquer pergunta, em qualquer língua, era um significativo aceno com o revólver. O sol do meio-dia, chamejando sobre o tecto da cabina, aquecia o ar inteiro a tal ponto que os ocupantes dela estavam quase a desmaiar, com o calor e o esforço despendido em protestos. Viam-se absolutamente impotentes; era condição da evacuação que viajariam sem armas. Quando afinal os tanques foram fechados, passou-se uma lata de petróleo cheia de água morna por uma das janelas da cabina. Ninguém respondeu a pergunta alguma, ainda que os homens não parecessem pessoalmente hostis. Depois de outra conferência voltou o piloto para o seu posto; desajeitadamente, um dos afeganes pôs a hélice em movimento, e recomeçou o vôo. A partida, naquele espaço confinado e com a carga suplementar de combustível, foi ainda mais magistral do que a aterragem. O avião ergueu-se por entre o nevoeiro, depois voltou-se para o oriente, como a assentar um rumo. Ia em meio a tarde. Que caso extraordinário.

Era para desorientar! Já retemperados pelo ar mais fresco, mal podiam crer os passageiros que tudo aquilo de facto acontecera. Era um ultraje sem precedente e sem igual, mesmo nos anais turbulentos da fronteira. E, se não fossem eles mesmos as vítimas, certo o reputariam incrível. Era a coisa mais natural do mundo que a esse primeiro momento de incredulidade se seguisse uma explosão de indignação e, dissipada esta, uma ansiosa curiosidade. Apresentou Mallinson uma teoria que foi aceita, à falta de outra melhor: tinham-nos raptado para serem postos a resgate. Se o processo não era novo, a técnica não carecia de originalidade. Já era consoladora a ideia de que não tomavam parte num facto inteiramente virgem na história mundial; afinal, já tinha havido muito rapto no mundo e boa parte deles acabara bem. Os homens os reteriam em algum covil das montanhas até que o governo pagasse, e então lhes dariam a liberdade. Seriam tratados com toda a consideração, e, como o dinheiro do resgate não lhes sairia do próprio bolso, aquilo só seria desagradável enquanto estivessem prisioneiros.

Mais tarde, certamente, a Air Force enviaria um avião de bombardeio, e ficava-se com uma boa história para contar durante o resto da vida. Foi Mallinson que, um tantinho nervoso, enunciou esta conclusão. O americano, porém, entendeu de fazer espírito barato: Pois, meus senhores, parece-me que é uma bela ideia, seja lá de quem for, mas não posso dizer que a sua Air Force se cobriu hoje de glória. Vocês, ingleses, fazem chacota dos assaltos de Chicago e outras coisas, mas não me lembra nenhum caso de um bandido ter fugido assim sem saber o que fez este sujeito do verdadeiro piloto. Posto que o derrubou com uma paulada na cabeça. E acabou num bocejo.

Era Barnard um homem alto e corpulento: no rosto duro, os vincos pessimistas não apagavam por completo a expressão de bom humor. Pouco se sabia dele em Baskul; viera da Pérsia, onde, ao parecer, se entregava ao comércio de petróleo. Conway, por seu lado, ocupava-se numa tarefa prática: reunia todos os pedacinhos de papel que seus companheiros traziam e neles escrevia mensagens em várias línguas nativas para, de espaço a espaço, deixar cair uma delas. Em região de tão escassa população era magra a esperança, mas valia a pena tentá-la. O quarto passageiro era uma mulher, miss Brinklow. Toda tesa no assento, com os lábios apertados, poucos comentários emitia e nenhuma queixa. Era de baixa estatura e aparência coriácea. Dir-se-ia, ao observá-la, que assistia constrangida a uma reunião onde sucediam coisas contrárias aos seus princípios. Conway falava menos que os outros dois, pois transmitir mensagens em vários dialetos é um exercício mental que exige concentração. Respondia, ainda assim, às perguntas que lhe dirigiam e concordara, a título de ensaio, com a teoria de rapto apresentada por Mallinson. Aquiescera também, até certo ponto, nas observações de Barnard sobre a Air Force». In James Hilton, Horizonte Perdido, 1986, Publicações Europa-América, 1986, ISBN 978-972-101-163-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

JDACT, James Hilton, Literatura,

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Napoleão Vem Aí. Domingos Amaral. «Quem tratava Ana era um francês, Charles BonHomme, mas ele partiu hoje para França, de barco, por isso terão de procurar um médico português, daqueles a quem Ana chamava poltrões»

jdact

A Invasão Francesa

30 de Setembro de 1808 (dia da morte de Ana)

«Naquela manhã, pelas nove e meia, um grito estridente acorda Miguel. Ainda estremunhado, pensa tratar-se da mulher, que passa a vida numa berraria. Mas afinal quem o chama é Francisca, a criada, dizendo-lhe que Ana morreu. Tá fria e cadáver!, garante a rapariga, à porta do quarto. O dono do palacete pressente que lhe anunciam a verdade e o seu coração divide-se entre a tristeza e um inesperado alívio. Tendes a certeza?, questiona, enquanto se levanta, à pressa. Francisca leva a mão à cara, onde está desenhada uma feia cicatriz, que vai do canto do olho direito até ao queixo. A realidade da morte de Ana é tão palpável como aquela ferida. Tã certo como isto! Já vi muitos assim, tá morta!

De roupão, Miguel avança pelo corredor em passo rápido, enquanto examina o estranho e misto sentimento que o invade. Ana é a mãe do seu filho, estão casados há uma década, devia amá-la. Mas não pode mais. Aquela louca decepcionou-o profundamente. Ontem, odiou-a ao ponto de desejar matá-la e agora sente-se livre, com uma vida nova pela frente. Tá ali, indica Francisca. Ao entrar no quarto da mulher, Miguel estranha a luz. Nas últimas semanas, Ana não abria os reposteiros e o sol, que agora irrompe pela janela e ilumina a cama, nunca ali entrava. Com ela viva, o quarto parecia um túmulo, mas esta manhã, quando é finalmente um jazigo, apresenta-se radioso. Tá morta!, repete Francisca.

Miguel aproxima-se da cama, aonde há muitos meses não se deita. Ana está tombada ligeiramente para a direita, próxima da cabeceira do mesmo lado. De olhos fechados. Já estava assim? Francisca jura que jamais seria capaz de cerrar as pálpebras da senhora, não tem coragem para coisas dessas. Ana está como a encontrou. Chamou-a várias vezes, mas não lhe tocou. Até abri as cortinas, prá ver melhor! Depois, assustou-se e fugiu a correr. Foi o demónio, murmura Francisca.

Miguel toca na mão direita e depois no nariz da mulher. Sente urna opressão no peito, mas não se emociona. As perturbações da véspera sobrepõem-se Tanta desilusão e raiva. O demónio... repete em voz baixa. Nos últimos dez meses, o inferno esvaziou-se e os demónios vieram todos para Portugal. Desde que os exércitos de Napoleão invadiram o reino, o sangue correu pelas ruas, os massacres multiplicaram-se, houve assassinos à solta, destruição e saque geral. No país e em sua casa, onde os diabos também estiveram. Temos de chamar um medico, diz.

Quem tratava Ana era um francês, Charles BonHomme, mas ele partiu hoje para França, de barco, por isso terão de procurar um médico português, daqueles a quem Ana chamava poltrões. Não respira, confirma Miguel. Afasta os dedos do nariz dela e observa os lábios escuros e a boca finalmente fechada. A historia de Ana foi a história dos seus gritos, permanentes e insuportáveis. Gritos às criadas, ao filho, ao pai, aos cocheiros. Nunca mais os dará». In Domingos Amaral, Napoleão Vem Aí, Casa das Letras, LeYa, 2021, ISBN 978-989-661-041-8.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Napoleão, Literatura, Portugal,

domingo, 22 de janeiro de 2023

D. Fernando I. 2º duque de Bragança. Maria Barreto Dávila. «Afonso nasceu entre os anos de 1370 e 137734, filho de Inês Pires e de João I, na altura, mestre de Avis, no castelo de Veiros, em Estremoz. Foi ali criado por sua mãe e mais tarde em Leiria por Gomes Martins Lemos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Legado de Nuno Álvares Pereira

«(…) A consolidação da nova dinastia de Avis e a vitória dos seus partidários sobre a facção castelhana deu azo à emergência de uma nova nobreza composta, na sua grande maioria, por filhos segundos e membros de linhagens inferiores que se haviam destacado militarmente no apoio ao mestre de Avis. O maior beneficiado destes nobres foi, sem dúvida alguma, dom Nuno Álvares Pereira nascido em 1360, filho bastardo de Álvaro Gonçalves Pereira, prior do Hospital, e de Iria Gonçalves Carvalhal. O condestável casara, muito jovem, com dona Leonor Alvim, viúva de Vasco Gonçalves Barroso. A sua condição de viúva parece justificar este matrimónio algo atípico, dado a precoce idade de dom Nuno (que tinha dezasseis anos quando casou) e o estatuto económico superior da noiva, já que as viúvas constituíam, no mercado matrimonial, uma segunda escolha, uma opção desvalorizada. Deste casamento, o condestável teve apenas uma filha, dona Beatriz.

Quando o condestável enviuvou em 1387, dom João I propôs-lhe novo matrimónio, desta feita com dona Beatriz Castro, filha de Álvaro Pires Castro que, curiosamente, fora o primeiro condestável do Reino, nomeado por dom Fernando, em 1382. Viúvo cobiçado, detentor de uma enorme fortuna, talvez a maior do Reino nessa altura, e com apenas uma filha, era natural que Nuno Álvares Pereira voltasse a casar. Contudo, o condestável recusou terminantemente a proposta do rei. Seria o início da sua vida casta e ascética. O seu marcante desempenho durante a crise dinástica, que lhe havia granjeado importantes doações de terras e títulos, sobretudo confiscados aos familiares e principais aliados de dona Leonor Teles, tornara-se algo perigoso para o novo rei, que se arrependera, em parte, das grandiosas doações que fizera. Nuno Álvares Pereira era o único nobre no Reino com uma hoste capaz de lhe fazer frente.

Dona Beatriz, herdeira da imensa fortuna do seu progenitor, era uma noiva muito almejada. O rei, arrependido, via na união de dona Beatriz com um dos seus filhos uma solução de compromisso e uma forma dos bens por ele doados regressarem à Coroa. Por seu lado, o condestável via na ligação à família real uma estratégia para potenciar, ainda mais, o seu poder. Todavia as negociações não foram fáceis. O monarca pretendia casar a herdeira do condestável com o sucessor do trono, o príncipe dom Duarte, significativamente mais novo do que dona Beatriz. Contudo, não era essa a pretensão do condestável, que dava primazia à construção de uma casa senhorial independente da casa real. Do ponto de vista de Nuno Álvares Pereira, o objectivo central a atingir com o casamento da filha seria o da constituição de uma casa senhorial que perpetuasse a sua linhagem e a sua memória.

A solução foi encontrada em dom Afonso, filho natural de dom João I, significativamente mais velho do que os infantes seus irmãos e de idade muito similar a dona Beatriz. A bastardia de dom Afonso garantia a Nuno Álvares Pereira a proximidade desejada com a casa real mas independência quanto bastasse. É interessante notar que, apesar de Nuno Álvares Pereira ter conseguido a construção de uma casa que o veria sempre como o fundador, quer a nível patrimonial quer ao nível do capital simbólico, os seus descendentes nunca adoptaram o seu apelido, Pereira. Pelo contrário, estes, à semelhança da família real, de quem também descendiam (ainda que por via bastarda), não utilizavam apelido.

Afonso nasceu entre os anos de 1370 e 137734, filho de Inês Pires e de João I, na altura, mestre de Avis, no castelo de Veiros, em Estremoz. Foi ali criado por sua mãe e mais tarde em Leiria por Gomes Martins Lemos, conselheiro régio. Desta união, que nunca foi legitimada, nasceria também uma filha, dona Beatriz, futura condessa de Arundel». In Maria Barreto Dávila, D. Fernando I, 2º duque de Bragança, Vida e Acção Política, Dissertação de Mestrado, FCSHumanas, UNLisboa, 2009.

Cortesia de FCSH/UNL/JDACT

Casa de Bragança, Cultura e Conhecimento, JDACT, História, Maria Barreto Dávila, Política,

sábado, 21 de janeiro de 2023

D. Fernando I. 2º duque de Bragança. Maria Barreto Dávila. «… tentando destrinçar o seu comportamento diferenciado em relação ao seu pai e irmão, para além das outras principais figuras políticas suas contemporâneas, quanto à política do Reino»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Contudo, durante muito tempo a biografia foi considerada como um modelo historiográfico menor, mais ligado à apologia do que a uma análise isenta e rigorosa. Também em Portugal, a biografia foi até muito recentemente um género desconsiderado. A Colecção Reis de Portugal dirigida por Roberto Carneiro e com coordenação científica de Artur Teodoro Matos e João Paulo Oliveira Costa, veio mudar este panorama. Estas biografias régias trouxeram novas perspectivas à historiografia portuguesa, tornando-se obras fundamentais para a compreensão da história do nosso país. Brevemente será também publicada uma biografia do infante dom Henrique, intitulada Henrique, o infante, da autoria de João Paulo Oliveira Costa.

Tendo em vista a elaboração de um estudo biográfico sobre D. Fernando, 2.º duque de Bragança e considerando que os estudos precedentes sobre a casa de Bragança deixaram algumas problemáticas em aberto, foi nosso objectivo proceder à recolha de dados prosopográficos de dom Fernando e à caracterização do seu pensamento político tentando destrinçar o seu comportamento diferenciado em relação ao seu pai e irmão, para além das outras principais figuras políticas suas contemporâneas, quanto à política do Reino. Outras linhas de análise foram trilhadas através do exame da sua participação nos projectos expansionistas no Norte de África, da evolução do seu património e da sua estratégia de perpetuação da linhagem da sua casa. Para tal foi indispensável caracterizar tanto o contexto sociopolítico em que dom Fernando viveu como o seu âmbito familiar.

As fontes utilizadas na elaboração desta tese compuseram-se, na sua grande maioria, de documentação da chancelaria régia, seguindo-se alguma documentação do Arquivo da Casa de Bragança. Contudo, as fontes mais interessantes para a caracterização do pensamento político de dom Fernando são os inúmeros conselhos por ele redigidos, assim como as Crónicas de dpm João I, dom Duarte e dom Afonso V. No entanto, há lacunas na documentação que não nos permitiram analisar certos aspectos biográficos de dom Fernando. Infelizmente, com excepção da Chancelaria de dom Afonso V, não existem mais documentos relativos ao período em que o conde de Arraiolos assumiu a capitania da praça de Ceuta, pelo que não possuímos relatos dos acontecimentos políticos e militares desse período, o que nos impede de identificar os nobres que o acompanharam durante a sua capitania. Também os anais dedicados a Ceuta são parcos em informações acerca do governo de dom Fernando, relatando apenas o episódio da sua vinda ao Reino durante o agudizar dos conflitos entre o duque de Bragança, seu pai, e o infante dom Pedro. As fontes utilizadas também não nos permitiram entrar na esfera privada de dom Fernando. Este estudo, tal como o nome indica, incidirá, portanto, maioritariamente na vertente política do indivíduo biografado.

Apesar de ser usual, por uma questão de comodidade, referirmo-nos aos três condes de Barcelos, Ourém e Arraiolos como casa de Bragança, nesta dissertação tentaremos evitar esta designação para o período anterior a 1442, data em que dom Afonso, conde de Barcelos, acedeu ao ducado brigantino. Aliás, apesar de por vezes agirem conjugadamente, numa óbvia solidariedade familiar, os três condes são titulares de casas que coabitam em simultâneo, mas que são independentes. É nosso entender que a maior dependência será sempre entre o conde de Ourém, filho primogénito, e o seu pai, o conde de Barcelos. A prová-lo temos o episódio ocorrido durante a regência do infante dom Pedro aquando da criação do ducado de Bragança. Pai e filho estavam interessados nas terras brigantinas e dom Pedro resolveu a querela entregando o ducado ao conde de Barcelos, tendo a justificação para a sua decisão recaído no facto de que, sendo o primogénito, o conde de Ourém herdaria, ainda que a médio prazo, as propriedades do pai.

Dom Fernando, secundogénito, ficava de fora desta equação. A sua casa, a de Arraiolos/Vila Viçosa, seria totalmente independente das outras duas até à morte do irmão e sua consequente nomeação como herdeiro da casa de Bragança. Esta dissertação terá, portanto, como objectivo analisar a actuação de dom Fernando enquanto chefe da casa de Arraiolos/Vila Viçosa e, posteriormente, enquanto segundo duque de Bragança» In Maria Barreto Dávila, D. Fernando I, 2º duque de Bragança, Vida e Acção Política, Dissertação de Mestrado, FCSHumanas, UNLisboa, 2009.

Cortesia de FCSH/UNL/JDACT

Casa de Bragança, Cultura e Conhecimento, JDACT, História, Maria Barreto Dávila, Política,

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «A Senhoria julgará. Quem pensa a Senhoria que é? Saía o embaixador irritado. A formiga contra o elefante! Esmagar-vos-ei...»

jdact

A Ponte dos Suspiros

Os Sinais do Corpo

«(…) Brito Almeida açodava o passo, o frade atardava-se na leitura do documento. Os cânticos e a folia juvenis esbatiam-se na distância e na desatenção dos dois amigos:

Amor ne vien ridendo con rose e gigli in testa e vien di voi caendo. Fategli, o belle, festa, qual sarà la piú presta a dargli e flor del maggio...

Lá vem Amor sorrindo de rosa e lis c'roado e vem de vós espargindo. Fazei-lhe, moças, festa, qual a de vós mais presta a dar-lhe a flor de Maio...

Don Francisco Vera y Aragón meteu esbaforido pelos paços de São Marcos, subiu a dois e dois os degraus da escadaria e só parou lá em cima à porta da sala do Collegio. Aguardava-o apenas o juiz Marco Quirini: Que deseja o senhor embaixador de Espanha?, perguntou. Não faz meio mês que estivestes aqui e nada do que vos disse então... Sua Majestade o meu senhor escreve-me a ordenar que insista junto da Senhoria... nada do que vos então disse perdeu actualidade. a Senhoria tem de condenar esse prisioneiro pelo menos às galés... Pelo menos? ... se não à forca.

Tão alto preço atinge o prisioneiro para a coroa de Espanha? Tão grande a ameaça um mistificador? Ou será que...? Senhor juiz! Senhor Don Francisco Vera y Aragón, não vos admireis de que se mostre cada vez mais clara a presunção de que ele é... Senhor! Não sei mais que vos diga, embaixador. A Senhoria julgará. Quem pensa a Senhoria que é? Saía o embaixador irritado. A formiga contra o elefante! Esmagar-vos-ei... E levantava o punho ameaçador. Desembocava na piazza a trupe foliona nos folguedos do tanger, cantar e dançar...

Ciascuna balli e canti di questa schiera nostra. Ecco che i dolci amanti ven per noi, belle, in giostra...

Todas juntas bailemos, aí vem o amante. Neste rancho cantemos que ele vem pró descante...

Don Francisco estacou um pouco a olhar aos lados por onde se haveria de escapar à multidão. Caminhou sob as arcadas em direcção à margem do canal. Cruzou-se com... Um fantasma!, estremeceu. Era o prisioneiro!... Mas como? A Senhoria-apressara-se a pô-lo em liberdade, depois de, ainda há pouco...? Ah! Não!» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Pareceis contente. Trazeis novidades? Chegaram novas de Paris? da Holanda?... Conjugam-se os astros em nosso favor. Os nossos amigos devem estar a chegar, se não estão já em Veneza»

jdact

A Ponte dos Suspiros

Os Sinais do Corpo

«(…) Pela meia-manhã o sol rompeu. No Campo san Luca uma companhia de comediantes armara seu teatro. Trupe vária e colorida de belos rapazes e raparigas, meias-calças a tornear coxas ágeis na dança viva, gibões de abas a esvoaçar, saias rodadas baloiçantes, cabeleiras e narizes postiços, mascarilhas de veludo e cetim preto, cartolas, gorros, boinas, carapuços, chapéus, toucas, turbantes, borzeguins, sapatos de salto, pantufos, golas folhadas, gargantilhas, tranças, blusas listradas, corpinhos justos decotados, abanicos, lantejoulavam o azul, o branco, o creme, o amarelo, o carmim, o verde, o castanho, cantavam madrigais picantes, risos brejeiros de actores e público ao som de mandolinas, sacabuxas, charamelas, violas de arco, atabales, trombetas e pífaros... Ricchezza non cerchiam né piú ventura che balli e canti e flori e ghirlandelle... Riqueza não buscamos nem ventura senão bailes, canções, guirlandas, flores...

Vede o que aí vai, Bertoldo. Quanto pecado mortal!, dizia o cónego Baptista entrando escandalizado. Comediantes, Sua Eminência? Sua Eminência já perguntou por Monsenhor duas vezes. Pressa? Parece que há novidade. Lê e relê um papel acabado de chegar e anda lá em cima de um lado para o outro... Eu subo, disse o cónego dirigindo-se à escadaria. Ah! Monsenhor! Bem-vindo. Lede isto, lede isto - dizia o arcebispo. O cónego Battista tomou o documento: Clemens octavus per Divinam providentia Ser Servorum Dei...

Mas é um breve de Sua Santidade! Sem mais. E quereis saber? Intima Filipe terceiro, sob pena de excomunhão, a entregar ao seu legítimo senhor o reino de Portugal! Ah! Finalmente o papa acede a defender o nosso amigo! E a Senhoria... tem-no preso! Terá de soltá-lo.

Ben venga primavera

che vuol l'uom s'innamori. E voi, donzelle, a schiera con li

vostri amadori,

che di rose e di flori

vi fate belle il maggio...

Primavera chegada, tome-se homem de amores e vós, moças, mãos dadas com vossos amadores, que de rosas e flores belas vos fazei em Maio...

A folia dos comediantes abandonara o palco e descia agora, rodeada de povo, a Calle dei Fabbri em direcção à grande piazza. Que pode contra isto um pobre irmão de São Bernardo?, ia remoendo com os botões da roupeta frei Crisóstomo da Visitação. Causas perdidas as dos meus escritos em defesa dos privilégios do meu convento cisterciense da longínqua Alcobaça? A de sustentar os direitos deste infeliz rei ressuscitado?... Cantai, bailai, que a vida são dois dias... Ides a falar sozinho, frei Crisóstomo?, perguntava Brito Almeida juntando-se ao frade na calle San Luca. Gostava de ter a ilusão e a alegria desses. Gente nova, futuro de esperanças. Ides a San Beneto?, Para lá caminho.

Pareceis contente. Trazeis novidades? Chegaram novas de Paris? da Holanda?...  Conjugam-se os astros em nosso favor. Os nossos amigos devem estar a chegar, se não estão já em Veneza. E Sua Santidade... Sua Santidade...? Olhai e pasmai!, e Brito Cunha mostrava a cópia do breve: ... emitiu finalmente a sentença em pró de el-rei dom Sebastião! Graças a Deus! Mostrai, mostrai». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

 Cortesia de Difel/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, História, Literatura, 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Sim, tenho visto. Sois muito poupado. Também, para o que comeis! Pão e água... debicar, bebericar... Viu-se lá coisa assim!... Dirigia-se para a porta…»

jdact

A Ponte dos Suspiros

«(…) Um rei sem reino, sem trono, coroa, manto, ceptro... não tenho eu tantas vezes dito que sou um rei nu?... Pois agora... o meu corpo que nem meu pai nem minha mãe conheceram, só raros, pouquíssimos amigos deixei, em minha câmara real, que vestissem, despissem, ataviassem, lavassem, enxugassem, perfumassem... minha intimidade que eu só permiti fosse tocada por aquela princesa de uma noite de refrega em Santa Justa... Violeta! Tão recatada que não me quis revelar o seu nome... Meu pobre corpo devassado por carcereiros estranhos!... E, de repente, epifania! Desataram a fazer-me vénia, a tratar-me como arremedo de quem sou... Acreditaram finalmente? Que aconteceu?... Mudaram-me da enxovia lá de cima, para aposento mais honrado algures no palácio e, de minha miséria, dão-me agora para o prato seis cruzados cada dia e vestimenta mais decente... Só me não deram a liberdade. Porquê?... É um compartimento sem janelas exteriores. Uma fresta mal coa a luz do dia. Não vejo o céu, não sinto a maresia, não me visitam as gaivotas, as pombas, os pardais. A quem darei agora as minhas migalhas?... O bafio das horas ganha bolor, perco o pulsar do tempo no relógio do coração. Carcereiro, digo-lhe, quando um dia me vem trazer o comer. Que há? Sabeis de alguém que precise de ajuda? Olha-me espantado: Quem aqui precisa de ajuda senão vós? Aí bate o ponto, amigo. A ajuda de que necessito negam-ma: a liberdade... Não é da minha conta. ... e os seis cruzados que me... enfim, por esmola, cada dia... olhai, sobejam-me.

Sim, tenho visto. Sois muito poupado. Também, para o que comeis! Pão e água... debicar, bebericar... Viu-se lá coisa assim!... Dirigia-se para a porta, parava na soleira: Estais a juntar pé-de-meia? Para casardes, quando daqui sairdes? Não. Vinde cá. Fechava a porta e chegava-se ao pé de mim a escutar. Não vos perguntei eu se sabíeis de alguém que precisasse de ajuda? Sim. Aí está. Com o dinheiro poupado, poderia eu, em desconto dos meus pecados, fazer bem a outrem... casar, por exemplo, uma órfã... Olhou-me o homem nos olhos como se buscasse ver-me no chão do meu ser e disse muito sério: órfãs, e bem necessitadas, e que desejam casar-se, conheço eu duas. Se quiserdes... E como poderei eu proceder, se estou aqui manietado? Isso não sei. Mas... Não podereis dar parte da minha tenção ao senhor juiz Quirini? Acho que sim, senhor. - Então... Está bem. Quanto antes? De imediato, se puder». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

As Sete Marias Que Matavam Franceses. Domingos Amaral. «O catraio só fala em vós, a Fanchica isto, a Fanchica aquilo!, contou Galopim. Vai ficar feliz por vos ver. Que lhes ides dizer?»

 

jdact

Lisboa, 24 de Dezembro de 1808

«A rapariga bonita, ao ver cinco lugares postos à mesa, estacou surpreendida. Naquela véspera de Natal, pensava que a consoada ia ser só para os dois. O general Galopim, um militar medalhado, com setenta anos e um porte digno, calvo e de olhar profundo, repleto de integridade pública e fortuna privada, mantinha-a enclausurada no seu palacete, nos arredores de Lisboa. Vigiada pelos guardas do velho militar, só podia ir ao jardim passear, mas nunca abandonar a propriedade ou receber visitas. Para quem seriam os outros três lugares à mesa, se o general nunca convidava ninguém?

Pessoas importantes, respondeu Galopim, com um sorriso cínico. Por isso vos pedi para usar o vestido e colocar a tiara. A rapariga bonita franziu a testa, intrigada. Quem? O meu genro e o meu neto. E frei António, declarou o general. Francisca alegrou-se, gostava de dom Miguel, servira em casa dele e tinha muito afecto pelo filho Luís, de quatro anos.

O catraio só fala em vós, a Fanchica isto, a Fanchica aquilo!, contou Galopim. Vai ficar feliz por vos ver. Que lhes ides dizer?, inquietou-se a rapariga. Animado, o pomposo general declarou que contaria a verdade: desejava viver com ela para sempre. Quando terminasse o período de luto pela morte da sua filha Ana, poderiam casar. Mas ê nã me quero casar!, protestou Francisca. Estava ali forçada e só por isso se dava ao general, mas jamais iria à igreja mentir, pois não o amava. Contudo, Galopim ignorou-a. Além disso, quero que Miguel e o frade vos vejam comigo.

Àquele ciumento feroz, sempre lhe parecera que o genro ficara claramente enfeitiçado pela rapariga. Tal como o frade, que era um religioso mas tinha alma de falsário. A ceia da consoada seria a ocasião perfeita para lhes mostrar quem possuía Francisca. Frei António nã foi para o Norte?, perguntou esta». In Domingos Amaral, As Sete Marias Que Matavam Franceses, Casa das Letras, 2022, ISBN 978-989-661-437-9.

Cortesia de CdaLetras/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, Literatura, Invasões Francesas, Conhecimento, 

domingo, 15 de janeiro de 2023

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Para dizer a verdade, Gloria tinha ares de quem precisava de um banho quente seguido de uns bons goles de uísque, mas, por outro lado, o mesmo se podia dizer de quase todo mundo que eu conhecia»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O dia 17 de Fevereiro de 1941 foi uma segunda-feira. De manhã fazia um frio horrível, 14 graus abaixo de zero. Stefa estava com dor de garganta, febre e uma irritação na pele do peito que mais parecia acne. Finalmente, concordou que Adam podia ficar em casa e faltar à escola. Mas não estava disposta a juntar-se a nós e tirar o dia de folga. Tomou umas aspirinas e, apesar das minhas ameaças de amarrá-la à cama, empurrou-me para o lado e esgueirou-se para o trabalho. Embrulhei Adam numa pilha de cobertores e, por insistência dele, pus a gaiola de Gloria mais perto do aquecedor, aos pés de nossa cama. Depois da sopa de couve que fiz para o almoço, que ele e eu comemos ainda de luvas, Adam pôs na cabeça o cocar que a mãe fizera para ele com penas de galinha e anunciou que ia sair. Uma ova!, desiludi-o. Mas estou entediado! E eu, com uma periquita aleijada e um garotinho atrevido de 9 anos como única companhia, acha que não estou? Lançou-me o seu habitual olhar assassino. Bela tentativa, Winnetou, disse eu, usando o seu nome índio, mas o mau-olhado dos Cohen não funciona com outros membros da tribo. Vá ler um livro.

Estou farto de ler! Lágrimas de chantagem brilharam-lhe nos olhos. Ouça, Adam, disse eu, mais suavemente, quando conseguirmos arranjar um pouco de carvão, você poderá sair outra vez. Para tentá-lo, acrescentei: Posso começar a ensinar-lhe álgebra hoje, se quiser. Álgebra é para estúpidos! Então dê alguma comida à Gloria. Ela pareceu estar com fome, da última vez que a vi. E tenho certeza de que está ainda mais entediada do que você. Para dizer a verdade, Gloria tinha ares de quem precisava de um banho quente seguido de uns bons goles de uísque, mas, por outro lado, o mesmo se podia dizer de quase todo mundo que eu conhecia.

O menino me fez uma careta e me virou as costas; segurei-o pelo braço. Quando se libertou, se debatendo, senti a fúria invadir-me como metal derretido e dei-lhe uma palmada no traseiro com mais força do que pretendia, atirando-o contra as estantes. O cocar caiu, e uma pena da frente soltou-se. Ficamos olhando um para o outro, paralisados, como se um meteoro tivesse caído entre nós dois. Deixei-me cair no chão como um enorme trapo amarrotado. Minhas lágrimas o assustaram. Veio sentar-se de mansinho no meu colo, pedindo desculpa. Murmurei que a culpa não era dele e apanhei o cocar. Disse-lhe que podia ir brincar lá fora se se vestisse o mais quente possível. Quando foi buscar o gorro de lã e eu o enfiei em sua cabeça, obriguei-o a prometer que não sairia da nossa rua nem que os marcianos aterrassem na Grande Sinagoga e o chamassem pelo nome para negociarem um tratado de paz.

Quando percebi que o sol já se tinha posto, pousei o livro e olhei para o relógio: eram exatamente 16h27. Nunca me esquecerei dessa hora. Adam já tinha saído havia mais de duas horas. Deixei um bilhete em cima da cama de Stefa dizendo que tinha ido à procura dele e preguei outro na porta da entrada, avisando a Adam que fosse pedir a outra chave a Ewa, na padaria, se chegasse em casa antes de mim. O menino não estava na nossa rua, e não consegui encontrá-lo em nenhum dos terrenos cobertos de ervas em que costumava brincar, por isso fui ao apartamento dos pais de Wolfi, mas quando bati à porta ninguém respondeu. Consegui localizar Feivel e outros dois amigos de Adam, mas não o tinham visto. Quanto aos lojistas da zona, todos menearam a cabeça. No caminho para casa, comecei a imaginar que ia encontrar Adam esquentando as mãos junto ao nosso aquecedor, com Gloria pousada na cabeça. Eu lhe diria que nunca mais o deixaria se perder de vista, o que, na minha opinião, era a moral da história.

Mas o apartamento estava vazio. Para me acalmar, tomei os meus últimos comprimidos de Veronal. Teria continuado a tentar contactar os pais de Wolfi, mas a essa altura os nazis já tinham cortado nossos telefones. Quando Stefa chegou, ficou furiosa comigo por ter deixado o menino sair do apartamento. Apesar da sua febre e das minhas súplicas, saiu porta afora à procura dele. As roupas de Adam estavam sempre espalhadas pelo nosso quarto, por isso comecei a recolhê-las. Quando estava dobrando o pijama, ergui o casaco de flanela e enterrei a cabeça nele, inspirando o seu perfume de lavanda. O pânico que apertava minhas entranhas me dava a sensação de estar me afogando. Arrumei as roupas na cômoda dele e fiz uma sopa de cebola para o jantar. Quando ficou pronta e a mesa, posta, sentei-me com seu livro de esboços à frente e passei os dedos sobre os desenhos que ele fizera de Gloria até ficar com as pontas dos dedos todas manchadas de azul e amarelo.

Num dos esboços, ele desenhara Gloria com um longo cachimbo castanho no bico e um tufo de cabelo grisalho e espetado no topo da cabeça. Fiquei olhando fixamente para aquela página, tentando em vão afastar os pesadelos que minha mente ia inventando: Adam espancado por um guarda nazista, atropelado por uma carroça… Stefa voltou para casa sozinha, pouco depois da meia-noite. Tinha inchaços em volta dos olhos, de pura aflição. Desapareceu, disse-me, deixando-se cair sentada ao meu lado na cama. O pânico pairava à volta dela como uma bruma fria». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/Porto Editora/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, Conhecimento, Literatura, 

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Oito moças e quatro rapazes subiram em fila as escadas laterais do palco, irrequietos e aos empurrões, o que me fez recear uma descida aos infernos da música»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A essa altura, Adam já estava apaixonado. O repertório de Gloria consistia em comer, trinar, defecar e arrancar as penas do peito num frenesi neurótico, mas meu sobrinho colocava-a no ombro e ia passear com ela, como se fosse uma princesa encantada transformada em pássaro. Quando Stefa não estava em casa, chegava a pô-la em cima da cabeça. Gloria parecia gostar de viajar num poleiro saltitante feito de cabelo louro cheirando ao nosso último sabonete de lavanda, mas será que alguém sabe o que pensa de facto uma periquita nos intervalos entre as refeições? Para Adam, a alegria tinha penas. E depois de algum tempo, percebi que havia alguma coisa de tocante e encorajador em Gloria, talvez porque sua inutilidade total e irremediável fosse a prova de que ainda podíamos ter pelo menos um luxo.

O coro de Adam fez a sua primeira apresentação em 28 de Janeiro, na escola de dança Weisman, situada na rua Pańska. Estourara um cano nessa manhã, e apesar de os organizadores terem secado a água freneticamente com panos de chão, ainda havia umas poças espalhadas pela sala. No público estavam alguns amigos e conhecidos, incluindo o famoso pianista de jazz Noel Anbaum e Ewa, a quem Stefa, eterna casamenteira, arranjara um caso com Rowy, depois de estudar o rapaz num ensaio do coro. Segundo minha sobrinha, os dois já tinham saído juntos três vezes com imenso sucesso, e o olhar entendido que me lançou ao pronunciar esse veredicto revelou até que ponto eles já tinham se aventurado juntos.

Logo as luzes começaram a acender e a apagar, sinal para o público se dirigir aos seus lugares. Oito moças e quatro rapazes subiram em fila as escadas laterais do palco, irrequietos e aos empurrões, o que me fez recear uma descida aos infernos da música. Contudo, sob a batuta erguida de Rowy, os rostos dos meninos ficaram sérios, e cantaram as várias vozes dos corais de Bach como se fossem todos irmãos. Fechando os olhos, senti que, pela primeira vez em meses, tinha parado de me atirar como um louco contra as paredes da minha angústia de desalojado; estava exactamente onde queria estar. Tinha aterrado.

O primeiro bis foi El Male Rachamim, no solene arranjo feito pelo próprio Rowy, que deixou em lágrimas os mais religiosos do público. O segundo foi Don’t Fence Me In, sugestão de Adam. Ao fazer as vénias de agradecimento, meu sobrinho olhou para mim com uma seriedade tão adulta que me senti invadido pela admiração. Pela primeira vez, tive a sensação de que ele ia conseguir coisas magníficas na vida, e soube então que, ao protegê-lo, estava cumprindo a tarefa mais importante que me poderia ter sido atribuída durante o meu tempo no gueto.

No dia seguinte, a cidade foi varrida por uma frente de frio cortante. Adam perambulava pela casa em passo trôpego, de braços duros dentro das duas blusas e do casaco forrado de pele, membro militante de um corpo de pinguins judeus marchando através do gueto em direcção às suas escolas clandestinas. Comprei dois fogões de serragem; a essa altura o carvão já desaparecera, levado pelos alemães. Contudo, os novos fogões revelaram-se criminosamente ineficazes, e durante várias noites seguidas a temperatura no nosso apartamento só conseguiu subir até os 7 graus. Nessa época, uma doença insidiosa aviária deixara o olho esquerdo de Gloria de um branco leitoso, e Adam tinha certeza de que a culpa era da frente fria. Ficava arrasado sempre que pensava nela sendo chamada para o paraíso dos periquitos, e nada que fizéssemos era capaz de alegrá-lo.

Comecei a ir para a cama com um cachecol enrolado em volta da cabeça, como um turbante das Mil e Uma Noites. Os lençóis eram autênticas grutas de gelo, por isso, a fim de aquecê-los para o meu sobrinho, eu me deitava ao lado dele na cama durante 15 minutos e depois deslizava para o meu lado, chamando-o de sob os cobertores. Ele atirava-se para os meus braços batendo os dentes, e eu passava a noite com ele bem encaixado contra mim». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/Porto Editora/JDACT

 JDACT, Richard Zimler, Judeus, Conhecimento, Literatura,

sábado, 14 de janeiro de 2023

Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado de João IV. Maria do Carmo T. Pinto.«O reino converteu-se em prisão por dívidas. A atitude de benevolência manifestada pelo monarca no início do seu reinado esfumava-se pouco a pouco…»

jdact

Com a devida vénia à Doutora Maria do Carmo Pinto

Heróis ou Anti-Heróis.

Filipe III e a Inquisição (maldita). Antes e depois do perdão de 1605

«(…) Perante as dificuldades financeiras que teimavam em persistir, Filipe III viu-se, novamente, na contingência de ter de procurar apoio junto dos cristãos-novos. Assim, durante a primeira metade de 1601, a gente de nação obteve a revogação da lei decretada por dom Henrique e confirmada por Filipe II, que os impedia de sair do reino e de venderem os seus bens, mediante um pagamento de 170 mil cruzados, que posteriormente passou a 200 mil, sendo-lhes, igualmente, dada permissão para se fixarem nos territórios portugueses além-mar. Ainda nesse mesmo ano, um alvará régio de 24 de Novembro de 1601 proibia a utilização da designação de cristão-novo, confesso, marrano ou judeu, relativamente a qualquer descendente dos conversos, sob pena de multa e prisão, sendo provável que a promulgação desta lei tenha sido obtida mediante o pagamento pelos cristãos-novos de avultada quantia. Contudo, à vontade expressa da Inquisição (maldita) sobrepunham-se as exigências do erário régio. Os que defendiam que o perdão fosse concedido argumentavam que era necessário organizar uma poderosa esquadra que afastasse, definitivamente, a navegação holandesa e inglesa das costas da Índia. Nem o dinheiro dos confiscos podia constituir solução, uma vez que o tempo escasseava e não chegaria a tempo.

Assim, os cristãos-novos prometiam a Filipe III um serviço voluntário de 1.700.000 cruzados62, prescindindo do pagamento de 225 mil cruzados que a fazenda devia a alguns deles, caso o monarca conseguisse obter o perdão geral das culpas de apostasia e judaísmo. Os cristãos-novos estavam tão apostados em garantir que as suas pretensões fossem ouvidas que tinham, inclusivamente, distribuído benesses financeiras, no valor de 100 mil cruzados, por diversas personagens importantes da corte madrilena, entre as quais o próprio duque de Lerma. Porém, o valido de Filipe III e o próprio monarca não se mostravam menos interessados no acordo, desejosos que estavam em obter o apoio dos financeiros portugueses. Num primeiro momento, entre aqueles que abandonaram Portugal e procuraram refúgio no reino vizinho, a par de importantes banqueiros, em especial lisboetas, e homens de negócio que se fixaram na corte e em Sevilha, porta de saída para as Índias de Castela, figuravam, também, modestos mercadores que entraram em Castela aproveitando o vazio deixado pela crise económica que varrera Castela no final do século XVI e pouco a pouco se foram integrando e enriquecendo. O duque de Lerma firmou com eles vários contratos, aproveitando, desta forma, os recursos e contactos que os cristãos-novos estavam em condições de oferecer em troca de certas concessões e de bons negócios. Os problemas religiosos e de limpeza de sangue foram relegados para segundo plano.

Poucos meses depois da publicação do perdão geral, por alvará de 5 de Junho de 1605, foi constituída, em Lisboa, uma Junta, presidida por Constantino Mello, incumbida do maneio e distribuição do referido serviço. Os cristãos-novos ou por que se encontrassem desiludidos com Filipe III por não os ter considerado em condições de exercerem certos cargos e honras, ou por que tivessem prometido verbas de que não dispunham, quando chegou o momento da cobrança não cumpriram aquilo a que se tinham obrigado. Impôs-se a coacção, mas os cristãos-novos regateavam o pagamento, vendiam seus bens e tentavam fugir. Perante este quadro o monarca considerou que não se encontrava mais obrigado a cumprir a sua promessa e no ano seguinte, em 1606, Filipe III proibiu os cristãos-novos de saírem do reino, sem provisão sua ou sem quitação do presidente da referida Junta. O reino converteu-se em prisão por dívidas. A atitude de benevolência manifestada pelo monarca no início do seu reinado esfumava-se pouco a pouco e os cristãos-novos não foram os únicos que sofreram com a alteração de comportamento de Filipe III». In Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado de D. João IV, Heróis ou Anti-Heróis?, Dissertação de Doutoramento em História, Universidade Aberta, Lisboa, 2003.

Cortesia de UAberta/JDACT

JDACT, Conhecimentos, D. João IV, Elvas, Évora, Maria do Carmo T. Pinto, 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado de João IV. Maria do Carmo T. Pinto.«O dinheiro arrecadava-se (...) mas os cascos apodreciam desarmados, enquanto os piratas acoutavam os nossos mares. O erário régio exigia reformas profundas que tardavam e o desequilíbrio aumentava»

dact

Com a devida vénia à Doutora Maria do Carmo Pinto

Heróis ou Anti-Heróis.

Filipe III e a Inquisição (maldita). Antes e depois do perdão de 1605

«(…) Se analisarmos com algum cuidado a política de Filipe III, facilmente nos podemos aperceber que ocorreram profundas alterações na forma como se desenrolou o relacionamento entre o monarca e o Tribunal do Santo Ofício (maldito) e entre aquele e os cristãos-novos. No início do século XVII, a fazenda real, cuja última quebra tinha ocorrido em 1596, antes da subida de Filipe III ao trono, passava por novos apuros que culminou na bancarrota de 1607. O monarca determinou a imposição aos navios mercantes de um novo tributo, consulado, o qual deveria ser aplicado, exclusivamente, à defesa dos portos e do comércio marítimo. Esta decisão foi cumprida apenas durante alguns anos, uma vez que o produto do recente imposto, tal como já acontecera com a terça dos concelhos destinadas à reparação das fortalezas, depressa foi consumido nas despesas urgentes. O dinheiro arrecadava-se (...) mas os cascos apodreciam desarmados, enquanto os piratas acoutavam os nossos mares. O erário régio exigia reformas profundas que tardavam e o desequilíbrio aumentava. Mesmo o lançamento de um direito novo no valor de 220 réis sobre cada moio de sal exportado veio revelar-se insuficiente para resolver o problema financeiro. Considerando a conjuntura adequada a uma aceitação das suas exigências, os cristãos-novos tentaram a consciência do príncipe, prometendo-lhe avultadas quantias em troca da recuperação de imunidades que no reinado de dom Sebastião lhe tinham sido concedidas e cuja revogação por parte de dom Henrique foi confirmada por Filipe II. O desaparecimento de Filipe II e as dificuldades do tesouro nos primeiros anos do reinado de Filipe III aplanaram o caminho aos cristãos-novos. A súplica era audaz, mas a ocasião favorecia os requerentes.

O principal objectivo dos cristãos-novos era conseguirem, efectivamente, obter o perdão geral que havia muito procuravam alcançar e que, concedido por Clemente VII a 23 de Agosto de 1604, acabaria por ser publicado em 16 de Janeiro de 1605. Porém, até o conseguirem concretizar houve que percorrer um longo caminho, aliás iniciado ainda no reinado de Filipe II. Assim, logo em 1598, começaram por oferecer à Coroa 675 mil cruzados, além de lhe facultarem um empréstimo no valor de 500 mil ducados, sem juros, a ser aplicado às naus da Índia e cujo reembolso assentava na pimenta que as mesmas trouxessem. Tanto em Portugal como em Castela, a disponibilidade manifestada pelos cristãos-novos para ajudar Filipe III suscitou forte oposição. O impasse acabou por ser ultrapassado com a proposta apresentada pelos Governadores de Portugal, em Fevereiro de 1600, na qual o reino se comprometia a pagar um serviço de 800 mil cruzados, em prestações anuais, como forma de indemnizar a coroa das somas que deixaria de receber, obrigando-se o monarca, em contrapartida, a rejeitar a pretensão dos cristãos-novos ao perdão geral. O governo castelhano aceitou a proposta mas esta acabou por não obter a anuência do Senado da Câmara de Lisboa com base no facto de não terem sido ouvidos os representantes das cidades e lugares do reino com assento nas Cortes, pelo que o acordo ficou sem efeito, pelo Alvará de 30 de Outubro de 1601. In Maria do Carmo Teixeira Pinto, Os Cristãos-Novos de Elvas no reinado de D. João IV, Heróis ou Anti-Heróis?, Dissertação de Doutoramento em História, Universidade Aberta, Lisboa, 2003.

Cortesia de UAberta/JDACT

JDACT, Conhecimentos, D. João IV, Elvas, Évora, Maria do Carmo T. Pinto,