«(…) A essa altura, Adam já estava apaixonado. O repertório de Gloria consistia em comer, trinar, defecar e arrancar as penas do peito num frenesi neurótico, mas meu sobrinho colocava-a no ombro e ia passear com ela, como se fosse uma princesa encantada transformada em pássaro. Quando Stefa não estava em casa, chegava a pô-la em cima da cabeça. Gloria parecia gostar de viajar num poleiro saltitante feito de cabelo louro cheirando ao nosso último sabonete de lavanda, mas será que alguém sabe o que pensa de facto uma periquita nos intervalos entre as refeições? Para Adam, a alegria tinha penas. E depois de algum tempo, percebi que havia alguma coisa de tocante e encorajador em Gloria, talvez porque sua inutilidade total e irremediável fosse a prova de que ainda podíamos ter pelo menos um luxo.
O
coro de Adam fez a sua primeira apresentação em 28 de Janeiro, na escola de dança
Weisman, situada na rua Pańska. Estourara um cano nessa manhã, e apesar de os
organizadores terem secado a água freneticamente com panos de chão, ainda havia
umas poças espalhadas pela sala. No público estavam alguns amigos e conhecidos,
incluindo o famoso pianista de jazz Noel Anbaum e Ewa, a quem Stefa, eterna
casamenteira, arranjara um caso com Rowy, depois de estudar o rapaz num ensaio
do coro. Segundo minha sobrinha, os dois já tinham saído juntos três vezes com imenso sucesso, e o olhar entendido que me lançou ao pronunciar esse veredicto
revelou até que ponto eles já tinham se aventurado juntos.
Logo as luzes começaram a acender e a apagar, sinal para o público se dirigir aos seus lugares. Oito moças e quatro rapazes subiram em fila as escadas laterais do palco, irrequietos e aos empurrões, o que me fez recear uma descida aos infernos da música. Contudo, sob a batuta erguida de Rowy, os rostos dos meninos ficaram sérios, e cantaram as várias vozes dos corais de Bach como se fossem todos irmãos. Fechando os olhos, senti que, pela primeira vez em meses, tinha parado de me atirar como um louco contra as paredes da minha angústia de desalojado; estava exactamente onde queria estar. Tinha aterrado.
O primeiro bis foi El Male Rachamim, no solene arranjo feito pelo próprio Rowy, que deixou em lágrimas os mais religiosos do público. O segundo foi Don’t Fence Me In, sugestão de Adam. Ao fazer as vénias de agradecimento, meu sobrinho olhou para mim com uma seriedade tão adulta que me senti invadido pela admiração. Pela primeira vez, tive a sensação de que ele ia conseguir coisas magníficas na vida, e soube então que, ao protegê-lo, estava cumprindo a tarefa mais importante que me poderia ter sido atribuída durante o meu tempo no gueto.
No
dia seguinte, a cidade foi varrida por uma frente de frio cortante. Adam
perambulava pela casa em passo trôpego, de braços duros dentro das duas blusas
e do casaco forrado de pele, membro militante de um corpo de pinguins judeus marchando
através do gueto em direcção às suas escolas clandestinas. Comprei dois fogões
de serragem; a essa altura o carvão já desaparecera, levado pelos alemães.
Contudo, os novos fogões revelaram-se criminosamente ineficazes, e durante várias
noites seguidas a temperatura no nosso apartamento só conseguiu subir até os 7
graus. Nessa época, uma doença insidiosa aviária deixara o olho esquerdo de
Gloria de um branco leitoso, e Adam tinha certeza de que a culpa era da frente
fria. Ficava arrasado sempre que pensava nela sendo chamada para o paraíso dos
periquitos, e nada que fizéssemos era capaz de alegrá-lo.
Comecei
a ir para a cama com um cachecol enrolado em volta da cabeça, como um turbante
das Mil e Uma Noites. Os lençóis eram autênticas grutas de gelo, por isso, a
fim de aquecê-los para o meu sobrinho, eu me deitava ao lado dele na cama durante
15 minutos e depois deslizava para o meu lado, chamando-o de sob os cobertores.
Ele atirava-se para os meus braços batendo os dentes, e eu passava a noite com
ele bem encaixado contra mim». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia,
2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015,
ISBN 978-972-004-728-1.
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