quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Sim, tenho visto. Sois muito poupado. Também, para o que comeis! Pão e água... debicar, bebericar... Viu-se lá coisa assim!... Dirigia-se para a porta…»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Um rei sem reino, sem trono, coroa, manto, ceptro... não tenho eu tantas vezes dito que sou um rei nu?... Pois agora... o meu corpo que nem meu pai nem minha mãe conheceram, só raros, pouquíssimos amigos deixei, em minha câmara real, que vestissem, despissem, ataviassem, lavassem, enxugassem, perfumassem... minha intimidade que eu só permiti fosse tocada por aquela princesa de uma noite de refrega em Santa Justa... Violeta! Tão recatada que não me quis revelar o seu nome... Meu pobre corpo devassado por carcereiros estranhos!... E, de repente, epifania! Desataram a fazer-me vénia, a tratar-me como arremedo de quem sou... Acreditaram finalmente? Que aconteceu?... Mudaram-me da enxovia lá de cima, para aposento mais honrado algures no palácio e, de minha miséria, dão-me agora para o prato seis cruzados cada dia e vestimenta mais decente... Só me não deram a liberdade. Porquê?... É um compartimento sem janelas exteriores. Uma fresta mal coa a luz do dia. Não vejo o céu, não sinto a maresia, não me visitam as gaivotas, as pombas, os pardais. A quem darei agora as minhas migalhas?... O bafio das horas ganha bolor, perco o pulsar do tempo no relógio do coração. Carcereiro, digo-lhe, quando um dia me vem trazer o comer. Que há? Sabeis de alguém que precise de ajuda? Olha-me espantado: Quem aqui precisa de ajuda senão vós? Aí bate o ponto, amigo. A ajuda de que necessito negam-ma: a liberdade... Não é da minha conta. ... e os seis cruzados que me... enfim, por esmola, cada dia... olhai, sobejam-me.

Sim, tenho visto. Sois muito poupado. Também, para o que comeis! Pão e água... debicar, bebericar... Viu-se lá coisa assim!... Dirigia-se para a porta, parava na soleira: Estais a juntar pé-de-meia? Para casardes, quando daqui sairdes? Não. Vinde cá. Fechava a porta e chegava-se ao pé de mim a escutar. Não vos perguntei eu se sabíeis de alguém que precisasse de ajuda? Sim. Aí está. Com o dinheiro poupado, poderia eu, em desconto dos meus pecados, fazer bem a outrem... casar, por exemplo, uma órfã... Olhou-me o homem nos olhos como se buscasse ver-me no chão do meu ser e disse muito sério: órfãs, e bem necessitadas, e que desejam casar-se, conheço eu duas. Se quiserdes... E como poderei eu proceder, se estou aqui manietado? Isso não sei. Mas... Não podereis dar parte da minha tenção ao senhor juiz Quirini? Acho que sim, senhor. - Então... Está bem. Quanto antes? De imediato, se puder». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,