segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

No 31. Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Ah, sua mãe, disse Garci. Ela era a mais bondosa das mulheres. Suspirou, e eu soube que havia lágrimas nos seus olhos»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

Zarita

«(…) A mãezinha teria desejado isso, disse-lhe. Ela teria ficado horrorizada com a morte do mendigo e providenciaria para que a esposa deste fosse cuidada. Alguns momentos se passaram antes de Garci responder. Você tem razão, disse. A sua maizinha teria feito o que você diz. Irei com você procurar essa pobre mulher. Garci sabia que o paizinho não podia tomar conhecimento de nossa expedição, portanto esperamos até uma tarde quando ele estava ausente, visitando a casa do pai da condessa Lorena nas colinas vizinhas. Tive o bom senso de me vestir com simplicidade, sem usar roupas finas nem jóias, e cobrir completamente o cabelo e o rosto. Mas, antes mesmo de chegarmos aos arredores das barricadas da cidade, Garci quis voltar. Essas favelas não são lugar para uma pessoa decente, disse-me. Mesmo assim, pessoas decentes devem viver aqui, retruquei. Ou você acha que a pobreza torna uma pessoa indecente? Essa era uma das frases da maizinha; ela defendia sua caridade a meu pai quando ele declarava que, na sua opinião, os pobres causavam infortúnio a si mesmos. Garci não respondeu; apenas fez um ruído estalando a língua para demonstrar sua desaprovação. Estou fazendo um acto de caridade, acrescentei para acalmá-lo, e então lembrei-lhe: Minha mãe teria aprovado. Ah, sua mãe, disse Garci. Ela era a mais bondosa das mulheres. Suspirou, e eu soube que havia lágrimas nos seus olhos.

Depois disso ele se tornou mais submisso, batendo de porta em porta para perguntar sobre o paradeiro de uma mulher doente que agora devia estar sozinha, mas anteriormente tivera marido e filho cuidando dela. Contudo, não achamos qualquer vestígio da mulher. Um grande número de portas permaneceu fechado para nós, e as pessoas que abriam as suas eram hostis e desconfiadas. Finalmente, Garci parou no meio da rua. É inútil, afirmou. A mulher do mendigo pode estar em qualquer aposento deste emaranhado de construções, doente demais para se levantar e atender nossas batidas à porta. Havia uma velha senhora sentada num batente. Fui até lá e me ajoelhei diante dela. Mãe, falei. Ela me olhou com leitosos olhos brancos de extrema velhice. Eu não tenho filha, rebateu. Tive três excelentes filhos, mas foram para a guerra e nunca mais os vi. Eu lhe chamei de mãe porque não tenho uma, disse-lhe baixinho. A velha estendeu a mão nodosa e tocou a minha. Perguntei-lhe se conhecia alguém que pudesse ser a mulher que procurávamos. Não conheço tal pessoa, respondeu. Desesperada, sentei-me sobre os calcanhares. Então tateei dentro da bolsa, tirei uma moeda e lhe dei. Ela escondeu-a numa dobra da roupa, e fiquei imaginando quantos dias de pão ela teria com aquilo. Ao me levantar, a velha ergueu a cabeça e informou: Talvez haja alguém que possa ajudar. Há um homem, um médico, que mora na casa do fim da rua. Ele cuida de quem está doente, mas não tem dinheiro. Caminhei rapidamente para a casa que ela indicou. Mas, quando chegamos perto da porta, Garci recuou. É a casa de um judeu, disse ele, e se benzeu. É a casa de um médico que pode nos ajudar, retorqui. Um homem abriu a porta da frente e permaneceu na entrada. Porque estão parados na rua olhando para a minha casa? Garci pôs a mão no meu braço para me afastar dali. O homem pareceu se divertir com isso e fez menção de voltar para dentro. Falei rapidamente: Estou procurando uma mulher, uma mulher em particular, que está doente. Informei tudo o que sabia sobre a esposa do mendigo». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

 Cortesia de GRecord/JDACT

 JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,

Prisioneira da Inquisição. No 31. Theresa Breslin. «Eu sabia que teria de ir às áreas mais pobres da cidade e, por causa disso, precisaria de um acompanhante»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

Zarita

«(…) Entre as pessoas que vieram à nossa casa apresentar seus pêsames nas semanas e meses após a morte de minha mãe estava a condessa Lorena Braganza. Tinha 20 anos, somente cinco a mais do que eu, e era apenas uma conhecida distante de nossa família, mas acariciou o braço de meu paizinho como se fosse uma amiga íntima e ronronou condolências no seu ouvido. A princípio, prestei-lhe pouca atenção, pois estava concentrada nos meus próprios assuntos. Eu descobrira um propósito, uma missão especial de caridade para empreender. Acreditava que, se conseguisse encontrar a mãe do filho do mendigo e salvá-la da pobreza, eu poderia ser como minha maizinha e, desse modo, estar perto dela ainda que tivéssemos sido separadas. Eu me via agora como um anjo de piedade e esperava que isso expiasse minha má acção e aliviasse um pouco da culpa que sentia pela morte do mendigo. Eu sabia que teria de ir às áreas mais pobres da cidade e, por causa disso, precisaria de um acompanhante. Não pedi a Ramón Salazar. Não achei que ele concordaria. Em todo o caso, suas mais recentes visitas à minha casa costumavam coincidir com as de Lorena Braganza, quando a atenção dele era desviada pela conversa e pelos comentários espirituosos da condessa, e não houve qualquer oportunidade para eu lhe falar em particular pelo menor período de tempo que fosse. Decidi pedir ajuda a Garci, o administrador de nossa fazenda. Estava segura da sua ajuda, pois, quando eu era pequena, ele não me recusava nada. Garci e sua esposa Serafina nunca tinham sido abençoados por um filho e de certa forma me adoptaram, de modo que podia lhe pedir qualquer coisa, que meu desejo era satisfeito. Portanto, fiquei surpresa quando lhe resumi a minha proposta e ele sacudiu a cabeça.

Não, Zarita. Não irei com você às favelas da cidade. Não podemos ter outro incidente no qual seu pai tenha de aplicar uma justiça rápida para impedir roubos e violência. Justiça!, exclamei. Aquilo não foi justiça, Garci. Não pode querer desculpar o que meu paizinho fez, enforcando o mendigo sem um julgamento. Eu não estava lá, replicou Garci lentamente. Como sabe, estava na feira equestre de Barqua. Olhou-me severamente. E esse foi o principal motivo por você ter conseguido deixar esta casa acompanhada apenas por Ramón Salazar. Se eu estivesse aqui, não teria aberto o portão para você ir às ruas do velho porto sem uma escolta armada e uma companhia feminina. Mudei de posição, incomodada. Garci adivinhara que eu havia-me aproveitado do tumulto em casa naquele dia: meu paizinho, Ardelia e Serafina, nossa governanta, estavam ocupados com a maizinha, de modo que consegui dar uma escapulida acompanhada apenas por Ramón.

Portanto, como não testemunhei a situação, prosseguiu, não julgarei os actos de seu pai. Ele é um homem rigoroso. Fez uma pausa. E agora que sua mãe faleceu, quem estará presente para lembrá-lo de que a piedade é uma virtude concedida por Deus? Garci mencionara minha mãe, e percebi o seu ponto fraco». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha, 

No 31. Comer, Orar, Amar. Elizabeth Gilbert. «Vinha tentando convencer-me de que os meus sentimentos eram comuns, apesar de todas as provas em contrário, como a conhecida com quem eu havia esbarrado na semana anterio…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu estava tentando tanto não saber isso, mas a verdade continuava a insistir. Eu não quero mais estar casada. Não quero morar nesta casa grande. Não quero ter um filho. Mas todos esperavam que eu quisesse ter um filho. Eu estava com 31 anos. Meu marido e eu, estávamos juntos havia oito anos, sendo seis casados, havíamos construído nossa vida inteira com base na expectativa comum de que, uma vez superada a avançada marca dos 30 anos, eu iria querer sossegar e ter filhos. Ambos esperávamos que, a essa altura, eu já tivesse me cansado de viajar e fosse ficar feliz em morar numa casa grande e barulhenta, cheia de crianças e de colchas feitas à mão, com um jardim nos fundos e um reconfortante ensopado borbulhando em cima do fogão. (O facto de esse ser um retrato bastante fiel da minha mãe é um indicador rápido de como antigamente era difícil para mim perceber a diferença entre eu mesma e a poderosa mulher que havia me criado.) Mas eu não queria nenhuma dessas coisas, e estava arrasada por estar me dando conta disso. Pelo contrário: meus 20 anos haviam chegado ao fim, aquele prazo final dos 30 havia-se abatido sobre mim como uma sentença de morte, e eu descobri que não queria engravidar. Continuava esperando querer ter um filho, mas isso não acontecia. E eu conheço a sensação de querer alguma coisa, podem acreditar. Sei muito bem o que é desejo. Mas esse desejo não existia. Além do mais, eu não conseguia parar de pensar no que minha irmã me tinha dito certo dia, enquanto amamentava o seu primogénito: Ter um filho é como fazer uma tatuagem na cara. Precisa realmente ter a certeza de que é isso que quer antes de se comprometer.

Mas como poderia voltar atrás agora? Tudo estava no lugar certo. Supostamente, aquele deveria ser o ano. Na verdade, já vínhamos tentando engravidar havia alguns meses. Mas nada tinha acontecido (excepto pelo facto de, num arremedo quase sarcástico de uma gravidez, eu estar tendo enjôos matinais psicossomáticos e vomitando meu café-da-manhã todos os dias, aflita). E todo o mês, quando eu ficava menstruada, via-me sussurrando furtivamente no banheiro: Obrigada, obrigada, obrigada, obrigada por me dar mais um mês de vida. Eu vinha tentando convencer-me de que isso era normal. Todas as mulheres devem sentir-se assim quando estão tentando engravidar, concluí. (Ambivalente, foi a palavra que usei, evitando a descrição muito mais exacta, inteiramente dominada pelo pânico).

Vinha tentando convencer-me de que os meus sentimentos eram comuns, apesar de todas as provas em contrário, como a conhecida com quem eu havia esbarrado na semana anterior, que acabara de descobrir que estava grávida do primeiro filho depois de gastar dois anos e rios de dinheiro em tratamentos de fertilidade. Ela estava em êxtase. Sempre desejara ser mãe, disse-me. Admitiu que vinha comprando roupinhas de bebé secretamente havia anos, e escondendo-as debaixo da cama, onde seu marido não as encontraria. Vi a alegria no seu rosto e a reconheci. Era uma alegria idêntica à que meu próprio rosto havia irradiado na Primavera anterior, no dia em que descobri que a revista para a qual eu trabalhava iria me mandar para a Nova Zelândia para escrever um artigo sobre a busca por uma lula gigante». In Elizabeth Gilbert, Comer, Orar, Amar, 2006, Bertrand Editora, 2006, ISBN 978-972-251-503-0.

 ortesia de BertrandE/JDACT

JDACT, Elizabeth Gilbert, Literatura, MLCT, Aniversário, Itália, Indonésia, Índia, 

domingo, 30 de janeiro de 2022

A Papisa Joana. Donna Woolfolk Cross. «Depois, espetou o queixo resolutamente. Tinha de ser, portanto, fá-lo-ia. Movendo-se com extrema lentidão, sem tirar os olhos do inimigo, levantou-se da cama. Sentiu o chão térreo frio…»

jdact

«(…) Sobre a mão de Hrotrud correu sangue quente, espalhando-se pelos seus braços e pela cama. Finalmente, ela sentiu a abertura ceder. Com um grito exultante, Hrotrud meteu a mão e agarrou na cabeça do bebé, exercendo uma pressão suave para baixo. Segurai-a pelos ombros e empurrai-a na minha direcção, disse ela ao cónego, que empalideceu. Mesmo assim, obedeceu. Hrotrud sentiu a pressão aumentar quando o cónego juntou a sua força à dela. Ao fim de alguns minutos, o bebé começou a descer para a passagem do nascimento. Ela continuou a puxar com firmeza, mas com cuidado suficiente para não magoar os ossos tenros da cabeça e do pescoço da criança. Por fim, apareceu o cimo da cabeça do bebé, coberto com uma massa de cabelo fino e molhado. Hrotrud puxou a cabeça para fora, com cuidado, depois virou o corpo para permitir que o ombro direito, depois o esquerdo, saíssem. Mais um puxão firme e o pequeno corpo deslizou, húmido, para os braços de Hrotrud, que o esperava.

Uma menina, anunciou Hrotrud. E forte, pelo que parece, acrescentou ela, atentando, aprovadora, para o grande grito lançado pela criança e para o tom saudavelmente cor-de-rosa da sua pele. Voltou-se e encarou com o olhar reprovador do cónego. Uma menina, disse. Então, foi tudo para nada. Não digais isso, senhor. Hrotrud ficou subitamente receosa de que a desilusão do cónego significasse menos comer para ela. A criança é saudável e forte. Se Deus quiser, há-de viver e honrará o vosso nome. O cónego abanou a cabeça. Ela é um castigo de Deus. Um castigo pelos meus pecados e pelos dela. Voltou-se para Gudrun, que estava imóvel. Ela irá sobreviver? Sim.

Hrotrud esperou ter sido convincente. Não podia permitir que o cónego pensasse que tinha motivos para estar duplamente desapontado. Ainda esperava provar carne nessa noite. E, afinal, era razoável esperar que Gudrun sobrevivesse realmente. É verdade que o parto tinha sido violento. Depois de um esforço tão grande, muitas mulheres apanhavam febre e tinham hemorragias. Mas Gudrun era forte; Hrotrud trataria a sua ferida com um unguento de artemísia misturada com gordura de raposa. Sim, se Deus quiser, ela sobreviverá, repetiu ela, com firmeza. Não lhe pareceu necessário acrescentar que, provavelmente, não teria mais filhos. Já é alguma coisa, então, disse o cónego.

Aproximou-se da cama e ficou a olhar para Gudrun. Tocou suavemente no cabelo louro, agora mais escuro, por causa do suor. Por momentos, Hrotrud pensou que ele ia beijar Gudrun. Depois, a sua expressão mudou. Ficou sério, mesmo zangado. Per mulierem culpa successit disse ele. O pecado veio por uma mulher. Largou o caracol de cabelo e recuou. Hrotrud abanou a cabeça. Qualquer coisa da Bíblia, certamente. O cónego era uma pessoa estranha, não havia dúvida, mas isso não era da sua conta, graças a Deus. Apressou-se para acabar de limpar Gudrun do sangue e da placenta para poder regressar a casa ainda com luz do dia. Gudrun abriu os olhos e viu o cónego debruçado sobre ela. O sorriso que começou a esboçar gelou-lhe nos lábios quando viu a expressão dos seus olhos. Marido?, disse  a medo.

Uma menina, disse o cónego, friamente, sem se dar ao incómodo de ocultar o seu desagrado. Gudrun assentiu, compreendendo, e voltou o rosto para a parede. O cónego virou-se para sair, mas parou por uns instantes para olhar para a criança já bem aconchegada na sua enxerga de palha. Joana. Chamar-se-á Joana, disse, e saiu do quarto, abruptamente.

A trovoada soou muito perto e a criança acordou. Mexeu-se na cama, à procura do calor e do conforto dos corpos adormecidos dos seus irmãos mais velhos. Depois, lembrou-se. Os seus irmãos tinham-se ido embora. Chovia. Um aguaceiro primaveril que enchia o ar da noite com o cheiro agridoce de terra acabada de lavrar. A chuva fazia um ruído surdo no telhado da cabana do cónego, mas a espessa cobertura de colmo mantinha a casa seca, excepto num ou dois cantinhos, onde a água tinha começado a acumular-se, pingando lentamente em gotas grossas sobre o chão em terra batida. Levantou-se vento e as folhas de um carvalho junto da casa começaram a bater num ritmo irregular de encontro às paredes. A sombra dos seus ramos projectava-se no quarto. A criança observou, petrificada, como os monstruosos dedos negros se contorciam à volta da cama. Estendiam-se para ela, procurando alcançá-la, e ela encolheu-se. Mamã, pensou ela. Abriu a boca para a chamar, mas deteve-se. Se fizesse barulho, a mão ameaçadora atacaria. Ficou gelada, incapaz de se mexer. Depois, espetou o queixo resolutamente. Tinha de ser, portanto, fá-lo-ia. Movendo-se com extrema lentidão, sem tirar os olhos do inimigo, levantou-se da cama. Sentiu o chão térreo frio por baixo dos pés; a sensação familiar tranquilizou-a. Mal se atrevendo a respirar, dirigiu-se para a parte da casa onde a mãe estava a dormir. Relampejou; os dedos mexeram-se e esticaram-se como que para a agarrar. Ela engoliu um grito e a garganta apertou-se-lhe com o esforço. Teve de se forçar a mover-se lentamente e a não largar numa corrida. Já estava perto. De repente, abateu-se sobre a sua cabeça o estrondo de um trovão. Nesse preciso momento, algo lhe tocou nas costas. Ela gritou, virou-se e fugiu pelo quarto, tropeçando na cadeira que se encontrava no caminho». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.

Cortesia de EPresença/JDACT

Donna Woolfolk Cross, JDACT, Literatura, Vaticano,

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

A Papisa Joana. Donna Woolfolk Cross. «Ela oscilou e o seu corpo tombou completamente na direcção do marido. O cónego era mais forte do que Hrotrud tinha pensado. Isso era bom porque ela precisaria de toda a força que ele tivesse para o que se seguia»

jdact

«(…) Gudrun gemeu novamente, torcendo-se com dores, mas o cónego não levantou os olhos do livro. Um homem duro, pensou Hrotrud. Mas deve ter algum fogo nos quadris, senão não a tinha tomado por esposa.Há quanto tempo tinha o cónego trazido a mulher da Saxónia para casa: há dez Invernos, talvez há onze? Gudrun não era jovem, para o que era costume entre os francos, talvez tivesse vinte e seis ou vinte e sete anos, mas era muito bonita, com os longos cabelos louros e os olhos azuis das alienigenae. Tinha perdido toda a família no massacre de Verden. Nesse dia, milhares de saxónios tinham preferido morrer a aceitar a verdade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Bárbaros loucos, pensou Hrotrud. Comigo, não teria sido assim. Ela teria jurado tudo quanto lhe pedissem. Fá-lo-ia, aliás, se os bárbaros alguma vez voltassem a passar pela terra dos francos, juraria fidelidade a todos os deuses que eles quisessem, por muito estranhos ou terríveis que fossem. Isso não alterava nada. Quem poderia saber o que se passava no coração de alguém? Uma mulher sensata tinha ideias próprias. O lume faiscava, lançando chispas. Hrotrud dirigiu-se à pilha de lenha arrumada a um canto, escolheu dois ramos de vidoeiro de bom tamanho e meteu-os na lareira. Ficou a observar, à medida que eles ardiam, sibilando, e as labaredas os devoravam. Depois, voltou para junto de Gudrun para ver como ela estava.

Tinha passado uma boa meia hora desde que Gudrun tinha mastigado as aparas de astrágalo, mas o seu estado não se tinha alterado. Nem sequer um medicamento tão forte como aquele tinha conseguido fazer efeito. As contracções continuavam a ser irregulares e sem resultado e Gudrun continuava a enfraquecer. Hrotrud suspirou, cansada. Era evidente que tinha de tomar medidas mais enérgicas. O cónego demonstrou ser mais um problema, quando Hrotrud lhe disse que necessitava de ajuda para o parto. Manda chamar mulheres à aldeia, disse ele, peremptoriamente. Ah, senhor, isso é impossível. Quem poderia ir buscá-las? - Hrotrud ergueu as mãos ao céu. Eu não posso ir porque a vossa mulher precisa de mim aqui. O vosso filho mais velho não pode ir porque apesar de parecer um rapaz que promete, poderia perder-se na tempestade. Eu quase me perdi. O cónego deitou-lhe um olhar fulminante. Muito bem, disse ele. - Eu vou. Quando se levantou da cadeira, Hrotrud abanou a cabeça com impaciência.

Não adiantava nada. Quando tivésseis regressado, já seria tarde de mais. É da vossa ajuda que eu preciso, e depressa, se que reis que a vossa mulher e o bebé sobrevivam. Da minha ajuda? Estás doida, mulher? Isso, e apontou, enojado, para a cama, é coisa de mulheres, é impuro. Recuso-me. Então, a vossa mulher vai morrer. Isso está nas mãos de Deus, não nas minhas. Hrotrud encolheu os ombros: Para mim, tanto se me dá. Mas não vos será fácil criar dois filhos sem uma mãe. O cónego encarou Hrotrud: Porque hei-de acreditar em ti? Ela já deu à luz sem problemas. Eu dei-lhe força com as minhas orações. Não podes saber se ela vai morrer. Isto era de mais. Fosse ele cónego ou não, Hrotrud não toleraria que ele pusesse em causa a sua competência como parteira. Vós é que não sabeis nada, disse ela, asperamente. Nem sequer olhastes para ela. Ide vê-la agora e depois dizei-me que ela não está a morrer.

O cónego aproximou-se da cama e olhou para a sua mulher. O seu cabelo molhado estava colado à pele, que se tinha tornado de um branco-amarelado. Os seus olhos, cercados de um traço negro, estavam encovados; se não fosse o barulho profundo e irregular da sua respiração, dir-se-ia que já estava morta. Então?, espicaçou Hrotrud. O cónego voltou-se, para a encarar de frente: Que raio, mulher! Porque não trouxeste mulheres contigo? Como vós dissestes, os partos anteriores não tinham tido qualquer problema. Não havia nenhum motivo para pensar que agora houvesse. Além disso, quem teria vindo com um tempo destes? O cónego dirigiu-se para a lareira e pôs-se a andar de um lado para o outro, agitadamente. Por fim, estacou. O que queres que eu faça? Hrotrud sorriu. Oh, pouca coisa, senhor, pouca coisa. Conduziu-o de novo para ao pé da cama. Para começar, ajudai-me a levantá-la. Um de cada lado de Gudrun, levantaram-na pelos braços. O seu corpo estava pesado, mas, juntos, conseguiram pô-la de pé.

Ela oscilou e o seu corpo tombou completamente na direcção do marido. O cónego era mais forte do que Hrotrud tinha pensado. Isso era bom porque ela precisaria de toda a força que ele tivesse para o que se seguia. Temos de forçar o bebé a descer. Quando eu disser, levantai-a o mais alto que puderdes e abanai-a com força. O cónego assentiu, com um esgar. Gudrun oscilava entre ambos como um peso morto, com a cabeça tombada sobre o peito. Levantai-a!, gritou Hrotrud. Ergueram Gudrun pelos braços e começaram a sacudi-la para cima e para baixo. Gudrun gritava, lutando para se libertar. A dor e o medo tinham-lhe dado uma força surpreendente. Os dois tinham dificuldade em controlá-la. Se ele me tivesse deixado dar-lhe o meimendro, pensou Hrotrud. Agora, ela estaria meio entorpecida. Eles voltaram a deitá-la, mas ela continuava a lutar e a gritar. Hrotrud voltou a dar a mesma ordem e eles voltaram a levantá-la e a sacudi-la. Depois, deitaram Gudrun na cama, onde ela ficou meio inconsciente, murmurando palavras misteriosas na sua língua bárbara. Está bem, pensou Hrotrud. Se eu me despachar, estará tudo terminado antes de ela recuperar os sentidos. Hrotrud meteu a mão na passagem para o nascimento, tacteando a abertura do útero. Estava rígida e inchada por causa de tantas horas de contracções inúteis. Usando a unha do dedo indicador direito, que ela conservava comprida precisamente para este efeito, Hrotrud rasgou a membrana resistente. Gudrun gemeu, depois ficou completamente inconsciente». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.

Cortesia de EPresença/JDACT

 Donna Woolfolk Cross, JDACT, Literatura, Vaticano,

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Levai este pobre infanção, que uma dama destroçou! Não a mim, que elas adoram a minha piça! Gargalhámo-nos outra vez, mas Gondomar suspirou, desanimado…»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(…) Foi ele quem defendeu este condado! E queria retomar Lisboa e Santarém, que vosso bisavô Fernando havia conquistado, mas que vosso avô, Afonso VI, perdeu para os sarracenos! Depois de uma curta pausa, Gondomar murmurou: Os reis de Castela e Leão têm sempre desejos diferentes dos vossos. Talvez o Condado devesse ser um reino independente... Afonso Henriques ficou pensativo, e depois questionou-o: Foi isso que haveis proposto a minha mãe? Gondomar informou-o apenas de que dona Teresa já lhes destinara Soure, para que a reconstruíssem e começassem a preparar o combate aos mouros abaixo do Mondego. Reconquistar Lisboa é tão importante quanto defender Jerusalém?, provocou Gonçalo. Solene, o velho monge declarou: Tanto ou mais ainda. Cristo está onde estivermos, e o inimigo é o mesmo. Temos de expulsar os sarracenos destas terras. Dito isto, olhou-nos um a um, como se nos examinasse. Alguns de vós podiam juntar-se à nossa Ordem. Não vós, disse a Afonso Henriques, pois sereis o herdeiro do Condado. Voltou a mirar Gonçalo e desafiou-o: Far-vos-ia bem ao espírito, para fugir às tentações do demo! O visado exaltou-se e logo rejeitou tal possibilidade: Monge, eu? Não nasci para rezas, prefiro o vinho e as soldadeiras! Para se safar, Gonçalo apontou para Ramiro. Levai este pobre infanção, que uma dama destroçou! Não a mim, que elas adoram a minha piça! Gargalhámo-nos outra vez, mas Gondomar suspirou, desanimado, e antes de se afastar ainda rematou: Partiremos amanhã, depois das celebrações da Páscoa. Se algum de vós mudar de ideias, vinde ter comigo. Mal deixámos de o ver, Afonso Henriques levantou-se e declarou: Não esperamos mais pelo Braganção! Vamos aos javalis! Só Ramiro se manteve quieto. Quando o príncipe lhe perguntou se desejava ir também o pobre rapaz abanou a cabeça, e ficou para trás, sozinho, às portas das cozinhas do castelo. Parecia mesmo perdido no seu desgostoso universo. Como me enganei...

Era sabido que dona Teresa e Fernão Peres aproveitavam as longas manhãs não apenas para o folguedo, mas também para a conversa política, e há anos que Raimunda espiava aqueles diálogos régios íntimos. Naquele dia, ela ouviu a rainha invocar a sua afeição por Viseu, que fora no passado a capital da monarquia de Leão, e onde cem anos antes o seu antepassado Afonso V de Leão morrera, ferido pela lança de um mouro. Depois, minha prima confirmou a meu pai e meu tio o que já era sabido: Paio Soares iria ser mordomo-mor; Bermudo Trava, governador de Viseu; e havia quatro casamentos na forja. O de meu pai com Teresa Celanova; o meu com Maria Gomes; o do Braganção com Sancha Henriques; e o de Paio Soares com Chamoa. Contudo, a mais perturbadora era a novidade final: Dona Teresa e Fernão Peres esforçavam-se por procriar um varão, e haviam folgado três vezes só naquela matina, em três posições diferentes! Meu pai e meu tio tinham empalidecido com o relato daquelas fogosidades extremas: um menino seria um rival perigosíssimo de Afonso Henriques, ao mesmo tempo um herdeiro legítimo e um Trava!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

 JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura, 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Que diabo nós vamos fazer com uma periquita aleijada? Gloria refugiou-se com o pé-coxinho no canto mais afastado da caixa…»

 

jdact e wikipedia

 «(…) Adam trouxe Gloria para casa dentro de uma caixa de sapatos na terceira semana de Janeiro de 1941, e a lição que ela nos deu foi que mesmo as criaturinhas frágeis como os sonhos podem desequilibrar várias vidas. Quando levantou a tampa da caixa, disse-nos, a mim e à mãe, que o gerente da loja de animais Roth lhe dera a periquita de graça. Bastou que ele apontasse com o dedo para percebermos porquê: a pata esquerda de Gloria estava transformada numa massa cinzenta e granulosa pendurada por um fio, o exemplo perfeito dos males causados pelo câncer. Valha-me Deus, lamentou-se Stefa, espantada, para a pobre criatura. Que diabo nós vamos fazer com uma periquita aleijada? Gloria refugiou-se com o pé-coxinho no canto mais afastado da caixa, tentando desajeitadamente criar alguma distância entre si e a minha sobrinha. Era azul-claro, com um bico amarelo vivo e asas esguias, tingidas de preto e branco. Devia ter sido um lindo pássaro, mas seu peito estava crivado de feridas em carne viva. Ela não consegue voar, informou-nos Adam, cabisbaixo. Uma das asas não funciona. Por isso quis adoptá-la. Vai fazer cocó por todo o lado!, declarou Stefa, as mãos na cintura. Se não lhe dermos de comer, não faz cocó nenhum, gracejei. O menino arregalou os olhos como se eu fosse um traidor, e em seguida mostrou-me a língua. Respondi-lhe na mesma moeda e tentei puxar uma orelha sua, mas ele se abaixou, escapando-me.

Adam, meu querido, berrou Stefa, e aquele querido era um sinal para ele ficar alerta, este pobre pássaro está sem dúvida alguma coberto de piolhos e vai espalhar doenças, por isso vái-se livrar imediatamente dele, e depois lave as mãos! Minha sobrinha tinha começado a recorrer a uma oratória de frases misturadas umas nas outras para poder convencer o filho. Na esperança de conseguir uma trégua, eu disse: Eu faço uma gaiola. Ah, como aquelas estantes tortas que o tio fez!, observou Stefa, apontando para as minhas construções raquíticas. E me deu seu sorriso sarcástico, que tinha o efeito de um pontapé no peito. Vamos comprar uma gaiola interrompeu Adam, e aquele menino impertinente tirou 2 zlotys do bolso com um sorriso atrevido. Onde conseguiu isso?, exigiu saber a mãe, certa de que o filho se transformara num criminoso. Em apostas de cavalos!, gritou ele. E talvez fosse esse o seu verdadeiro desejo. Não! Sério?, perguntei. Faço os deveres de casa de matemática para Feivel, Wolfi e alguns dos outros garotos.

Uns dias mais tarde, Gloria se mudou para uma gaiola cónica que Izzy fez para nós com uma base de madeira e tiras de arame. Soldou uma suástica na cúpula, porque provocar Stefa era a garantia de um número de vaudeville que eles tinham criado ao longo dos anos. Izzy, não tem graça nenhuma!, disse-lhe ela, o que o fez sorrir triunfante. O que você não entende, Stefa, meu amor, respondeu-lhe ele, é que a loucura e a magia são inseparáveis. A suástica vai impedir que os nazis confisquem Gloria quando criarem uma lei contra os animais domésticos judeus». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Literatura, Saber,

domingo, 23 de janeiro de 2022

Poemas de Alcipe. Marquesa de Alorna. «Fazíeis a delícia dos meus dias, escutai os gemidos lastimosos Com que Lília, nas bordas do sepulcro, vos envia um adeus, com que saudade!»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

«[…]

Idílio

«Quando, pela moléstia de peito que então sofria, me desenganaram de que não tinha remédio enquanto estivesse em Chelas, e havia inteira impossibilidade para mudar de sítio»

«Cordeiros meus, que em tempo mais ditoso

Fazíeis a delícia dos meus dias,

Escutai os gemidos lastimosos

Com que Lília, nas bordas do sepulcro,

Vos envia um adeus, com que saudade!

Passou ligeiro o tempo em que, contentes,

No mais alto do monte, consagrado

Aos cânticos das Musas, felizmente

Vos nutríeis de um pasto que regava

A fresca Aurora com a porção mais pura

Do c que dedica ao filho amado.

Gostáveis um licor sacro e sublime,

Que a alma inflama dos cândidos Pastores,

E os obriga a cantar suavemente

Seus amores nas flautas sonorosas.

Que pacíficos gostos eu lograva,

(Ó milagres de Délio!) quando apenas

Da minha pobre avena, mansamente

Os inocentes colos estendendo,

Sentir parecíeis vós esse meu canto,

Parecíeis aplaudir os meus acentos,

Em que a Amor perdoava as travessuras

Com que afligia os míseros pastores!

Outras vezes, que a Amor chamei tirano,

Que só cantei as graças da inocência,

Com que pressa, Cordeiros, me cercáveis,

E com a paz que meus versos inspiravam

Entre os braços do sono vos perdíeis!

Ó memória suave, onde me levas!...

Tais como as densas nuvens que no Inverno

As estrelas aos olhos vão roubando,

A distância me faz ver esse tempo,

Ditoso, mas perdido, ir já cedendo

Ao tirano poder do esquecimento.

Neste vale cruel, onde a desgraça

Ordena que termine os tristes dias,

Escuto só os ventos rugidores,

Arrancando da terra os verdes freixos,

Que abrigavam com as frondosas ramas

Comigo a terna Márcia, a cara Tirce.

O rebanho de Agrário pelos montes

Somente deixa ouvir tristes balidos,

Disperso, quase extinto! Com que pena

Meus olhos tal objeto consideram!...

No espaço imenso dos passados séculos,

Com passos apressados se sepulta

O tempo, que não cessa. A horrenda morte

Com que aspeto a meus olhos (tristes olhos!)

Os descarnados ossos apresenta!

Levanta com furor a enorme foice,

(Que susto!... ó Céus, valei-me!...) que pendente

Vejo sobre a cabeça... Mostra, irada,

O voraz apetite com que esperava

Fazer presa em meus dias brevemente!

Cordeiros, minha doce companhia,

Com quem já reparti os meus prazeres,

Quando da morte o lívido semblante

Vos mostrar com horror minha figura,

E não puder a mão, trêmula e fria,

Sustentar por mais tempo o meu cajado,

(Que jamais vos serviu para castigo,

Que à fonte vos guiava, que ao redil

Vos levou tantas vezes ao descanso)

Ah! não deixeis que algum Pastor profano

À minha Tirce o roube; a minha lira

Nele deixo pendente de um grilhão

Que o maligno Cupido, na cabana

Da mesma Tirce amada, sutilmente

Me trocou pela minha liberdade.

Nos versos meus, que eu confiei dos troncos,

Deixo a fúnebre história dos meus males.

Não consintais que o musgo, o tempo, a sorte

A memória sepultem do que eu sinto,

Antes que os claros olhos do meu Nume

Derramem, quando os lerem, terno pranto,

E que à memória da constante Lília

Pague Amor os extremos que lhe deve.

Ah! possa a mão de Tirce ainda algum dia

Ao querido Pastor, ao Pai amado,

Com os dons que lhe restam, de uma filha

Compensar os suspiros que hoje exala!

Oh! feliz sorte a vossa, triste a minha,

Cordeiros inocentes, que aos desastres

Insensíveis viveis, que da saudade

Não provais a violência, o golpe amargo!

Não sofreis o poder fero e tirano

Deste duro farpão, que rasga o peito,

Monstro que a alma devora sem piedade.

Ficai sempre felices, sempre alegres,

Que eu, sem ver os objetos que adorava,

Acabo... ó Céus!... meus dias... na amargura!...

Razão, por piedade, esconde

O que eu dentro de alma sinto;

Se amor se mostra em meus lábios

Faze crer que sempre minto.

Não quero que hoje a verdade

Se oponha às leis da razão;

Triunfe a modéstia austera,

Gema embora o coração.

Não acenda um só suspiro

Chama que devo apagar;

Siga-se à dor o silêncio:

Vencer é saber calar.

Quantos males evitara

Esse incauto Prometeu,

Se na férula escondido

Ficasse o fogo do Céu!...

Porque se ama, ou se não gosta,

Inda está mal definido;

O acaso, o fado, a estrela

Forjam armas a Cupido.

Se com desdéns recompensa

Zelina meu vivo ardor,

Não tenho de que queixar-me

Não depende dela amor.

Por ela morro; e não pago

De Alcina os ais com os meus.

Ninguém a razão me aindague,

Procure o enigma nos Céus».

[…]

Poemas de Leonor Almeida Portugal Lorena Lencastre, (1750 – 1839), in Poemas de Alcipe’

JDACT

A Arte, Encantamento, Fernando Pessoa, JDACT, Marquesa de Alorna, MLAC, Poesia, Alcipe,    

Poemas de Alcipe. Marquesa de Alorna. «A minha antiga Musa se desvia, só me inspira a cruel melancolia; outro Apolo não tenho que o meu dano»

Cortesia de wikipedia e jdact

«[…]

Águas

Quantas vezes a Musa me guiava

Ao lugar em que terno suspirava

Petrarca saudoso, que em Vaucluso

Suave fez o uso

Da cítara cadente, repetindo

Aquela branda história

Que lhe pôs na memória,

Com as farpas de Amor, um gesto lindo!

Aonde os pensamentos me levavam!

Parecia-me que as Musas enlaçavam

Com fios de ouro as ramas do loureiro;

Depois, que o Deus flecheiro,

Verdes mirtos colhendo, os ia unindo

À formosa capela

De que a Musa mais bela

Coroou Petrarca, Laura, repetindo.

Sonhos vãos que forjava a fantasia!...

Prazeres que benigno Amor fingia!...

As Dríades me ouviram mil canções,

Que aos ternos corações

Excitaram mil gratos sentimentos.

Hoje, nos troncos duros,

Dos meus fados escuros

Escrevo os tão diversos movimentos!

A minha antiga Musa se desvia,

Só me inspira a cruel melancolia;

Outro Apolo não tenho que o meu dano.

Às vezes de ano a ano

Uma triste cantiga solitária

No centro do retiro,

Seguida de um suspiro,

Arranca do meu peito a sorte vária.

Ó Naides, que do fundo desta fonte

Ouvis o mal que Amor manda que eu conte,

Se acaso minhas lágrimas saudosas

Distinguirdes, piedosas,

Ah! condoei-vos, sim, do dano meu!

Se o mal que eu choro tanto

Paga outro terno pranto,

Dai-me a sorte feliz do claro Alfeu!

Canção, vai, que a levar-te não me atrevo;

Segue longe do meu outro destino;

Enquanto nos pesares que imagino

A minha acerba dor eu, triste, cevo.

[…]

Poemas de Leonor Almeida Portugal Lorena Lencastre, (1750 – 1839), in Poemas de Alcipe’

JDACT

A Arte, Encantamento, Fernando Pessoa, JDACT, Marquesa de Alorna, MLAC, Poesia, Alcipe,