A Idade Média não foi a única época iluminada por fogueiras
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Galileu não foi queimado, mas em 1619, em Toulouse,
foi queimado Giulio Cesare Vanini, acusado de heresia, e em 1630, em Milão,
como nos conta Manzoni, foi queimado Gian Giacomo Mora, acusado de propagar a
peste com unguentos contaminados. O mais feroz manual da Inquisição [maldita (nevrótica fenomenologia da feitiçaria e cruel testemunho de
misoginia e fanático obscurantismo)], o infame Malleus Maleficarum, de Kramer e Sprenger, é de 1486
(só seis anos antes do fim oficial da idade das trevas), e a mais
implacável perseguição das bruxas decorre, com as suas fogueiras, do
Renascimento em diante.
A Idade Média não foi apenas uma época de
ortodoxia triunfante.
Outra ideia corrente sobre a Idade Média é a de ter sido uma época
rigidamente vigiada por um aparelho piramidal do poder, temporal e espiritual,
com uma rígida divisão de senhores e súbditos, sem que da base emanasse o
mínimo sinal de impaciência e revolta. Mas isto é, quando muito, uma piedosa
visão da Idade Média sonhada pelos reacionários de todos os séculos, avessos às
polémicas, revoltas e contestações dos tempos modernos. Prescindindo de ter
sido na Idade Média que são limitados os poderes dos soberanos, pois a Magna
Carta data de 1215, e afirmadas as liberdades das comunas perante o Império
Germânico, é na Idade Média que pela primeira vez se esboça uma espécie de luta
de classes dos humildes contra os poderosos, mais ou menos apoiada em ideias
religiosas de renovação do mundo, por isso julgadas heréticas. Tudo isto está
relacionado com o milenarismo medieval; mas para compreender o milenarismo é
preciso reconhecer à Idade Média, além do cristianismo das origens, aquilo a
que poderíamos chamar a invenção da História, ou de uma sua direcção. A cultura
pagã é uma cultura sem história. Júpiter existe desde sempre. Empenhado em pequenas
aventuras com os humanos, modifica-lhes os destinos individuais, mas não se compromete
com o andar do mundo. O mito é narrado na forma do já acontecido. Não é reversível.
Os deuses intrometem-se, por vezes, com promessas e garantem um futuro resultado
dos acontecimentos (Ulisses voltará a casa, palavra de deusa), mas o facto diz
sempre respeito a indivíduos ou a pequenos grupos. O maior de todos os frescos históricos
é a Eneida, a
promessa de Vénus a Eneias que implica o destino de um povo inteiro; mas
Virgílio garante apenas os acontecimentos desde Eneias até Augusto. A Eneida é a promessa de um destino
histórico dos romanos que já está realizado no momento em que é narrado, e a Écloga IV diz respeito ao
presente (competirá depois aos medievais lê-la como documento escatológico e
acentuar os indícios de tensão para o futuro que aparecem em Virgílio).
Pelo contrário, o profetismo hebraico está nas origens da visão
cristã da História; o profetismo hebraico respeita só ao destino de um povo e
não ao destino do mundo, mas a promessa de um Messias implica frequentemente
uma escatologia revolucionária, segundo a qual as coisas últimas se verificarão
sob o impulso de uma força disruptiva e o poderio romano será destruído por um
rei guerreiro dotado de poderes miraculosos. No cristianismo, a história da
humanidade tem um início, a Criação, um incidente, o pecado original, um nodo
central, a Encarnação e a Redenção, e uma perspetiva: o caminho para o regresso
de Cristo Triunfante, a Parusia, o Juízo Universal e o fim dos tempos. O
sentido da história nasce e toma forma, principalmente, com esse texto
visionário e terrível que é o Apocalipse, atribuído a São João Evangelista, e
continua com a reflexão patrística até culminar em Santo Agostinho. Os impérios
da terra vivem e morrem, e ao longo dos séculos só se define a Cidade de Deus,
oposta à cidade terrena, que é o seu epifenómeno ou a sua negação. Todo o
contrário, como é óbvio, do sentido laico e liberal da história terrena, que
ganhará forma entre o século XVIII e o seguinte com as doutrinas românticas e
idealistas e, por fim, com o marxismo. Mas é indubitável que o sentido da
História, como vivência móvel da humanidade entre um início e um fim, nasce com
o Apocalipse, com vaticínios que respeitam a algo que ainda está para vir e que
nos diz que a História é o lugar de um contínuo recontro de Deus com Satanás, o
combate da Jerusalém Celeste contra a Babilónia.
Mas a leitura que a Idade Média faz deste texto é dúbia. De um
lado, a interpretação ortodoxa, com A
Cidade de Deus de Santo Agostinho como ponto de partida; do outro,
a dos marginais, dos heréticos, que em todos os séculos se baseiam no Apocalipse
para estabelecer programas de intransigência revolucionária ou ascética que
identificam pouco a pouco os representantes da cidade terrena e da Babilónia
com a Igreja, os corruptos ministros do culto ou o poder temporal. Ambos os
filões serão agitados por uma esperança e um terror: esperança, porque o
Apocalipse promete a salvação final, e até uma comunidade terrena reconhecível,
a dos eleitos, quer vivam na Igreja oficial quer se lhe oponham para constituir
uma fileira que a Igreja maltrata e combate, e terror, porque a via para a
solução final da História está constelada de horrores inomináveis (e João não
nos poupa a nenhum)». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros,
Cristãos, Muçulmanos, Publicações
dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.
Cortesia PdQuixote/JDACT
JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,