sábado, 8 de janeiro de 2022

As Areias do Tempo. Sidney Sheldon. «Havia uma serenidade indescritível dentro dos muros e nos corações das mulheres que ali viviam. Se o convento era uma prisão, tratava-se de uma prisão no Éden de Deus…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Ávila

«(…) As velas nos castiçais antigos projectavam sombras evocativas nos tectos e paredes. Em quatrocentos anos, nada mudara dentro dos muros do convento, excepto os rostos. As irmãs não tinham pertences pessoais, pois desejavam ser pobres, emulando a pobreza de Cristo. A própria igreja era desprovida de ornamentos, salvo uma cruz de ouro maciço, de valor inestimável, antigo presente de uma rica postulante. Por estar tão em desacordo com a austeridade da ordem, era mantida num armário no refeitório. Uma cruz de madeira simples pendia no altar da igreja. As mulheres que partilhavam suas vidas com o Senhor viviam juntas, trabalhavam juntas, comiam juntas e rezavam juntas, mas nunca se tocavam e se falavam. As únicas excepções permitidas eram quando ouviam a missa ou quando a reverenda superiora Betina lhes falava na privacidade da sua sala. Mesmo então, uma antiga linguagem de sinais era usada ao máximo possível. A reverenda madre era uma religiosa com cerca de setenta anos, expressão inteligente, jovial e dinâmica, glorificada na paz e alegria de vida no convento, uma vida consagrada a Deus. Protectora irredutível das suas freiras, sentia muita angústia quando era necessário impor a disciplina, mais do que aquela que estava sendo punida. As freiras circulavam pelos claustros e corredores de olhos baixos, mãos cruzadas dentro das mangas, na altura do peito, passando e repassando pelas suas irmãs sem qualquer palavra ou sinal de reconhecimento. A única voz no convento era a dos sinos, os sinos que Vitor Hugo chamou de A ópera dos Campanários.

As irmãs vinham de antecedentes díspares e de muitos países diferentes. Pertenciam a famílias de aristocratas, camponeses, soldados... Chegaram ao convento como ricas e pobres, instruídas e ignorantes, miseráveis e exaltadas, mas ali eram todas iguais aos olhos de Deus, unidas no seu desejo de casamento eterno com Jesus. As condições de vida no convento eram espartanas. No Inverno o frio era cortante, e uma luz pálida filtrava-se pelas janelas gradeadas. As freiras dormiam plenamente vestidas em enxergas de palha, cobertas por mantas ásperas de lã, cada uma na sua pequena cela, mobilada apenas com uma cadeira de pau, de encosto recto. Não havia lavatório, um pequeno jarro de barro e uma bacia ficava no chão, no canto da cela. Nenhuma freira tinha permissão para entrar na cela da outra, à excepção da reverenda madre Betina. Não havia nenhum tipo de recreação, apenas trabalho e orações. Havia áreas de trabalho para tricotar, encadernar livros, fiar e fazer pão. Havia oito horas de oração diárias: matinas, laudes, primas, terças, sextas, nonas, vésperas e completas. Havia ainda outras devoções: bênçãos, hinos e litanias. Matinas era a oração que se fazia quando metade do mundo estava dormindo e a outra metade absorvida no pecado.

Laudes, o ofício do amanhecer, seguia-se às matinas, o nascer do sol aclamando como a figura de Cristo, triunfante e glorificado. Primas era a oração matutina da igreja, pedindo as bênçãos para as obras do dia. Terças, acontecia às nove horas da manhã, consagrada por Santo Agostinho ao Espírito Santo. Sextas, eram às onze e meia, evocada para extinguir o calor das paixões humanas. Nonas, era recitada em silêncio às três horas da tarde, a hora da morte de Cristo. Vésperas, era o serviço vespertino da igreja, como laudes fora a oração do amanhecer. Completas, eram às últimas horas canónicas dos ofícios divinos. Uma forma de orações nocturnas, um preparativo para a morte e também para o sono, encerrando o dia com uma declaração de submissão amorosa: Manus tuas, domine, comendo spiritum meum. Redemisti nos, domine, deus, veritatis.

Em algumas das outras ordens a flagelação fora abolida, mas sobrevivia nos conventos e mosteiros Cistercienses de clausura. Pelo menos uma vez por semana, e às vezes todos os dias, as freiras puniam seus corpos com a Disciplina, um açoite de trinta centímetros de comprimento, de corda fina, encerado, com seis pontas nodosas que provocavam uma dor angustiante; era usado para espancar as costas, pernas e nádegas. Bernard de Clairvaux, o ascético abade dos Cistercienses, advertira: O corpo de Cristo está aniquilado..., nossos corpos devem se conformar à semelhança do corpo ferido de Nosso Senhor. Era uma vida mais austera do que em qualquer prisão, mas as irmãs viviam em êxtase, como jamais ocorrera no mundo exterior. Haviam renunciado ao amor físico, bens pessoais e liberdade de opção, mas ao abrirem mão dessas coisas também renunciaram à ganância e competição, ódio e inveja, a todas as pressões e tentações que o mundo exterior impunha. No interior do convento reinava uma paz absoluta e o inefável sentimento de alegria pela união com Deus. Havia uma serenidade indescritível dentro dos muros e nos corações das mulheres que ali viviam. Se o convento era uma prisão, tratava-se de uma prisão no Éden de Deus, com o conhecimento de uma eternidade feliz para as que escolheram livremente ingressar e permanecer ali.

A irmã Lúcia foi despertada pelo repicar do sino do convento. Abriu os olhos, surpresa e desorientada por um momento. Na pequena cela em que dormia ainda estava escuro, uma escuridão desoladora. O som do sino avisava-lhe que eram três horas da madrugada, quando o ofício das vigílias começava. Droga! Esta rotina vai matar-me, pensou a irmã Lúcia». In Sidney Sheldon, As Areias do Tempo, 1989, Publicações Europa-América, 2003, ISBN 978-972-105-176-8.

Cortesia PEuropaAmérica/JDACT

JDACT, Sidney Sheldon, Literatura, Espanha, Política,