domingo, 23 de janeiro de 2022

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «… em toda a sua sabedoria libertina, devia ter-me ofendido de propósito para cauterizar minha ferida e, perfeccionista como era, completar minhas aulas de esgrima com o golpe mais honrado de todos: o de misericórdia»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Imagino que o seu benfeitor não seja o jovem Moselane..., sugeriu meu pai, olhando pelo retrovisor. Quando me virei, vi James saindo da faculdade com uma raquete de ténis no ombro. Um calor repentino e nada agradável tomou conta do meu corpo. Ali estava ele, a sensatez em pessoa, lindo como nunca. Não seria mais prudente lhe dizer que eu iria viajar em vez de sair de fininho daquele jeito? Ai, droga, falei, conferindo o relógio. Temos de ir, sério. Meu pai continuou a olhar pelo retrovisor enquanto avançávamos pela Merton Street, decerto perguntando-se como contar à minha mãe sobre aquela agourenta mudança de cenário, e cada tremor de sua pálpebra fazia aumentar o bolo de culpa que eu sentia no estômago. Mas como eu lhe poderia contar a verdade? Ele nunca havia tomado qualquer iniciativa de conversar sobre a avó, nunca me contara sobre o caderno que ela claramente escrevera para mim. Abordar o assunto agora, a caminho do aeroporto, a uma velocidade para ele supersónica, não era uma ideia nada boa. Desculpe, meu pai, murmurei, afagando seu braço. Na volta eu explico.

Passamos algum tempo em silêncio dentro do carro. Com o rabo do olho, pude notar a preocupação paterna cada vez maior lutando contra sua boa índole, que tanto resistia a confrontos. No final ele respirou fundo e disse: Só me prometa que isso não é alguma espécie de..., fuga amorosa. Ele teve de levantar um pouco a voz para pronunciar a palavra. Nós temos dinheiro de sobra para pagar uma festa de casamento, você sabe. Fiquei tão chocada que desatei a rir. Pai, sério! Bom, o que quer que eu pense? Curvado sobre o volante, ele parecia quase zangado. Você passa três horas em casa, pergunta sobre a sua certidão de nascimento..., e agora vai viajar para Amsterdão. Ele me lançou um olhar, e na sua expressão pude ver uma centelha de medo genuíno. Prometa que isso não tem a ver com nenhum..., homem. Sua mãe jamais iria perdoar-me. Ah, meu pai! Inclinei-me para lhe dar um beijo na bochecha. O senhor sabe que eu jamais faria isso. Não sabe? Ele assentiu sem convicção, e acho que eu não podia culpá-lo. Embora fosse raro o assunto vir à baila, eu não tinha dúvidas de que meus pais haviam deduzido bastante coisa em relação ao meu grupo bastante heterogéneo de ex-namorados, aos quais Rebecca se referia como cavaleiros do Apocalipse, embora nenhum deles merecesse título tão nobre.

Por algum motivo, eu nunca tinha tido muito jeito com homens. Talvez a causa fosse minha própria predilecção por ficar sozinha ou quem sabe, como Rebecca sugerira certa vez (esquecendo por um instante minha paixão infantil por James Moselane), eu tivesse algum defeito genético passado por minha avó que me impedisse de me apaixonar. Sempre que algum relacionamento terminava mal, com lágrimas e palavras ditas para magoar, eu chegava a desconfiar que talvez não gostasse de homens e pronto, e que talvez por isso tivesse na gaveta da escrivaninha um maço cada vez maior de cartas de adeus me acusando de ser uma vaca frígida, embora em termos mais eloquentes, claro. Instigada por Rebecca, lá de Creta, na ocasião do meu vigésimo sétimo aniversário, cheguei a pensar que talvez meu problema pudesse ser resolvido simplesmente mudando o foco de homens para mulheres. No entanto, depois de reflectir a respeito por mais ou menos uma semana, tive de concluir que elas despertavam ainda menos meu interesse. A triste conclusão, decidi, devia ser que Diana Morgan estava fadada a ser solitária..., uma daquelas damas de ferro cujo legado, no lugar de netos, consistia em monografias de 3 quilos dedicadas a algum finado professor.

Três dias depois disso, Federico Rivera aparecera. Sendo frequentadora antiga do Clube de Esgrima da Universidade de Oxford, eu não me deixava impressionar fácil por homens exibidos, mas percebi na hora que aquele mestre espanhol que viera passar uma temporada em Oxford era outra história. Apesar de não ser bonito no sentido estrito do termo, ele era alto e tinha um físico invejável. E mais: possuía uma energia explosiva absolutamente inebriante. Federico era um perfeccionista não apenas na esgrima, mas também na arte da sedução e, embora eu tenha certeza de que ambos sabíamos desde o início quais seriam as consequências inevitáveis das minhas aulas nocturnas particulares com ele, passou vários meses concentrado nos meus golpes e contragolpes e mais nada..., antes de finalmente me seguir até ao chuveiro e me ensinar o coup d’arrêt sem dizer uma palavra. Nosso caso durou o Inverno todo e, apesar da sua insistência em que guardássemos segredo, acreditei piamente quando ele disse que eu era o amor de sua vida. Um dia, num futuro próximo, nós contaríamos sobre o nosso relacionamento..., nos casaríamos..., teríamos filhos... Isso nunca foi dito de forma explícita, mas ficou sempre subentendido. E quando ele fugiu de volta para a Espanha da noite para o dia sem nem ao menos se despedir, fiquei tão pasma e magoada que pensei que nunca mais voltaria a ser feliz.

Aí vieram todas as descobertas horríveis: os muitos outros casos dele em Oxford, a noiva furiosa em Barcelona, sua vergonhosa dispensa do clube de esgrima..., mas mesmo assim eu lhe escrevi várias cartas chorosas jurando amor e compreensão e implorando uma resposta. E ele respondeu. Vários meses depois, recebi um envelope gordo enviado de uma academia de esgrima de Madrid contendo todas as minhas cartas, a maioria ainda fechada, e 500 euros. Como ele não me devia dinheiro nenhum, fui forçada a supor que aquele era o seu modo de me remunerar pelos serviços prestados. Fiquei tão irada que levei semanas para entender que mestre Federico Rivera, em toda a sua sabedoria libertina, devia ter-me ofendido de propósito para cauterizar minha ferida e, perfeccionista como era, completar minhas aulas de esgrima com o golpe mais honrado de todos: o de misericórdia». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

Anne Fortier, JDACT, Literatura,