«(…) Imagino que o seu benfeitor não seja o jovem Moselane..., sugeriu meu pai, olhando pelo retrovisor. Quando me virei, vi James saindo da faculdade com uma raquete de ténis no ombro. Um calor repentino e nada agradável tomou conta do meu corpo. Ali estava ele, a sensatez em pessoa, lindo como nunca. Não seria mais prudente lhe dizer que eu iria viajar em vez de sair de fininho daquele jeito? Ai, droga, falei, conferindo o relógio. Temos de ir, sério. Meu pai continuou a olhar pelo retrovisor enquanto avançávamos pela Merton Street, decerto perguntando-se como contar à minha mãe sobre aquela agourenta mudança de cenário, e cada tremor de sua pálpebra fazia aumentar o bolo de culpa que eu sentia no estômago. Mas como eu lhe poderia contar a verdade? Ele nunca havia tomado qualquer iniciativa de conversar sobre a avó, nunca me contara sobre o caderno que ela claramente escrevera para mim. Abordar o assunto agora, a caminho do aeroporto, a uma velocidade para ele supersónica, não era uma ideia nada boa. Desculpe, meu pai, murmurei, afagando seu braço. Na volta eu explico.
Passamos algum tempo em silêncio
dentro do carro. Com o rabo do olho, pude notar a preocupação paterna cada vez
maior lutando contra sua boa índole, que tanto resistia a confrontos. No final
ele respirou fundo e disse: Só me prometa que isso não é alguma espécie de...,
fuga amorosa. Ele teve de levantar um pouco a voz para pronunciar a palavra.
Nós temos dinheiro de sobra para pagar uma festa de casamento, você sabe. Fiquei
tão chocada que desatei a rir. Pai, sério! Bom, o que quer que eu pense?
Curvado sobre o volante, ele parecia quase zangado. Você passa três horas em
casa, pergunta sobre a sua certidão de nascimento..., e agora vai viajar para
Amsterdão. Ele me lançou um olhar, e na sua expressão pude ver uma centelha de
medo genuíno. Prometa que isso não tem a ver com nenhum..., homem. Sua mãe
jamais iria perdoar-me. Ah, meu pai! Inclinei-me para lhe dar um beijo na
bochecha. O senhor sabe que eu jamais faria isso. Não sabe? Ele assentiu sem
convicção, e acho que eu não podia culpá-lo. Embora fosse raro o assunto vir à
baila, eu não tinha dúvidas de que meus pais haviam deduzido bastante coisa em
relação ao meu grupo bastante heterogéneo de ex-namorados, aos quais Rebecca se
referia como cavaleiros do Apocalipse, embora nenhum deles merecesse título tão
nobre.
Por algum motivo, eu nunca tinha
tido muito jeito com homens. Talvez a causa fosse minha própria predilecção por
ficar sozinha ou quem sabe, como Rebecca sugerira certa vez (esquecendo por um
instante minha paixão infantil por James Moselane), eu tivesse algum defeito
genético passado por minha avó que me impedisse de me apaixonar. Sempre que
algum relacionamento terminava mal, com lágrimas e palavras ditas para magoar,
eu chegava a desconfiar que talvez não gostasse
de homens e pronto, e que talvez por isso tivesse na gaveta da
escrivaninha um maço cada vez maior de cartas de adeus me acusando de ser uma
vaca frígida, embora em termos mais eloquentes, claro. Instigada por Rebecca,
lá de Creta, na ocasião do meu vigésimo sétimo aniversário, cheguei a pensar
que talvez meu problema pudesse ser resolvido simplesmente mudando o foco de
homens para mulheres. No entanto, depois de reflectir a respeito por mais ou
menos uma semana, tive de concluir que elas despertavam ainda menos meu
interesse. A triste conclusão, decidi, devia ser que Diana Morgan estava fadada
a ser solitária..., uma daquelas damas de ferro cujo legado, no lugar de netos,
consistia em monografias de 3 quilos dedicadas a algum finado professor.
Três dias depois disso, Federico
Rivera aparecera. Sendo frequentadora antiga do Clube de Esgrima da
Universidade de Oxford, eu não me deixava impressionar fácil por homens
exibidos, mas percebi na hora que aquele mestre espanhol que viera passar uma
temporada em Oxford era outra história. Apesar de não ser bonito no sentido
estrito do termo, ele era alto e tinha um físico invejável. E mais: possuía uma
energia explosiva absolutamente inebriante. Federico era um perfeccionista não
apenas na esgrima, mas também na arte da sedução e, embora eu tenha certeza de
que ambos sabíamos desde o início quais seriam as consequências inevitáveis das
minhas aulas nocturnas particulares com ele, passou vários meses concentrado
nos meus golpes e contragolpes e mais nada..., antes de finalmente me seguir
até ao chuveiro e me ensinar o coup
d’arrêt sem dizer uma palavra. Nosso caso durou o Inverno todo e,
apesar da sua insistência em que guardássemos segredo, acreditei piamente
quando ele disse que eu era o amor de sua vida. Um dia, num futuro próximo, nós
contaríamos sobre o nosso relacionamento..., nos casaríamos..., teríamos
filhos... Isso nunca foi dito de forma explícita, mas ficou sempre
subentendido. E quando ele fugiu de volta para a Espanha da noite para o dia
sem nem ao menos se despedir, fiquei tão pasma e magoada que pensei que nunca
mais voltaria a ser feliz.
Aí
vieram todas as descobertas horríveis: os muitos outros casos dele em Oxford, a
noiva furiosa em Barcelona, sua vergonhosa dispensa do clube de esgrima..., mas
mesmo assim eu lhe escrevi várias cartas chorosas jurando amor e compreensão e
implorando uma resposta. E ele respondeu. Vários meses depois, recebi um
envelope gordo enviado de uma academia de esgrima de Madrid contendo todas as
minhas cartas, a maioria ainda fechada, e 500 euros. Como ele não me devia
dinheiro nenhum, fui forçada a supor que aquele era o seu modo de me remunerar
pelos serviços prestados. Fiquei tão irada que levei semanas para entender que
mestre Federico Rivera, em toda a sua sabedoria libertina, devia ter-me
ofendido de propósito para cauterizar minha ferida e, perfeccionista como era,
completar minhas aulas de esgrima com o golpe mais honrado de todos: o de
misericórdia». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora
Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
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