«(…) Não se pode excluir, respondia Gratarolo, na origem desses incidentes sempre pode haver tensões imponderáveis. Mas a senhora viu as fichas clínicas, as lesões existem.
Abri os olhos e disse bom-dia. Havia também duas mulheres e três
crianças, nunca vistas antes, mas podia imaginar quem eram. Foi terrível,
porque com a esposa, paciência, mas as filhas, Deus meu, são sangue do seu
sangue e os netos mais ainda, e os olhos daquelas duas brilhavam de felicidade,
as crianças queriam subir na cama, pegavam minha mão e me diziam oi, avô, e eu
nada. Não era nem névoa; era, como direi, apatia. Ou se diz ataraxia? Era como
olhar animais no zoológico, podiam ser macaquinhos ou girafas. Claro que eu
sorria e dizia palavras gentis, mas por dentro estava vazio. Ocorreu-me a
palavra segurado, mas não sabia o que queria dizer. Perguntei a Paola: é um
termo piemontês que designa aquela panela que lava bem e depois esfrega por
dentro com aquela espécie de palha de aço para deixá-la como nova, brilhante e
limpa como nunca. Pois eu me sentia completamente grato. Gratarolo, Paola, as
meninas estavam enfiando-me na cabeça mil detalhes da minha vida, mas era como
se fossem caroços de feijão, mexendo a panela eles deslizavam lá por dentro mas
continuavam crus, não se diluíam em nenhum caldo,
em nenhum creme, nada que fizesse o gosto palpitar, nada que eu quisesse
experimentar de novo. Aprendia coisas acontecidas comigo como se tivessem acontecido
com outra pessoa.
Acariciava as crianças e sentia o
seu cheiro sem conseguir defini-lo, excepto que era muito suave. Vinha-me à
mente que há perfumes frescos como carnes de bebé. E de facto minha cabeça não
estava vazia, nela volteavam memórias não minhas, a marquesa saiu às cinco no meio
do caminho desta vida, Ernesto Sábato e a donzelinha vêm dos campos, Abraão gerou
Isaque, Isaque gerou Jacób, Jacób gerou Judas e Rocco e seus irmãos, o campanário
bate à meia-noite santa e foi então que vi o pêndulo, no ramo do lago de Como
dormem dois pássaros de longas asas, messieurs les anglaisje mesuis couché
de bonne heure, aqui ou se faz a Itália ou se mata um homem morto, tu
quo-que álea, soldado que escapa pára és belo, irmãos italianos ainda
um esforço, o arado que traça o sulco é bom para outra volta, a Itália está
batida mas não se rende, combateremos à sombra ed e súbito sera, três
mulheres em torno ao coração e sem vento, a inconsciente azagaia bárbara à qual
estendias a pequenina mão, não pedir a palavra enlouquecida de luz, dos Alpes às
Pirâmides fez a guerra e usou o elmo, frescas as minhas palavras na tarde para
aqueles quatro poemetos das dúzias, sempre libera sobre asas douradas, adeus montes
nascidos das águas, mas meu nome é Lúcia, ou Valentino, Valentino tordilho,
Guido eu gostaria que no céu descolorissem, conheci o tremular as armas os
amores, de la musique ou marchent des colombes, fresca e clara é a noite
e o capitão, ilumino-me pio boi, embora o falar seja inútil, eu os vi em
Pontida, em Setembro iremos onde florescem os limões, aqui começa a aventura do
Peleio Aquiles, tomo banho de lua diga-me o que fazes, no princípio a terra
estava como imóvel, Licht mehr Licht über alies, condessa o que é então
a vida? Três corujas no guarda-pó. Nomes, nomes, nomes, Angelo DairOca Bianca,
lord Brummell, Píndaro, Flaubert, Disraeli, Remigio Zena, Jurássico, Fattori,
Straparola e as noites agradáveis, a Pompadour, Smith & Wesson, Rosa
Luxemburgo, Zeno Cosini, Palma o Velho, Arqueoptérix, Ciceruacchio, Mateus
Marcos Lucas João, Pinóquio, Justine, Maria Goretti, Taide pu… das unhas
merdosas, Osteoporose, Saint Honoré, Baeta Ecbatana Persépolis Susa Arbela, Alexandre
e o nó górdio.
A enciclopédia me caía em cima em
folhas destacadas, e me vinha de abanar as mãos como se estivesse no meio de um
enxame de abelhas. Entretanto as crianças diziam avô, sabia que deveria amá-las
mais que a mim mesmo e não sabia quem chamar de Giangio, quem de Alessandro e
quem de Luca. Sabia tudo de Alexandre, o grande, e nada de Alessandro, o meu
pequenino. Disse que me sentia fraco e precisava dormir. Saíram, eu chorava. As
lágrimas são salgadas. Donde, eu ainda tinha sentimentos. Sim, mas fresquinhos
da hora. Aqueles de antes já não eram mais meus. Quem sabe, perguntava-me, se
alguma vez fui religioso: certamente, de qualquer jeito, perdera a alma. Na
manhã seguinte, Paola também estava, Gratarolo me fez sentar numa mesinha e mostrou
uma série de quadradinhos coloridos, muitíssimos. Estendia-me um e perguntava
de que cor era. Dim, dim dim, sapatinho rosa, dim, dim, dim, de que cor que é?
Cor so-nequim, cor de carmim, salta fora ó garibaldiml Reconheci com segurança
as seis primeiras cores, vermelho, amarelo, verde e assim por diante. Disse naturalmente
que A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu, voyelles, je ditais quelque jour
vos naissances latentes, mas percebi que o poeta, ou quem falava em seu nome,
mentia. O que quer dizer que A é preto? Aliás, era como descobrir as cores pela
primeira vez: o vermelho era muito alegre, vermelho fogo, mas também muito
forte, não, talvez o amarelo fosse mais forte, como uma luz que se acendesse de
repente diante dos meus olhos. E o verde me dava uma sensação de paz. O
problema chegou com os outros quadradinhos. O que é isso? Verde, dizia eu, mas
Gratarolo insistia, que tipo de verde, em que sentido é diferente desse outro?
Hum. Paola me explicava que um era verde-malva e outro verde-ervilha.
A malva é uma erva,
respondia eu, e as ervilhas verduras que se comem, redondas dentto de uma vagem
longa e inchada, mas nunca vira nem malva nem ervilhas. Não se preocupe, dizia
Gratarolo, em inglês há mais de trinta mil termos para cores, mas em geral as pessoas
sabem nomear no máximo oito, em média reconhecemos as cores do arco-íris, vermelho,
laranja, amarelo, verde, azul, índigo e roxo, mas já entre o índigo e o roxo as
pessoas não sabem distinguir bem. É preciso muita experiência para saber
discriminar e nomear as cores, e um pintor sabe fazer isso melhor que, sei lá,
um taxista, que só precisa reconhecer as cores de um sinal de trânsito. Gratarolo
me deu papel e caneta. Escreva, disse. E que diabos devo escrever?, escrevi, e parecia
que nunca fizera outra coisa, a caneta era macia e deslizava bem sobre o papel.
Escreva o que lhe vier à mente, disse Gratarolo». In Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, 2004, Editora
Record, ISBN 978-850-107-143-9.
Cortesia de Difel/ERecord/JDACT
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