«(…) Adam trouxe Gloria para casa dentro de uma caixa de sapatos na terceira semana de Janeiro de 1941, e a lição que ela nos deu foi que mesmo as criaturinhas frágeis como os sonhos podem desequilibrar várias vidas. Quando levantou a tampa da caixa, disse-nos, a mim e à mãe, que o gerente da loja de animais Roth lhe dera a periquita de graça. Bastou que ele apontasse com o dedo para percebermos porquê: a pata esquerda de Gloria estava transformada numa massa cinzenta e granulosa pendurada por um fio, o exemplo perfeito dos males causados pelo câncer. Valha-me Deus, lamentou-se Stefa, espantada, para a pobre criatura. Que diabo nós vamos fazer com uma periquita aleijada? Gloria refugiou-se com o pé-coxinho no canto mais afastado da caixa, tentando desajeitadamente criar alguma distância entre si e a minha sobrinha. Era azul-claro, com um bico amarelo vivo e asas esguias, tingidas de preto e branco. Devia ter sido um lindo pássaro, mas seu peito estava crivado de feridas em carne viva. Ela não consegue voar, informou-nos Adam, cabisbaixo. Uma das asas não funciona. Por isso quis adoptá-la. Vai fazer cocó por todo o lado!, declarou Stefa, as mãos na cintura. Se não lhe dermos de comer, não faz cocó nenhum, gracejei. O menino arregalou os olhos como se eu fosse um traidor, e em seguida mostrou-me a língua. Respondi-lhe na mesma moeda e tentei puxar uma orelha sua, mas ele se abaixou, escapando-me.
Adam, meu querido, berrou Stefa,
e aquele querido era
um sinal para ele ficar alerta, este pobre pássaro está sem dúvida alguma
coberto de piolhos e vai espalhar doenças, por isso vái-se livrar imediatamente
dele, e depois lave as mãos! Minha sobrinha tinha começado a recorrer a uma
oratória de frases misturadas umas nas outras para poder convencer o filho. Na
esperança de conseguir uma trégua, eu disse: Eu faço uma gaiola. Ah, como
aquelas estantes tortas que o tio fez!, observou Stefa, apontando para as minhas
construções raquíticas. E me deu seu sorriso sarcástico, que tinha o efeito de
um pontapé no peito. Vamos comprar uma gaiola interrompeu Adam, e aquele
menino impertinente tirou 2 zlotys do bolso com um sorriso atrevido. Onde
conseguiu isso?, exigiu saber a mãe, certa de que o filho se transformara num criminoso.
Em apostas de cavalos!, gritou ele. E talvez fosse esse o seu verdadeiro
desejo. Não! Sério?, perguntei. Faço os deveres de casa de matemática para
Feivel, Wolfi e alguns dos outros garotos.
Uns
dias mais tarde, Gloria se mudou para uma gaiola cónica que Izzy fez para nós
com uma base de madeira e tiras de arame. Soldou uma suástica na cúpula, porque
provocar Stefa era a garantia de um número de vaudeville que eles tinham criado
ao longo dos anos. Izzy, não tem graça nenhuma!, disse-lhe ela, o que o fez
sorrir triunfante. O que você não entende, Stefa, meu amor, respondeu-lhe ele,
é que a loucura e a magia são inseparáveis. A suástica vai impedir que os nazis
confisquem Gloria quando criarem uma lei contra os animais domésticos judeus». In
Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, ISBN
978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.
Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Literatura, Saber,