«Na vida, o essencial é manter, sobre todas as coisas, julgamentos a priori. Parece, com efeito, que as massas estão erradas, e que os indivíduos sempre têm razão. É necessário ter cautela para não extrair disso regras de conduta: elas não precisam ser formuladas para que as sigamos. Existem apenas duas coisas: o amor, de todas as maneiras, com garotas bonitas, e a música de Nova Orleans ou de Duke Ellington. O resto deveria desaparecer, pois o resto é feio, e as poucas páginas de demonstração que vêm a seguir extraem toda a sua força do facto de que a história é totalmente verdadeira, pois eu a imaginei do começo ao fim. Sua realização material propriamente dita consiste, no essencial, numa projecção da realidade, em atmosfera enviesada e aquecida, num plano de referência irregularmente ondulado e que apresenta distorção. Vemos que se trata de um procedimento perfeitamente confessável». In Prólogo
«Colin terminava sua higiene pessoal. Estava enrolado, ao sair do banho, numa ampla toalha felpuda que deixava ver apenas suas pernas e seu torso. Pegou na prateleira de vidro o spray e aspergiu o óleo fluido e aromático nos cabelos claros. O pente de âmbar cortou a massa sedosa em longos sulcos cor de laranja, parecidos com os talhos que o alegre camponês faz, com um garfo, na geleia de damasco. Colin largou o pente e, armando-se do cortador de unha, aparou obliquamente os cantos das pálpebras foscas, conferindo mistério a seu olhar. Volta e meia precisava repetir o gesto, pois elas cresciam rápido. Acendeu a luz do espelho ampliador e se aproximou para verificar o estado de sua pele. Alguns cravos sobressaíam em volta das aletas do nariz. Ao se verem tão feios no espelho ampliador, eles logo entraram de volta na pele, e, satisfeito, Colin apagou a luz. Soltou a toalha que lhe cingia o quadril e passou uma das pontas por entre os dedos do pé, para absorver os últimos vestígios de humidade. No espelho, dava para ver com quem ele se parecia, com o louro que faz o papel de Slim em Um sonho em Hollywood. Tinha a cabeça redonda, as orelhas pequenas, o nariz arrebitado, a pele dourada. Volta e meia sorria, um sorriso de bebé, e, por força do hábito, aquilo lhe rendera uma covinha no queixo. Era bem alto, magro, com as pernas compridas, e muito gentil. O nome Colin mal se encaixava nele. Falava suavemente com as garotas e alegremente com os rapazes. Estava quase sempre de bom humor e, no resto do tempo, dormia.
Esvaziou a banheira fazendo um
buraco no fundo. O chão do banheiro, revestido de ladrilhos hidráulicos
amarelo-claros, era inclinado e levava a água para um orifício bem em cima da
secretária do locatário do apartamento de baixo. Fazia pouco tempo que ele, sem
avisar Colin, mudara a secretária de lugar. Enfiou os pés em chinelas de couro
de morcego e envergou um elegante fato. Sua calça era de veludo cotelê de um
verde-água bem profundo, e o casaco era de uma rara lã cor de nozes. Pendurou a
toalha no toalheiro, pendurou o tapetinho do banheiro na borda da banheira e o
salpicou de sal grosso, para que expelisse toda a água. O tapete começou a
babar, fazendo cachos de bolinhas de sabão. Saiu do banheiro e foi para a cozinha,
para supervisionar os felementos da refeição. Tinha convidado para jantar, como
toda segunda à noite, o seu amigo Chick, que morava ali pertinho. Ainda era
sábado, mas Colin estava com vontade de ver Chick e fazê-lo degustar o menu
elaborado com uma alegria serena por Nicolas, seu novo cozinheiro. Chick também
era solteiro. Tinha a mesma idade de Colin, vinte e dois anos, e gostos
literários como os dele, mas tinha menos dinheiro. A fortuna de Colin era
suficiente para viver com conforto, sem trabalhar para os outros, e Chick
precisava ir todos os dias ao ministério para ver o tio e pedir dinheiro
emprestado, pois o ofício de engenheiro não rendia o necessário para se manter
no mesmo nível dos operários sob seu comando, e é difícil comandar gente mais
bem vestida e mais bem alimentada do que nós mesmos. Colin ajudava como podia,
convidando-o para jantar sempre que possível, mas o orgulho de Chick o obrigava
a ser prudente, e a não mostrar, por favores frequentes demais, que a sua
intenção era ajudar.
O corredor da cozinha era claro,
com vidraças dos dois lados, e um sol brilhava de cada um dos lados, pois Colin
gostava de luz. Havia torneiras de latão cuidadosamente polidas por todos os cantos.
As brincadeiras do sol nas torneiras produziam efeitos feéricos. Os camundongos
da cozinha gostavam de dançar ao som dos choques dos raios de sol nas torneiras
e corriam atrás das bolinhas que os raios formavam ao se pulverizar no solo,
feito jactos de mercúrio amarelo. Colin acariciou um dos camundongos ao passar,
ele tinha compridíssimos bigodes pretos, era cinzento e magro, e milagrosamente
lustroso. O cozinheiro os alimentava muito bem, sem deixá-los engordar muito.
Os camundongos não faziam barulho durante o dia e só brincavam no corredor. Colin
empurrou a porta esmaltada da cozinha. O cozinheiro Nicolas vigiava o painel de
bordo. Estava sentado diante de uma pequena mesa, igualmente esmaltada de
amarelo-claro e que tinha mostradores correspondentes aos diversos utensílios
culinários alinhados pelas paredes». In Boris Vian, Espuma dos Dias, 1946-1947, Editora
Relógio D’Água, ISBN 978-972-708-644-3.
Cortesia de ERelógio d+Água/JDACT
JDACT, Boris Vian, Literatura, A Arte,