quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A Mentira Sagrada. Luís Miguel Rocha. «Duas mortes seguidas de duas pessoas que conhecia. Está a dizer-me que sou suspeito? Claro. Todos somos. Só eles, apontou para as fotos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Vaticano. 19 de Abril de 2005

«(…) Jacopo Sebastiani, intrometeu-se o outro. Qual é a sua função?, questionou Gavache a Jacopo, cumprimentando-o com renitência. Somos amigos da vítima, adiantou-se Rafael antes que Jacopo respondesse. Gavache fitou os dois com displicência. Não queria disfarçar que os estava a avaliar. Diga-me, disse por fim para Rafael, era óbvio quem era o líder, quem é Yaman Zafer? Meteu a cigarrilha à boca e puxou um pouco mais de tabaco. As noites eram o pior do dia. Não há qualquer interesse do Vaticano. Estamos aqui em nome pessoal, como amigos do falecido. Gavache tornou a fitá-los. Ora um, ora outro, fazendo jus à sua função de inspector. Pois, acabou por dizer. O fumo da cigarrilha formava uma nuvem sobre os três homens. A amizade é uma coisa bonita. Conheciam-no há muito tempo? Há 20 anos. Era um conceituado arqueólogo na Universidade de Londres. Talvez conheça algumas das suas publicações, informou Rafael. Precisava de lhe dar alguma coisa. Gavache não era idiota. Não gosto de ler, respondeu o inspector francês de rajada. A vida já é um livro demasiado grande para andar a perder tempo com isso. Ele é arqueólogo e encontrou alguma coisa para o Vaticano? Fez alguns trabalhos sob patrocínio do Santo Padre, sim, confirmou Rafael. Algumas escavações em Roma e Orvieto. Não podia contar tudo. Podemos ajudar em alguma coisa?, ofereceu-se Rafael. Sentia que estava a perdê-lo. Não. Se quer que lhe diga, os amigos só atrapalham nestes casos, confidenciou com desdém. Jean Paul, gritou para alguém que se apresentou por detrás dele, a menos de um metro. Franzino e alto, com as veias do pescoço a sobressaírem. Quem o não conhecesse diria que passava fome.

Aqui, inspector. Escolta estes senhores à cidade. Não precisamos deles. Merci beaucoup. E virou-lhes as costas, levando novamente a cigarrilha à boca. Sigam-me, s'il vous plait, pediu o tal Jean Paul. Naquele momento Rafael olhou para Gavache que brandia umas fotografias que algum técnico lhe havia passado para a mão. Era este o teu plano?, reclamou Jacopo que enfiara as mãos no bolso para combater o frio. Perda de tempo. O demónio está nos pormenores, limitou-se a dizer Rafael que continuava a fitar Gavache. Entretanto, saíram para o exterior, em direcção à viatura de Jean Paul. Já têm os resultados da autópsia, inspector?, perguntou Rafael. Precisava de informações. Sim e não. Sim, temos, não, não sou inspector. Levou uma grande tareia o seu amigo e injectaram-no com cianeto. Morte rápida. Antes assim. Desceram umas escadas de ferro. Os sapatos pesados faziam-no tilintar a cada passo. Algum suspeito? Não, nenhum. Tudo limpo. Nem um fio de cabelo. Quer dizer, o que há mais ali é mer… Quem fez isto escolheu bem o sítio. Não vão encontrar nada, disse Rafael.

Padre Rafael, ouviu-se uma voz chamar. Era uma mulher à porta do armazém. Rafael olhou. O inspector Gavache quer dar-lhe uma palavra, se não se importa. Rafael galgou três degraus de cada vez e tornou a entrar no espaço que, outrora, seria o escritório do armazém. Gavache estava empenhado a discutir com dois dos seus homens. A voz roufenha a sobressair perante todos os outros. Avistou o italiano. Ah, senhor padre. Importa-se que o trate assim? De todo, respondeu Rafael aproximando-se. Passou-lhe umas fotografias para a mão. Conhece?, perguntou o francês com um tom inquisitivo. Rafael olhou as fotografias. Eram três. Em todas um corpo masculino caído num chão que não era aquele. Era mais escuro, sujo também. Uma cadeira de madeira caída ao seu lado. Não conseguia ver o rosto. Este não é o Zafer, proferiu com certeza. Até aí estamos de acordo. Deu-lhe outra foto. O corpo já estava em cima da maca, dentro do saco mortuário. Rafael viu o rosto e reconheceu. Não tinha qualquer identificação com ele. Que nome lhe vamos dar?, perquiriu Gavache na expectativa. Rafael desconhecia como é que o francês relacionou ambos os crimes, mas não ia omitir. Precisava dele para ter acesso ao caso…, aos casos. Sigfried Hammal. Professor de Teologia. Isto foi quando? Hoje. Aqui em Paris?

Gavache negou com a cabeça. Em Marselha. Olhou para os subordinados. Não necessitou dizer uma palavra para eles dispersarem e deixarem-nos a sós. O francês fitava o italiano com um olhar perscrutador O que é que se está a passar aqui?, perguntou de rompante. Um arqueólogo, um teólogo. Duas pessoas ligadas à Igreja mortas da mesma maneira, no mesmo país. Não faço ideia, respondeu Rafael. Não podia baixar o olhar, caso contrário denotaria fraqueza. Tretas. Também era amigo do alemão? Vi-o apenas uma vez. Por que motivo? Já não me recordo. Foi há muito tempo. Há quanto? Talvez há 20 anos. E o arqueólogo era inglês? Turco, mas vivia em Londres quase desde que nasceu. Não considera curioso que você conheça os dois? O que quer dizer com isso? Duas mortes seguidas de duas pessoas que conhecia. Está a dizer-me que sou suspeito? Claro. Todos somos. Só eles, apontou para as fotos, é que não são suspeitos de rigorosamente nada. A morte livrava de toda a culpa e sofrimento. Era a verdadeira salvação. Acredita na vida para além da morte?, perguntou o francês». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.

Cortesia de PEditora/JDACT

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