Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Jacopo Sebastiani,
intrometeu-se o outro. Qual é a sua função?, questionou Gavache a Jacopo,
cumprimentando-o com renitência. Somos amigos da vítima, adiantou-se Rafael
antes que Jacopo respondesse. Gavache fitou os dois com displicência. Não
queria disfarçar que os estava a avaliar. Diga-me, disse por fim para Rafael,
era óbvio quem era o líder, quem é Yaman Zafer? Meteu a cigarrilha à boca e puxou
um pouco mais de tabaco. As noites eram o pior do dia. Não há qualquer
interesse do Vaticano. Estamos aqui em nome pessoal, como amigos do falecido. Gavache
tornou a fitá-los. Ora um, ora outro, fazendo jus à sua função de inspector. Pois,
acabou por dizer. O fumo da cigarrilha formava uma nuvem sobre os três homens.
A amizade é uma coisa bonita. Conheciam-no há muito tempo? Há 20 anos. Era um
conceituado arqueólogo na Universidade de Londres. Talvez conheça algumas das
suas publicações, informou Rafael. Precisava de lhe dar alguma coisa. Gavache
não era idiota. Não gosto de ler, respondeu o inspector francês de rajada. A
vida já é um livro demasiado grande para andar a perder tempo com isso. Ele é
arqueólogo e encontrou alguma coisa para o Vaticano? Fez alguns trabalhos sob
patrocínio do Santo Padre, sim, confirmou Rafael. Algumas escavações em Roma e
Orvieto. Não podia contar tudo. Podemos ajudar em alguma coisa?, ofereceu-se
Rafael. Sentia que estava a perdê-lo. Não. Se quer que lhe diga, os amigos só
atrapalham nestes casos, confidenciou com desdém. Jean Paul, gritou para alguém
que se apresentou por detrás dele, a menos de um metro. Franzino e alto, com as
veias do pescoço a sobressaírem. Quem o não conhecesse diria que passava fome.
Aqui, inspector. Escolta estes
senhores à cidade. Não precisamos deles. Merci beaucoup. E virou-lhes as costas, levando novamente a
cigarrilha à boca. Sigam-me, s'il
vous plait, pediu o
tal Jean Paul. Naquele momento Rafael olhou para Gavache que brandia umas
fotografias que algum técnico lhe havia passado para a mão. Era este o teu
plano?, reclamou Jacopo que enfiara as mãos no bolso para combater o frio. Perda
de tempo. O demónio está nos pormenores, limitou-se a dizer Rafael que
continuava a fitar Gavache. Entretanto, saíram para o exterior, em direcção à
viatura de Jean Paul. Já têm os resultados da autópsia, inspector?, perguntou
Rafael. Precisava de informações. Sim e não. Sim, temos, não, não sou
inspector. Levou uma grande tareia o seu amigo e injectaram-no com cianeto.
Morte rápida. Antes assim. Desceram umas escadas de ferro. Os sapatos pesados
faziam-no tilintar a cada passo. Algum suspeito? Não, nenhum. Tudo limpo. Nem
um fio de cabelo. Quer dizer, o que há mais ali é mer… Quem fez isto escolheu
bem o sítio. Não vão encontrar nada, disse Rafael.
Padre Rafael, ouviu-se uma voz
chamar. Era uma mulher à porta do armazém. Rafael olhou. O inspector Gavache
quer dar-lhe uma palavra, se não se importa. Rafael galgou três degraus de cada
vez e tornou a entrar no espaço que, outrora, seria o escritório do armazém. Gavache
estava empenhado a discutir com dois dos seus homens. A voz roufenha a
sobressair perante todos os outros. Avistou o italiano. Ah, senhor padre.
Importa-se que o trate assim? De todo, respondeu Rafael aproximando-se. Passou-lhe
umas fotografias para a mão. Conhece?, perguntou o francês com um tom
inquisitivo. Rafael olhou as fotografias. Eram três. Em todas um corpo masculino
caído num chão que não era aquele. Era mais escuro, sujo também. Uma cadeira de
madeira caída ao seu lado. Não conseguia ver o rosto. Este não é o Zafer,
proferiu com certeza. Até aí estamos de acordo. Deu-lhe outra foto. O corpo já
estava em cima da maca, dentro do saco mortuário. Rafael viu o rosto e
reconheceu. Não tinha qualquer identificação com ele. Que nome lhe vamos dar?, perquiriu
Gavache na expectativa. Rafael desconhecia como é que o francês relacionou
ambos os crimes, mas não ia omitir. Precisava dele para ter acesso ao caso…,
aos casos. Sigfried Hammal. Professor de Teologia. Isto foi quando? Hoje. Aqui
em Paris?
Gavache
negou com a cabeça. Em Marselha. Olhou para os subordinados. Não necessitou
dizer uma palavra para eles dispersarem e deixarem-nos a sós. O francês fitava
o italiano com um olhar perscrutador O que é que se está a passar aqui?, perguntou
de rompante. Um arqueólogo, um teólogo. Duas pessoas ligadas à Igreja mortas da
mesma maneira, no mesmo país. Não faço ideia, respondeu Rafael. Não podia
baixar o olhar, caso contrário denotaria fraqueza. Tretas. Também era amigo do
alemão? Vi-o apenas uma vez. Por que motivo? Já não me recordo. Foi há muito
tempo. Há quanto? Talvez há 20 anos. E o arqueólogo era inglês? Turco, mas
vivia em Londres quase desde que nasceu. Não considera curioso que você conheça
os dois? O que quer dizer com isso? Duas mortes seguidas de duas pessoas que
conhecia. Está a dizer-me que sou suspeito? Claro. Todos somos. Só eles,
apontou para as fotos, é que não são suspeitos de rigorosamente nada. A morte
livrava de toda a culpa e sofrimento. Era a verdadeira salvação. Acredita na
vida para além da morte?, perguntou o francês». In Luís Miguel Rocha, A Mentira
Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
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