terça-feira, 4 de janeiro de 2022

A Bicicleta que Fugiu dos Alemães. Domingos Amaral. «Naturalmente, a sua proverbial beleza afectava os alunos e os professores da Sorbonne, só que, apesar de ser muito cortejada, Sara mantinha um permanente distanciamento…»

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Paris, 4 de Junho de 1940

«(…) Parece um operário!, trauteou a senhora em pleno hall, as cordas vocais sempre à procura do registo certo, que nunca encontrariam. Sara!, gritou, enchendo o peito de ar como uma cantora de ópera em frente à plateia. Carol est là! Do primeiro andar escutou-se uma frase ininteligível, que a governanta interpretou como aprovação, apontando o dedo indicador gorducho para cima, sem sentir a necessidade de fornecer uma explicação adicional. Enquanto Carol subia as escadas, avisou-a de que contava com ela ao jantar, ia mandar pôr mais um lugar à table, cantarolou ao afastar-se, abafando o agradecimento da minha prima com o ressoar dos seus tacões no chão de madeira do corredor. Já no patamar do primeiro andar, Carol estacou ao deparar-se-lhe François, de joelho pousado no chão, olho esquerdo fechado, fisga apontada e uma pedra pronta para ser atirada. Prudente, ela sorriu. Meses de permanentes visitas à casa da amiga tinham-na levado à conclusão de que só neutralizava as hostilidades de François com um sorriso, a senha certa para um subtil armistício. Viste a Gestapo?, com ar de entendido, o rapaz explicou que as bandeirinhas nazis e o Mercedes negro não deixavam dúvidas. E a pistola é uma Mauser Luger P08, só a Gestapo as usa, garantiu, acrescentando uma certeza preocupante: Procuram o meu pai. Porquê?, perguntou a minha prima. François manteve o ar solene, enquanto colocava a pedra no bolso. Escapaste de boa. A esta distância, rachava-te a cabeça, como farei ao nazi, se entrar cá em casa. Numa tentativa clara para imitar a voz rouca de Churchill, gritou We shall never surrender! e a seguir atirou-se pelas escadas a baixo aos saltos, três degraus de cada vez, impulsionando-se com a mão direita no corrimão, que agarrava e largava com a destreza de um símio dominador daquela selva doméstica. Está cada vez mais nervoso, comentou Sara.

A amiga estava à porta do quarto e Carol sentiu-a aflita. Com vinte e dois anos, a mesma idade da minha prima, era lindíssima e dona de uns longos cabelos loiros realçados pelo contraste não só com os olhos castanhos, mas também com o manto de pequenas sardas que lhe cobria a pele rosada. O rosto de Sara, de tão perfeito, parecia desenhado por um pintor com a ambição clara de impressionar as gerações vindouras. A testa e as sobrancelhas, as bochechas e o queixo, a boca e os lábios, tudo tinha a proporcionalidade e a dimensão certas. Apenas o nariz destoava, pois apresentava no final um ligeiro levantamento que o arrebitava (Sara chamava-lhe um salto de ski), criando um resultado inesperado, magnificamente humano, como se aquela fosse a imperfeição necessária para garantir que ela não era uma deusa do Olimpo, mas sim uma mulher real.

Naturalmente, a sua proverbial beleza afectava os alunos e os professores da Sorbonne, só que, apesar de ser muito cortejada, Sara mantinha um permanente distanciamento que muitos interpretavam como arrogância, mas que não era mais do que um escudo protector. A amiga temia magoar-se, sofrer de mal d´amour, dizia sempre que era cedo para se apaixonar, pois ainda tinha muito para viver. Havia nela uma permanente recusa do romantismo, como se namorar fosse apenas uma desconfortável tolice. Tu é que gostas disso, justificava-se a Carol, deixando para trás uma mão cheia de pretendentes rejeitados. Tratava-se de um desligamento forçado, pois, se em sociedade Sara se mostrava alheada e muito racional, sofria uma clara metamorfose perto do irmão, ou mesmo do pai e da mãe. Tinha iras intempestivas e, após esses momentos em que mostrava o seu lado avassalador, corava e alegava que François lhe fazia estalar o verniz! Carol já a vira atirar um sapato, uma moldura, até um vaso de flores, sempre contra o irrequieto irmão. A bela esfinge que obrigava os pescoços masculinos a rodarem, a notável figura geradora de silêncios aduladores quando passava, transformava-se numa fera de dentes e punhos cerrados, cujos cabelos ficavam despenteados, como que vítimas de um tornado, mal François ultrapassava o denominado limite do aceitável, uma linha imaginária que ninguém sabia onde ficava, mas que avançava a olhos vistos, sobretudo depois da invasão da França pelos nazis. Tem medo de que prendam o meu pai, acrescentou Sara. Mas o que quer a Gestapo?, inquietou-se Carol.

Paris. 4 de Junho de 1940

A tensão na sala de jantar teimava em não se desvanecer, como se nem a ementa, uns linguados au meunier bem temperados, acompanhados por batatas cozidas e legumes salteados, nem a decoração elegante, lírios, girassóis, cravos e miosótis coloridos misturavam-se num centro de mesa, fossem capazes de diluir a preocupação dos comensais. Um peso no peito oprimia Carol. Fora um dia demasiado longo, carregado de surpresas desagradáveis. As bombas durante a noite, a decisão de madre Mary de encerrar o convento e a residencial, a suspensão inesperada das aulas na universidade, os parisienses em fuga atabalhoada, a partida sem aviso de Jean-Luc, as tentativas de roubo da Hirondelle e, por fim, a presença da Gestapo à porta de casa da amiga. A minha prima sabia que Marcel e Anne tinham ido de carro a Estrasburgo há vários dias, com a intenção de trazer de lá a mãe de Marcel, uma senhora de oitenta anos chamada Raquel, que vivia sozinha na velha casa da família». In Domingos Amaral, A Bicicleta que Fugiu dos Alemães, Casa das Letras, 2019, ISBN 978-989-780-124-2.

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