segunda-feira, 18 de julho de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Como é que sabes isso?, contou-mo meu aio Diogo Soares..., bem conhecia, respondeu o rei, o grande amor que mestre Guedelha lhe tinha e não duvidava ser a astronomia ciência boa e entre outras permitida e aprovada…»

jdact

O Rei de Marfim

«(…) Que me estás tu a cantar, mofino?, agastado que te mostravas! Vendo-te tão apaixonado, juntei duas folhas de papel, desenhei um tabuleiro e aproximei-me da mesa, o rei ralhava o moço chorava: Senhor, trago aqui tabuleiro e com um pouco de cera apeguei-o ao tampo da mesa. Logo te serenou a ira: Ora estais a ver? Exclamaste sorrindo a todos. Para que é trazer tabuleiro nem coisa nenhuma? Basta trazer Resende…, contar as tuas bondades, reconhecer como eras agradecido de qualquer coisa pequena que fosse..., e tentar compreender como é que um homem tão generoso podia dar criamento dentro de si àquela fera, bicho era a tua expressão, que te impelia a praticares actos tão temerosos e cruentos como os que levaste a cabo em tua vida. Como os que levaste a cabo em tua vida. Res dura et regni novítas me talia cogunt molirí, ouvi-te certa ocasião dizer. Res dura, era matéria grave, sim, essa que te coagiu a derramares tanto sangue pelo caminho. Como foi tudo isso possível? Aí vais tu, hirto, deitado na tumba, frio como a alma do gelo, à luz das tochas. Esperam-te diante três alcofas de cal virgem para te ajudarem a seres comido mais cedo. Tinhas tu sete meses morre-te a mãe lacerada de desgostos..., que vozes grita a ventania nos galhos das árvores? Parecem embuçados a arranhar ameaças nos refegos da noite..., paira sobre esta família o espectro da morte violenta e da bastardia..., joga o teu xadrez, rei, um trebelho, outro e outro e outro, cabeças coroadas, bispos, cavaleiros, peões humildes, as paredes cruas de castelos e de paços..., pretas ou brancas, meu irmão?, perguntava-te Joana. sentados à sombra de um carvalho, nos paços de Santo Elói. Sobre a mesa de pedra o tabuleiro. Vestida de dó, de costas à borda do tanque, alheada, a tia Filipa dava migalhas às pombas.

Tanto faz, escolhe tu, irmã. Prefiro  as brancas. É cor de bodas. dezasseis anos...  pretendes casar? É cor de outra coisa, ordena as tuas figuras, não queres começar o torneio? Não te praz a conversa, bem te entendo. o rei nosso pai deve ter sobre isso suas tenções. Andar, andar. Gosto do teu sorriso, apesar da tristeza dos olhos e de..., ora!  Estou pronto! Torneio e justas é comigo. Avança. Este é o rei Duarte..., nosso avô paterno? Então já sei que vou ganhar o jogo. Como assim? Após a morte do pai, nosso bisavô João..., primeiro deste nome. Tu serás um dia o segundo. Não quis o rei Duarte dilatar para depois do meio-dia a cerimónia do seu alevantamento nem sofreu aguardar melhor conjunção dos astros. Mestre Guedelha, seu físico e astrólogo, bem o avisava: Júpiter encontrava-se retrogradado, o Sol em caimento e havia no céu sinais de mau agouro...

Como é que sabes isso?,  contou-mo meu aio Diogo Soares..., bem conhecia, respondeu o rei, o grande amor que mestre Guedelha lhe tinha e não duvidava ser a astronomia ciência boa e entre outras permitida e aprovada, e estarem os corpos inferiores sujeitos aos sobrecelestes, porém sobre todos pairar a mão e a ordenança de Deus. Justa sentença é essa na verdade. O judeu profetizou então a el-rei um reinado curto e atribulado, o que veio a acontecer, como adiante se viu. Por isso te digo, irmã, que este jogo será breve..., e eu o ganharei. Como ganharás?, queres ver? Dizias manobrando com cuidado as pedras. Com o desastre de Tânger e o cativeiro do irmão Fernando... Joana tentava defender-se contrapondo os cavalos, as torres, os peões, que iam caindo uns atrás dos outros. Move os cavaleiros, os bispos, frecheiros, archeiros, besteiros o que quiseres, eu ganharei. olha! Aí está: o rei morreu..., e deslocaste o trebelho fatal.

 Oh! Pensam alguns que da amargura de lhe aparecer em insónias o corpo do irmão a apodrecer de maus tratos nas masmorras de Fez. Corriam boatos de que se lhe havia empeçonhentado uma ferida de um ombro ou havia aspirado veneno ao abrir de uma carta... Falas de outra luta? Tu, minha irmã, é que referiste esse rei de marfim como sendo o bom rei Duarte nosso avô. À roda dele giravam nobres senhores e esboçavam-se as lutas que ao depois se seguiram. Marfim, ébano..., eu sei. Encetaremos outra jogada, outras jogadas. Reveremos tudo, com a morte recente da nossa avó Isabel de Urgel fecha-se um círculo de tamanho ódio! Psiu! Falasse baixo! Tia Filipa podia ouvir pobre senhora de luto pela mãe... Tudo aí começou » voltou-se Filipa em lágrimas. “ não chores, minha tia! então? Levantava-se Joana a abraçá-la, a sentá-la ao pé de si, trinta e um anos secos e martirizados. Tudo aí começou... Abriu-se em soluços, e agora, de uma casa tão grande e tão feliz, só eu e a triste da minha irmã Catarina encerrada na clausura de Santa Clara...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos, 

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «E ele?..., afirma e confirma o que vós bem sabeis. Não me conformo, disse frei Estêvão. Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?»

 

jdact

O Sósia

«(…) Parece que a Senhoria procedeu assim a instigação do embaixador de Espanha. E como poderia o embaixador de Espanha saber?, perguntou frei Estêvão. Nem quero pensar, disse frei Crisóstomo com ar grave, que entre nós haja um traidor. Pode lá ser!, exclamou Pimentel levando a mão ao punhal. Teria de se haver comigo. E comigo, disse Pessoa. Tens razão, Pimentel, secundou Nuno Costa. Não pode ser. Talvez, antes, tenha havido inconfidência saída de casa do arcebispo... E lançava aos companheiros um olhar sagaz. Vou à Senhoria, disse Frei Estêvão. Hei-de falar com alguém do Conselho. Quero saber o que se passa. No palácio o juiz Marco Quirini recebeu-o com solicitude, disse que o processo estava confiado a mais três juízes, além dele, e que seguia com todas as cautelas dada a gravidade e o melindre da situação. Queremos honestamente esclarecer a identidade do preso e apurar a verdade. Temos-lhe feito constantes interrogatórios... E ele?..., afirma e confirma o que vós bem sabeis. Não me conformo, disse frei Estêvão. Há aqui qualquer coisa que me não parece curial. Quê? Afinal, porque o prendestes? De que o acusais? Ele é réu de que crime?

Visivelmente embaraçado, Marco Quirini respondeu: Ele foi intimado pela Senhoria a, no prazo de oito dias, sair dos territórios da República. Não obedeceu. E que crime cometeu ele para ser expulso da República?... Não respondeis. Respondo eu: o crime de afrontar a Espanha. Examinamos o caso com isenção... Sob a pressão do embaixador castelhano. Não nos deixamos conduzir por qualquer influência. Se chegardes à conclusão de que ele é um embusteiro..., será condenado. Se finalmente acreditardes que ele é o rei de Portugal... Teremos de enfrentar a inimizade da Espanha. Da Espanha?, exclamou frei Estêvão levantando-se. E a França? E a Flandres? E a Inglaterra?... Marco Quirini acompanhou-o à porta: Poderei dar-vos um conselho? Agradeço-vo-lo. Ide a Portugal. Procurai obter dados, sinais, indícios, traços concretos da identidade de el-rei Sebastião... Estai certo de que assim farei. Não desistirei enquanto não libertardes o meu rei.

A Ponte dos Suspiros

Gaivotas e pombas são as minhas visitas, às vezes um ou outro pardal pousa a medo no beiral do meu janelo de grades. Dou-lhes migalhas do meu pão. Habituam-se ao ritual e acabam por também eles serem o meu relógio dos dias intermináveis. A única vantagem deste meu cárcere é não se situar nos caboucos do palácio, mas alcandorar-se cá em cima no balouçar dos nevoeiros, sobre a ponte dos Suspiros. Sinto a maresia subir até mim, mas não vejo o canal nem a laguna. Esta experiência me faltava, ser encarcerado e ter a fragilidade ameaçada com a prepotência de interrogatórios, a iminência de torturas e talvez até de morte ignominiosa. Que fazer? Luto por que tempo e lugar se não alonguem de mim e me não deixem abandonado à impotência da angústia, suspenso sem amarras que me amparem a queda no aniquilamento. Acuda-me este pombo que agora aí pousou e se está meneando em vénias e arrulhos. Parece saudar-me. Estendo-lhe a palma da mão cheia de migalhas, como costumava em San Beneto, em casa de Jerónimo Migliori, com os pombos a esvoaçarem-me em redor, a pousarem-me nos ombros, nas mãos. Este não me estranhou. Será um deles e conhecer-me-á?» In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,

domingo, 17 de julho de 2022

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «Dona Filipa de Lencastre estendeu ao filho do marido uma mão quase hirta e o enteado depositou um beijo frio na peie de leite»

jdact

Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405

«(…) A infanta nascera dos amores ilícitos de dom João na mocidade, incapaz de segurar a carne e honrar os votos como mestre da ordem de Avis, perdido o tino por conta da paixão pela plebeia Inês Pires. Mas não renegara os filhos, Afonso e Beatriz, nem quando subiu ao trono. Assumiu-os honradamente, obteve a legitimação do papa, fazendo-se acompanhar por eles, mesmo após o matrimónio com dona Filipa de Lencastre. Fizera Afonso conde de Barcelos, um dos fidalgos mais poderosos do reino, e casara-o com a filha única e muito amada de Nuno Álvares Pereira, Beatriz Pereira de Alvim, já nascida na grandeza. Mas não houvera honrarias que extinguissem na alma de Afonso o estigma da origem ilegítima no ventre de uma mulher do povo, nem o ressentimento de se ver preterido desde que os meios-irmãos, infantes de Avis, haviam começado a vir ao mundo, nascidos do ilustre sangue de dona Filipa de Lencastre. O despeito e o ciúme cravaram-se-lhe no coração como uma adaga. Os modos refinados, mas sempre altivos, tapavam essa verdade aos olhos dos infantes, e o rei fazia-se cego às máculas daquele que fora o seu primeiro varão.

Mas dona Filipa crescera habituada à traição que grassava na sua família e reconhecia aquela peçonha em qualquer lugar. Desconfiava de Afonso e dos seus intentos, o que ditara um desafecto mútuo para a vida. Impunha alguma distância e diferenças no tratamento entre o conde de Barcelos e os legítimos, e o rei cedia, como lhe cedia em quase tudo, grato pelo prestígio e dignidade que rrouxera para a nova dinastia, com o mais elevado sangue da Casa real de Inglaterra. Ao contrário de Afonso, a infanta Beatriz ganhara a afeição da rainha e fora elevada ao Olimpo da melhor fidalguia inglesa com aquele casamento que a unia a sir Thomas FitzAlan, conde de Arundel, arranjado pela madrasta, ciosa das purezas de casta.

Já engalanado para o cortejo real que iria atravessar Lisboa e levar Beatriz ao cais, Pedro observava a postura distante da mãe com Afonso de Barcelos antes de montarem os faustosos corcéis. Dona Filipa de Lencastre estendeu ao filho do marido uma mão quase hirta e o enteado depositou um beijo frio na peie de leite. Os gestos, quase imperceptíveis, contrariavam as mesuras; o sorriso discreto e um aceno de cabeça da rainha, a vénia cortesã de Afonso. Mas, sobretudo, contrastavam com os modos que o infante vira no pai. Dpm João recebera o conde de Barcelos de rosto prazenteiro e um abraço mal ele se erguera do cumprimento ao monarca, de joelho em terra. A semanas de completar treze anos, Pedro ainda não desvendara todos os meandros subtis da mente dos homens, nem os muitos compartimentos que nela cabiam. Mas observava sinais que escapavam ao significado imediato das palavras e detinha-se neles, fosse um olhar mais fugidio ou, ao invés, um demasiado quieto e penetrante, para convencer e ocultar verdades, uma tremura das mãos, uma rigidez do corpo, os numerosos desenhos que podiam formar as linhas dos lábios. Escutava o tom, mais do que o som. Por isso, aquele gelo da mãe contava mais do que a perfeição dos modos que os olhos viam. Afonso de Barcelos vivia nos seus domínios do Norte e pouco vinha à corte, embora fosse conselheiro do rei. Era chamado para exprimir juízos ao soberano sobre assuntos de vulto e para celebrações. Talvez pelo trato pouco frequente e pela diferença de quinze anos, aquele meio-irmão não era alguém fácil de conhecer. Via-o polido, mas distante. Intrigou-se com aquele desacerto, como se tomasse consciência dele pela primeira vez.

Intrigou-se com aquele desacerto, como se tomasse consciência dele pela primeira vez. Existe alguma desavença entre a senhora nossa mãe e Afonso de Barcelos?, indagou ao irmão Duarte, a seu lado?» In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.

Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

 JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura, 

sábado, 16 de julho de 2022

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «A nobreza, há que precaver dela! Ao invés da lealdade ao rei de Portugal, prostravam-se aos pés dos de Castela quando vêem ganhos na traição»

jdact

Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405

«(…) Mas John of Gaunt não fora apenas um homem de desmedida ambição e vida devassa. Profundamente culto e patrono das artes, promovera nos filhos o amor ao estudo e ao conhecimento. Ao contrário do pai, Filipa fizera-se severa nos costumes morais. Fervorosamente devota e de vasta, lisura, dominava o inglês, o francês e o latim e trouxera para a corte portuguesa hábitos de erudição. Sonhara com o marido dar a Portugal uma geração de infantes ilustres e, do seu ventre fértil, nasceram oito filhos, que haviam sobrevividos seis. Consolidar a dinastia que iniciara de forma tumultuosa e sem certezas de que se manteria no trono, confirmado em Cortes pela mestria da oratória de João das Regras, era o propósito da vida do rei português. Dignificar o nome de Avis impunha um esforço permanente. Perspicaz, dom João cedo intuíra que era preciso reinar pelo exemplo para manter os seus descendentes no trono de Portugal.

A autoridade moral e o conhecimento, tanto como a força das armas, garantiriam essa determinação, acredita o rei. Na inexperiência da mocidade, os filhos não haviam sentido como lhe fora difícil chegar ali, nascidos já em berço mais do que dourado. Dom João moldara-se como monarca, bem ciente da traição de parte da fidalguia do reino, uma cisma que nunca o largava. Martirizava a mente verde dos infantes com essa verdade. A nobreza, há que precaver dela! Ao invés da lealdade ao rei de Portugal, prostravam-se aos pés dos de Castela quando vêem ganhos na traição. Julgais que a ameaça se esfumou? Está sempre aqui, sempre aqui! De indicador esticado, batia com ele na testa.

O rei tinha na soberba memória um dos seus atributos. Não esquecia e não permitia que esquecessem, sabedor de que o passado era teimoso e regressava sem pudor, sempre que a memória se esvaía de um povo. Mas havia genuíno amor ao pai, não apenas temor, em todos os infantes de Avis. Idealizavam o rei como um dos heróis dos romances de cavalaria que a mãe lhes lia desde que se lembravam de existir Faziam tudo para agradar ao monarca, homem de génio à flor da pele, cioso do seu mando e obstinado como poucos. De coração generoso quando a vida lhe corria de feição, o rei comprazia-se na companhia da família. Por todos os motivos do passado e sempre com a vista no futuro, dom João voltara agora a reforçar a aliança inglesa, casando a sua filha Beatriz com um nobre do reino da rainha dona Filipa». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.

Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura, 

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Infante dom Pedro. Isabel Machado. «… lançara o reino num período de rivalidades fratricidas entre a nobreza, miséria e revolta popular. O reinado do irmão era uma fonte de ralações para a rainha de Portugal»

jdact

Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405

«(…) Pela força das armas e do génio militar de Nuno Álvares Pereira, os portugueses haviam esmagado os invasores de Castela, apoiados por muita fidalguia portuguesa, que preferia ver no trono um castelhano pelos ganhos que a união das coroas traria às suas linhagens. A vitória na mais épica das baralhas, em Aljubarrota, marcara a viragem do destino a favor de dom João. O exército português contara com a ajuda preciosa das hostes inglesas, comandadas por John of Gaunt, duque de Lencastre, o terceiro filho do rei Edward III. Uma coincidência do destino unira portugueses e ingleses contra os castelhanos.

O turbulento e ambicioso duque nunca se resignara com o papel secundário que a sua ordem de nascimento impunha, julgando-se merecedor de uma coroa. Por morte da primeira mulher, Blanche, mãe da rainha portuguesa, que lhe dera título, fortuna, terras, castelos e três filhos, casara em segundas núpcias com a infanta castelhana, Constança, filha do rei Pedro de Castela, assassinado pelo meio-irmão Henrique, que iniciara a nova dinastia dos Trastâmaras. Constança vivia exilada em Inglaterra, mas, por morte do pai, intitulara-se a legítima rainha castelhana. Sempre disposto a um novo golpe que expandisse o seu poder, John of Gaunt concebeu um estratagema audaz. Proclamou-se rei consorte de Castela e entregou-se apaixonadamente à nova ambição: invadir o reino de sua mulher, depor Henrique de Trastâmara, sentar Constança no trono e designar herdeira a filha de ambos, Catarina de Lencastre.

A conjugação de interesses contra os castelhanos unira, assim, John of Gaunt e dom João de Avis. Corria o ano de 1386 quando se forjou a aliança que trouxe o duque de Lencastre à Ibéria, para se juntar aos exércitos Portugueses. Se dom João garantira plena vitória sobre os castelhanos. o duque regressara a Inglaterra sem conseguir todos os seus intentos. Não ganhara o trono castelhano para a mulher, mas firmou a promessa de matrimónio da filha Catarina com o pequeno príncipe herdeiro de Castela, futuro Henrique III, unindo as duas dinastias desavindas.

Contudo, o maior trunfo conseguira-o John of Gaunt pelo casamento da filha mais velha, Filipa, com o rei de Portugal, um enlace de conveniência, que se transformaria numa união exemplar de afecto e respeito. O duque de Lencastre nunca conquistou o sonho de se ver coroado rei, mas conseguira que três filhos se sentassem em tronos. O irmão de Filipa, Henry, herdara a ambição sanguinária do pai e havia usurpado a coroa ao primo direito, Richard IL Proclamou-se rei de Inglaterra, como Henry, IV, e fundou a nova dinastia de Lencastre.

Envolvera-se numa guerra com França, onde Inglaterra detinha possessões desde o tempo de seu avô, e lançara o reino num período de rivalidades fratricidas entre a nobreza, miséria e revolta popular. O reinado do irmão era uma fonte de ralações para a rainha de Portugal». In Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar, 2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.

Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT

JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura, 

segunda-feira, 11 de julho de 2022

O Fogo e a Rosa, António Vieira. Seomara Veiga Ferreira, «Era cedo. No Terreiro do Trigo as tendas, abertas desde as oito horas, só fechavam tarde e à noite, lá para as quatro horas depois do meio-dia algumas, ou às sete, quando a difusa luz do Poente…»

jdact

A Viagem Imóvel

«(…) Baruch, embora bastante velho e um tanto gasto, a idade não perdoa nem a um físico!, vinha a Lisboa com uma missão difícil, espinhosa, que duvidava ser capaz de cumprir, apesar da amizade que o ligava ao padre Vieira e de todo o seu sábio poder de persuasão. Tivera notícias do padre António Vieira havia pouco tempo, através de uma carta do filho do falecido Manuel Pádua, que fora um influente homem de Roma, e um dos amigos do velho jesuíta. E por ele soubera que o grande orador se desculpara de qualquer regresso à corte da Rainha, uns dias antes, numa carta dirigida ao Geral Oliva, exprimindo o desejo de regressar ao Brasil, depois de já ter refutado o convite da Rainha em 1679, invocando a sua falta de saúde, a velhice, a desilusão, e o conselho dos médicos a respeito dessas maleitas e dos rigores dos Invernos europeus. António Vieira arrastara-se por Xabregas, em Julho de 1679, nas Caldas e, depois no ano anterior, pelo menos desde o Verão, lá ficara na Quinta de Carcavelos que a Sociedade aí possuía, e onde já não se viam naus da Índia mas barcos de pescadores, como o bom padre frequentemente referia, traduzindo um desalento que entristecia a sua alma, essa alma enorme de velho português traído pelo destino e pelos homens. Como todos nós, como todos nós, murmurava o velho médico da filha do Rei Gustavo Adolfo da Suécia. Ela convencera-o a embarcar para Lisboa e entregar pessoalmente uma carta sua ao homem que ela escutara deslumbrada em Roma, esse velho padre português que aprendera a falar correctamente o italiano em poucos meses e, do púlpito, arrastava as multidões e a alma dos crentes presos ao seu verbo hipnotizador. Ele fizera parte da sua academia de génios onde ela presidia como Basilissa, como a Minerva dos tempos modernos, liderando essa Arcádia como Rainha, mentora, carismática mentora dos espíritos e deusa da cultura.

Bento sentia-se fatigado, embora sempre servido por uma força do espírito que lhe robustecia o corpo enxuto de carnes e que já fora atlético e firme. E a verdade é que tivera sempre uma saúde de ferro. Parou numa esquina quase atropelado por uma magnífica liteira carregada por dois moços muito sujos e um estribeiro de cara magra e olhar evasivo, todos envergando librés castanhas em mau estado, e de tecido fraco, apesar do frio. Lá dentro vislumbrava-se o vulto de uma dama jovem, bem vestida, por entre as cortinas entreabertas de carmesim. Já eram poucas as liteiras, sem dúvida. Os coches ultrapassavam, só ali, naquela rua, a meia centena. Rebentavam, aqui e ali, entre a criadagem, disputas, ameaças e impropérios. Como em todo o lado. Em Roma, a bela Roma dos antigos deuses, na pagã Roma dos Césares, não era melhor. Uma das coisas que espantava Bento Castro, que conhecia várias cidades europeias, era a reduzida existência de vidraças nas janelas. Em Londres, por exemplo, a indústria das vidraças transformara-se num êxito e os Ingleses exportavam-nas para todo o lado. Em Lisboa é evidente que algumas casas as apresentavam mas outras não, até na maior parte delas não se vislumbrava o vidro.

Bento passara a noite numa estalagem na Rua dos Cavaleiros e não dormira bem por causa do barulho, das arruaças, da gritaria das mulheres de má vida e seus clientes que - os estalajadeiros lhe explicaram, se distribuíam por aí, por trás dos Estaus, na Mancebia, no beco dos Açúcares, dos Fiéis de Deus... O sagrado e o profano misturam-se na vida das gentes como se o destino se divertisse a tentar emporcalhar o que é santo. Pela manhã descera ao Rossio, depois visitara as ruas adjacentes, caminhara até ao Terreiro, enorme, arejado, onde, à direita, o Paço Real ostentava a sua grandiosidade, após as obras de ampliação feitas por ordem de El Rei dom João, pai de dom Pedro, que habitou, após a destituição do irmão dom Afonso, que ainda vivia em Sintra, no palácio dos Cortes-Reais, próximo da Ribeira, aquele belo edifício com as suas torres nos ângulos, de altos pináculos como telhados, que pareciam setas a apontar ao céu, repleto de belas peças de mobiliário como em todas as grandes casas, importadas da Itália, do Brasil, da França, da Flandres, da Índia, da Ásia... A Rainha Cristina mandara vir, através de um mercador judeu de Florença, uma bela peça de pau-preto de Moçambique, um grande armário onde guardava a sua correspondência, e que fora transportado de Lisboa para Roma. Realmente como são estranhos os rebuscados caminhos da nossa memória! Recordo perfeitamente o dia da chegada do móvel ao palácio da Rainha! Foi no ano de 1675, no dia em que o músico Corelli foi recebido por ela e passou a estar ao seu serviço. Nesse dia ficou instalado nos aposentos do cardeal Ottoboni, o sobrinho do Papa.

Era cedo. No Terreiro do Trigo as tendas, abertas desde as oito horas, só fechavam tarde e à noite, lá para as quatro horas depois do meio-dia algumas, ou às sete, quando a difusa luz do Poente já não vestia o rio da púrpura do seu sangue. Era aí que se cantava, comia, se adquiriam as vitualhas que vinham de todo o mundo, a manteiga da Flandres, os queijos de França, os frutos doces do Brasil, as conservas das Canárias e da Madeira, o bom vinho das adegas da França, como se em Portugal não houvesse em fartura e qualidade esse néctar que Romanos e Gregos diziam ser dom dos deuses... A Ribeira e o Terreiro do Trigo que vende tudo, lá dizia o frei Nicolau, tudo quanto o mundo encerra. Bento, recém-chegado da nobre Roma, adorava ver todo aquele movimento, as cabanas e os alpendres dos vendilhões e regateiras cobertos com telhados de telha verde, e os dois depósitos de sal sem cobertura construídos em madeira. E a caça, os animais de pena para criação e para o tacho, os cabritos inteiros e esquartejados, os vitelos, os grandes cestos de vime repletos de ovos, e o peixe, cujos postos de venda eram cobertos por grandes chapéu-de-sol quadrangulares». In Seomara Veiga Ferreira, O Fogo e a Rosa, António Vieira, 2002, Grandes Narrativas, Editorial Presença, ISBN 978-972-232-873-9.

Cortesia de EPresença/JDACT

JDACT, Seomara Ferreira, Literatura, Cultura, História, 

domingo, 10 de julho de 2022

O Fogo e a Rosa, António Vieira. Seomara Veiga Ferreira, «Podia aplicar-se o preceito de Plínio a essa trabalhadora incansável, Nulla dies sine linea que, apesar de se dirigir ao trabalho de um pintor…»

jdact

A Viagem Imóvel

«A cidade acordou fria, coroada por um sol pálido, e o rio tacteava as suas praias como um longo e agitado cordão de estanho onde ondas minúsculas, debruadas a branco, estremeciam o seu corpo, afagadas pela brisa da manhã. Bento Castro, que nunca estivera em Lisboa, achou-a bela, colorida, ruidosa e feliz. Apesar do Inverno, do Janeiro que chegava quase ao fim, a multidão era imensa e variada, tal como os veículos e animais de carga que sulcavam as ruas. Coches, liteiras, seges, cavalgaduras juntavam-se nas esquinas e grupos de gente gritavam, gesticulavam e percorriam a Rua dos Ourives da Prata, que, dizia-se, sofrera, como outras artérias da urbe, obras de melhoramento havia pouco tempo. O visitante experimentava uma comoção sincera, quase sufocante. Se não fossem os azares do destino, teria visto pela primeira vez a luz em Portugal, que conhecia apenas das entusiásticas descrições dos viajantes rendidos à beleza da sua capital bem como das cartas geográficas que os geógrafos publicavam e que percorriam o mundo. Talvez nas livrarias estivessem à venda os seus livros, como as obras do seu pai, o insigne médico Rodrigo Castro, mas que tinham sido impressas em Hamburgo, onde Bento nascera, e em Amsterdão, onde em breve sairia da impressora a sua Apologia dos Médicos Portugueses.

Visualizou o rosto severo do pai, morto meio século antes, o pai que nascera em Lisboa, aí exercera o seu mester e até 1588 fora médico da armada espanhola, e enterrado na Alemanha. Enquanto recordava o Mercúrio Português, que lera em Roma, havia uns bons quinze anos, com a descrição dos grandes trabalhos de alargamento e restauro das ruas de Lisboa, tacteou os largos bolsos pregados de botões dourados da casaca e, depois, a bolsa de couro forrada a veludo, que trazia junto à pele, e onde se achava a carta da Rainha, de Sua Majestade a incomparável, inteligente e voluntariosa Rainha Cristina Alexandra por quem nutria uma afeição tão profunda que poderia sugerir nos incautos o fulgor ígneo de uma avassaladora labareda de amor. Conhecia-a melhor que ninguém porque era o seu físico havia muitos anos. Como qualquer Hipócrates talentoso e afeiçoado, conhecia-lhe o vigoroso corpo de mulher habituada aos exercícios físicos - andava a pé milhas e chegava a cavalgar horas seguidas por brenhas ou pelas vastas florestas da sua terra, da Alemanha e da França, e auscultava-lhe, melhor que qualquer outro dos seus colegas anteriores, a alma, aquela alma que continha um universo de sabedoria, emoções e filosofia da ciência política. Admirava-a, adorava-a. Teria, se lho pedissem, morrido por ela.

Já a Rainha habitava Roma havia precisamente dez anos quando o jornal português lá chegara. Aí arribavam muitos livros também provenientes de Portugal e Espanha, levados na bagagem dos mercadores, refugiados, emigrantes fugitivos dos rigores da justiça, da fé ou da intolerância. A Rainha possuía uma vasta e rica biblioteca com mais de sete mil obras e dois mil manuscritos. Tudo guardava, mandava catalogar e arrumar e passava horas a ler ou a escrever, desde dissertações filosóficas, às memórias, cartas, textos sobre alquimia e até óperas. Era uma grande e talentosa mulher, imensamente culta, arrojada, que não escondia a sua paixão por Maquiavel, cujo Príncipe anotara, estudava a Antiguidade, escrevia sobre Alexandre Magno, Ciro e César, enchia os seus trabalhos com frequentes alusões aos clássicos gregos e latinos, que conhecia de cor. Bento sorriu-se. Revia o rosto divertido de Cristina, agora com cinquenta e cinco anos, a referir-se ao grande escritor latino Cícero: Cícero foi o único cobarde capaz de criar grandes coisas. O que era uma profunda verdade. Mas ela também dizia os imbecis são mais perigosos que os maus. Também essa máxima constituía outra grande verdade já que a estupidez gera a ignorância e esta é a mãe de todos os vícios.

Podia aplicar-se o preceito de Plínio a essa trabalhadora incansável, Nulla dies sine linea que, apesar de se dirigir ao trabalho de um pintor, poderá ser a divisa de todos os escritores e pensadores que fazem da sua vida também uma obra de arte. Bento Castro. Bento. Era o seu nome português. Castro como o pai fugido à Inquisição (maldita) em 1594. Instalou-se em Hamburgo, mudara de nome, reconvertera-se ao judaísmo com o auxílio de outro grande físico marrano, também português, que lhe dera alojamento, dinheiro e amizade: Samuel Coen, conhecido nos ficheiros do Santo Ofício (maldito) como Henrique Rodrigues. Bento e o irmão André tinham seguido a carreira do pai. Baruch Nehemiah, como agora era conhecido, estava em Roma na corte de Cristina. Às vezes usara um pseudónimo para publicar as suas obras, Philoteus Castellus. O irmão era então médico do Rei da Dinamarca e passara a chamar-se Daniel. Não o via havia muitos anos. Talvez até já tivesse morrido. Portanto, tal como o pai o fora do Conde de Hesse e do Bispo de Bremen, eles também, após os estudos em Pádua, tinham ascendido a físicos-mores, mas da realeza». In Seomara Veiga Ferreira, O Fogo e a Rosa, António Vieira, 2002, Grandes Narrativas, Editorial Presença, ISBN 978-972-232-873-9.

Cortesia de EPresença/JDACT

JDACT, Seomara Ferreira, Literatura, Cultura, História,

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Fui eu que cremei o vosso pai. Mem recordou-se: o pai a ser degolado pelo demónio de branco, o céu a ficar escuro e cheio de estrelas, uma mulher de negro colocando a cabeça junto do corpo do pai…»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Soure, Sábado de Aleluia, Abril de 1126

«(… ) Mem concluiu que um dos jumentos teria de descansar, pois estava magoado numa perna desde meio da tarde, e por mais que quisesse chegar aos arrabaldes de Coimbra nessa noite tal não seria possível. Ia pela antiga estrada, do tempo dos romanos, que ligava Santarém à cidade do Mondego, onde seu pai morrera, mas teria de parar a carroça um pouco afastada do caminho, pois nunca se sabia quem passava por ali durante a noite. Para o Domingo de Páscoa, um nobre coimbrão tinha-lhe encomendado lebres, gansos e perdizes, e Mem não estava habituado a falhar os seus compromissos. Fora assim que se tornara um almocreve tão fiável quanto o seu pai, por isso incomodava-o ter de parar, mas a perna do jumento necessitava de umas horas de descanso. Partiria de madrugada, estava a pouco mais de uma hora de Coimbra, e chegaria a tempo de entregar as carnes para o jantar, bem como uns salmonetes com que queria surpreender a esposa do cavaleiro, amante de peixes bem cozinhados e não só... Ao fundo, na penumbra da noite, descortinou os destroços da velha vila de Soure, que tinha sido arrasada aquando da primeira invasão do califa Ali Yusuf. Uma década depois, a destruição ainda se mantinha, agora debaixo de um manto de terra e de milhares de raízes de árvores, como sempre acontece aos locais de abandono.

Mem desatrelou os dois jumentos, amarrando-os a um carvalho. Examinou a perna do que coxeava: tinha um inchaço um pouco abaixo do joelho, provavelmente de uma pancada numa pedra. A estrada estava cheias delas, a carroça andava aos solavancos e os jumentos nem sempre as conseguiam evitar. Foi buscar um pó que lhe tinham vendido em Santarém e massajou o bicho no local da dor. Depois, procurou uma zona onde a erva estivesse baixa, para se deitar. Estava a estender uma manta no chão quando viu uma luz ténue, vinda das ruínas de Soure. Pensara em acender uma fogueira, para afastar os animais selvagens do carregamento e dos cansados jumentos, mas decidira não o fazer, pois tinha consigo um arco e umas flechas, e preferia atirar sobre um lobo ou um urso do que atrair a atenção dos salteadores. Agora, estava contente pela decisão que tomara. Aprendera a usar o arco em Coimbra, durante os anos que lá vivera depois da morte do pai, e tinha consigo flechas suficientes para derrubar quatro ou cinco homens.

Aproximou-se das ruínas, mas mesmo andando lentamente não conseguiu evitar pisar bosta de animal. Talvez andassem por ali ursos ou lobos, e aguçou os ouvidos. Como estava muito escuro, teve dificuldade em subir pelos destroços da muralha até encontrar um local para se agachar. A vinte metros dele, uma pequena fogueira ardia, iluminando o interior daquela desastrada alcáçova. Porém, não viu ninguém junto ao fogo, nem qualquer sinal de gente. De súbito, sentiu uma rabanada de vento sobrevoá-lo e estranhou. No céu, as nuvens que escondiam a Lua moviam-se lentamente. Notou um ligeiro cheiro a âmbar, mas não existia movimento de seres, humanos ou animais, atrás de si ou à sua frente, dentro ou fora do castelo. Começou a sentir-se ensonado e decidiu que era melhor regressar para junto dos jumentos, mas o seu corpo parecia estranhamente pesado e sem energia, e apoderou-se de Mem um receio agudo. Todavia, era tarde de mais, um paralisante cansaço venceu-o e tombou em cima das pedras. A meio da noite, acordou em frente à fogueira e não se lembrava de como ali viera parar. Fixou as labaredas, tentando recordar-se. Vira as nuvens, deitado em cima das pedras, e depois sentira o vento e o cheiro... Uma vaga de terror assaltou-o, talvez alguém tivesse roubado o seu ganha-pão. Libertou um palavrão e, para seu grande susto, ouviu nas suas costas uma voz: Descansai, os jumentos estão bem e a carroça também. Em esforço, rodou sobre si próprio no chão, tentando perceber quem lhe falava. A cerca de cinco metros, sentada num penedo, estava uma mulher totalmente vestida de negro, com um capuz sobre a cabeça, escondendo a cara.

Ela apontou para um local à sua esquerda e Mem viu os dois jumentos e a carroça, e ouviu outra vez a voz: Tive de vos adormecer, não gosto de surpresas. Mas depois reconheci-vos. O almocreve sentiu de novo um receio agudo a percorrer-lhe o corpo. Quem sois vós?, perguntou. De onde me conheceis? Então, a mulher falou pausadamente: Fui eu que cremei o vosso pai. Mem recordou-se: o pai a ser degolado pelo demónio de branco, o céu a ficar escuro e cheio de estrelas, uma mulher de negro colocando a cabeça junto do corpo do pai, e depois dizendo-lhe que se dirigisse a Coimbra, onde poderia recomeçar a sua vida, o que Mem fizera, com o coração rasgado de dor. Sentiu uma comoção interior». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «… quando se levantou, estava a chorar, com os violentos sentimentos feridos pela primeira rejeição que sofrera. Jumenta galega, pensou ela. O meu amado já não me quer. Sofro tanto. Vou dar cabo de vós»

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

«(… ) Afonso Henriques semicerrou os olhos, irritado: os bobos espalhavam os planos do Trava, que queria oferecer Chamoa a Paio Soares, para comprar a sua submissão definitiva, e atacavam de caminho a honra da rapariga. Fruela lançou nova interrogação, como se ainda fosse Paio Soares quem falava: Será ela da minha confiança, roçará as tetas só nesta pança? Ordonho caiu de joelhos em frente ao irmão, colocando um ar inocente e bramindo em voz feminina: Marido Paio, parai de duvidar, à frente doutros não voltarei a ajoelhar! Afonso Henriques suspirou, desiludido. Um a um, os portucalenses eram apoucados pela insídia galega, que humilhava os ricos-homens de Entre Douro e Minho. Ao antigo alferes, seguiu-se meu pai, Egas Moniz, que Fruela ridicularizou, imitando um corcunda. Antes de conhecer a Celanova, estava com os pés para a cova! Ordonho encheu o peito de ar, rejuvenescendo. Mas agora, que ressuscitei, com a minha piça dura lhe darei! A multidão rejubilou, o que levou os bobos a insistirem no alvo. E se o rei Afonso de Castela volta a saltar para cima dela? Ordonho, para esclarecer o irmão, encurvou-se, imitando a posição anterior de Fruela, de velho corcunda. Regresso à minha Lamego, cornudo mas em sossego!

Vendo meu pai ser fustigado pelo impiedoso vernáculo dos bobos galegos, eu e meus irmãos perdemos a disposição para permanecer naquela festarola. Despedimo-nos de Gonçalo, que foi procurar soldadeiras, e acompanhados de Afonso Henriques regressámos a casa. No caminho, em silêncio ressentido, cruzámo-nos com Elvira, que voltava ao ofício. O meu amigo príncipe disse-lhe: Há pouco não queria ofender-vos. A rapariga normanda continuou a andar, mas uns metros à frente virou-se e olhou para Afonso Henriques: Não o haveis feito, belo príncipe. Continuámos a caminhar, e Soeiro, o mais novo dos meus irmãos, perguntou ao príncipe porque não ia ter com Elvira, mas ele não respondeu. Quando chegámos a casa, meu pai e meu tio conversavam à porta, e pediram a Afonso Henriques que ficasse ali, admitindo também a minha presença a seu lado.

Depois de meus irmãos Afonso e Soeiro se terem ido deitar, meu pai confessou a preocupação que sentia com a traição de Paio Soares, e meu tio adiantou a suspeita de que o Trava queria casar o novo mordomo com a sobrinha Chamoa. O meu amigo Afonso Henriques encolheu os ombros. Não vos preocupeis, isso não vai acontecer. A sua segurança residia numa curta e discreta conversa que tivera com a mãe ao final da tarde, mas que nós ainda desconhecíamos. Meu pai contou então que dona Teresa e Fernão Peres tentavam procriar um filho varão, mas Afonso Henriques também não viu risco algum nessa possibilidade. Um filho bastardo não herdará o Condado, Roma nunca o permitirá. Lembro-me de que meu pai e meu tio se espantaram com a forma serena e confiante como ele falava, pois não estavam tão seguros. Sancho, vosso tio, morreu em Uclés, com apenas treze anos, lembrou meu pai. Nem sempre os primeiros filhos sobrevivem. Convicto da sua boa estrela, Afonso Henriques afirmou: Não sou o meu pobre tio Sancho, não vou morrer tão cedo.

Depois, sorrindo pela primeira vez aos seus perceptores, acrescentou: Mas, se tendes receios, caso-me depressa e faço um filho! Meu pai e meu tio não esperavam aquela simplicidade tranquila com que o príncipe reagia, e mais tarde disseram-me que só ali se deram conta do quanto ele tinha amadurecido. Agora, era um homem sólido e forte, inteligente e atento, capaz de controlar o seu próprio destino e o do Condado. Orgulhosos e descansados, sorriram-lhe e deixaram-no ir deitar-se. Quando chegou à cama, Afonso Henriques sentia-se cansado mas também satisfeito, pelo que vivera à tarde com Chamoa. Pensou nela e adormeceu enamorado, e por isso não reparou quando Raimunda, já nua, veio deitar-se ao seu lado. Numa das nossas últimas conversas, ela contou-me que só uma hora depois, enervada, o acordou. Contudo, ele disse-lhe que tinha sono, que não queria nada naquela noite, e voltou a adormecer. E nem reparou que minha prima, quando se levantou, estava a chorar, com os violentos sentimentos feridos pela primeira rejeição que sofrera. Jumenta galega, pensou ela. O meu amado já não me quer. Sofro tanto. Vou dar cabo de vós». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Inês de Castro. Isabel Stilwell. «Para orgulho da minha mãe que deixaria de olhar para mim com aflição, desejando-me outro. Como gostava do Pedro que via refletido nos olhos verdes da minha Inês»

jdact

Até ao Fim do Mundo…

«(…) Volto ao papel. Tenho de ser rápido, não posso perder tempo, já perdi tempo demais. Conto a história do meu santo protector?, mas quando retrato cada momento da vida de São Bartolomeu é de mim que falo. Com dois traços desenho o berço junto da cama da minha mãe, a cama de madeira rendilhada onde sempre dormiu, e lá está o diabo à espreita, pronto a raptar o recém-nascido, um príncipe perfeito, deixando em seu lugar o filho do diabo, uma criança raquítica e maldosa, que atormentará a infeliz que não deu pela troca. A mãe que o amará apesar das suas imperfeições, sem desistir de procurar nele o verdadeiro filho, o filho que vislumbrou quando lho puseram ao colo ainda o cordão que os unia palpitava.

Levanto o bico da pena, e inspiro fundo, procurando sossegar a respiração, e lanço-me para o segundo momento desta história que a minha avó, a Rainha Santa, tantas vezes me contou, procurando acalmar o meu desespero com esta maldita gaguez que ainda hoje me tolhe. Prometia-me que, por divina intercessão do discípulo de Jesus, seria um dia salvo destas obras que satanás faz em mim e que me tornam motivo de gozo e escárnio. Fraquezas que não são de rei. Não se enganava. Com Inês, as palavras saíam-me da boca sem entraves e, quando estava ao seu lado, evaporava-se a agitação e a impaciência, diluía-se a raiva e o impulso de me vingar de tudo e de todos, por ser uma criatura indigna da mãe e da avó que Deus me dera, frágil demais para enfrentar o meu pai, um rei todo-poderoso, que não vergava a nada nem a ninguém. Até que... assassinou aquela que me fazia viver, matando-me com ela. Esfolando-me vivo, como a São Bartolomeu, de quem conto a história.

Nos braços de Inês, ao som da sua voz, sentia-me o menino deixado num ninho de uma águia, protegido pela mais real de todas as aves, que um dia voltara por fim a casa dos pais, reconhecido como o filho perdido, já homem inteiro e corajoso. Para orgulho da minha mãe que deixaria de olhar para mim com aflição, desejando-me outro. Como gostava do Pedro que via refletido nos olhos verdes da minha Inês» In Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia, Amante, Rainha de Portugal, 2021, Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN 978-989-777-509-3.

Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT

JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento, 

Inês de Castro. Isabel Stilwell. «… e o medo do meu pai me entorpeceu a língua, enrolando-a, prendendo-a, impedindo-me de falar mais alto, com mais força, de impor a minha vontade e o nosso amor. Por ter deixado que a matassem»

jdact

Até ao Fim do Mundo…

«Pego na pena e a minha mão voa sozinha, tão rápida que aqui e ali um borrão de tinta mancha o pergaminho. Pouco me importa, o que me interessa é fazer o esboço do meu túmulo, do túmulo de Inês, para que o mestre entenda exactamente o que desejo que as suas mãos arranquem do bloco de pedra branca, que escolhi para relicário dos nossos corpos. Passo a mão suavemente pelo esquiço do jacente de Inês, com uma saudade tão insuportável que me tira o ar. Perco-me nos detalhes da coroa, que quero magnífica, copiada da que herdaria da minha mãe, o rosto oval, perfeito, o pescoço longo, um colo de garça, causa de tantos ciúmes e intrigas. Desenhei-lhe as mãos longas finas, as mãos que me remexiam o cabelo e abraçavam os nossos filhos, subindo-os para o colo, beijando-lhes o arranhão no joelho ou as lágrimas de uma birra. As mãos que tantas vezes me empurraram, zangadas, quando fui menos do que esperava de mim. Os dedos que moviam agilmente as peças no tabuleiro, num xeque-mate que tanto me enfurecia e tanto prazer lhe dava a ela, naqueles fins de tarde ao som do alaúde. Numa mão calcei-lhe uma luva, não resisti, mas a outra deixei-a nua, segurando aquele colar de pedras preciosas que lhe ofereci, sobre o vestido de botões de pérola, o seu favorito. Era tão vaidosa, tão orgulhosa da sua figura elegante que nem quatro gravidezes alteraram. Retoco os anjos que lhe suportam a cabeça, ajudando-a a erguer-se para vir ao meu encontro, de novo. O mestre tem de entender que quero que rodos admirem a rainha, a rainha que reina hoje em Portugal, mesmo que a Fortuna só me tenha permitido coroá-la quando já não era deste mundo.

Não durmo há dias, não consigo dormir, tal a ânsia de ver gravada a nossa história em pedra, agora que finalmente fui capaz de revelar o segredo, que me pesou cinco longos anos. Quero expor o nosso caso perante Deus Nosso Senhor, como um advogado que defende o cliente perante o juiz supremo. Na esperança de obter clemência.

Mas verdadeiramente é o perdão de Inês que procuro. Pela minha cobardia, porque houve momentos em que não consegui dominar o diabo em mim, alturas em que os meus terrores me possuíram, e o medo do meu pai me entorpeceu a língua, enrolando-a, prendendo-a, impedindo-me de falar mais alto, com mais força, de impor a minha vontade e o nosso amor. Por ter deixado que a matassem». In Isabel Stilwell, Inês de Castro, Espia, Amante, Rainha de Portugal, 2021, Planeta de Livros Portugal, 2021, ISBN 978-989-777-509-3.

Cortesia de PlanetaLPortugal/JDACT

JDACT, Isabel Stilwell, Inês de Castro, Cultura e Conhecimento, 

segunda-feira, 4 de julho de 2022

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Homem que em toda a sua vida não tinha visto o mar, jazia como morto em cima do catre. Quando tomava seu ânimo algum alento, todo o seu negócio era a confissão como boamente podia»

 

jdact

A Tempestade

«(…) Ficaram para trás a saudosa Ítaca e as sombras de Ulisses e da doce Penélope. A estátua de Zeus olímpico, marfim e ouro sobre madeira preciosa, uma das sete maravilhas do mundo, ardera algures num incêndio, junto de Constantinopla, e já não tutela as vitórias dos atletas de músculos torneados e duros, brilhantes de suor. Nada resta já da formosura de Helena e da juventude de Paris, que provocaram a ira de heróis e de deuses. Não cai em transe, ao fundo da caverna, a enigmática pitonisa, a esfinge não importuna o viandante às portas de Tebas, na Beócia, nem por caminhos estranhos vagueia oscilante e trôpego o fantasma cego do rei Édipo. Não vogam lentos e brancos à sombra dos ciparissos, nas águas mansas do Eurotas, os cisnes de Artemisa junto aos degraus de mármore do seu templo, em Éfeso... Um dia os deuses eternos morreram e com eles morreu o mundo antigo. Passou por aqui depois um sopro novo e escutaram-se palavras nunca até aí proferidas. Por todos estes lugares deixa vestígios a sombra de Paulo de Tarso, as pedras abrem brechas em que nascem ervas, ruem paredes e colunas, e este anfiteatro alarga-se, com centro em Roma, a todo o Mediterrâneo. De novo caem impérios e reinos, e mais uma vez, neste mundo actual e moderno, que está nascendo e em grande convulsão, o palco, o teatro está a alargar-se a toda a Terra.

O mar Jónio reduziu há muito as suas dimensões e torna-se agora apenas um pequeno anfiteatro onde, além das ambições humanas de poder e riqueza dos imperadores e tiranos, dos mercadores de Levante e de Ocidente, Cristo e Maomé medem metro a metro o terreno que pisam. Terras frias, cruéis, de uma realidade que faz estremecer a evocação da poesia e o véu de doçura de que os antigos as nimbaram fazem compreender a comoção inspirada com que os artistas de agora, escultores, pintores, poetas, estão fazendo renascer esse amável espírito. Tínhamos nós diante dos olhos a ilha de Cândia, um dia ao cair da tarde o céu toldou-se de nuvens negras e pesadas. Um vento frio começou a encrespar a superfície das águas e a nossa pele, que logo arrepiados puxávamos a roupa contra o peito. Estrondeou em cima a trovoada, com relâmpagos súbitos e medonhos, em fragoroso cascalhar. Desabou dos céus a chuva em grossas varas, as ondas cavavam esverdinhadas, espumejando uma babugem branca, lívida. Os da tripulação mais experimentados no mar começaram a temer a tormenta. De um lado a outro corriam marinheiros açodados às ordens do piloto, rapidamente arriando, amainando as velas, atando as vergas e calabrês, concertando todas as enxárcias para que se não desfibrassem com a força da borrasca e lançando cordas da popa à proa, uma de um bordo e outra doutro, a fim de que se segurassem nelas para acudirem aonde urgisse. De outra maneira era impossível terem-se de pé. Davam de si os madeiros em estertor. Os passageiros tínhamos de ficar nos camarotes ou na coberta, muito quietos cada um em seu lugar, uns gemendo, outros gritando, outros rezando e não poucos transformando o terror numa agonia tão grande que as tripas lhes davam volta e vomitavam o que não tinham comido, pois em todo o tempo que a tempestade durou ninguém se lembrou de levar qualquer alimento à boca. A coisa chegou a tanto que o patrão e os principais que iam na nau..., julgando a morte chegada, pediam com muitas lágrimas a confissão. Os padres que íamos na viagem não tínhamos mãos a medir. Até o pobre do frei Zedilho. Homem que em toda a sua vida não tinha visto o mar, jazia como morto em cima do catre. Quando tomava seu ânimo algum alento, todo o seu negócio era a confissão como boamente podia». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita, 

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Na velha Corinto, no rico templo de Vénus, já não se ouvem os suspiros, a respiração ofegante, das mil jovens que saciam a luxúria dos ricos viajantes e mercadores»

 

jdact

A Tempestade

«(…) Há aqui também um castelo inexpugnável, com guarnição permanente, e um mosteiro de franciscanos que, embora gregos de nação, estão sujeitos à Igreja Romana. Sejais bem-vindos! Sede bem-vindos! Venhais em boa hora! Eram os frades a acolherem-nos com muito amor e caridade. Primeiro tratar da alma! E levavam-nos à capela a rezar. Depois cuidar do corpo, e seguia-se a visita sacramental à copa. Toda a gente nobre da ilha frequenta este mosteiro e aqui se enterra. As mais igrejas fazem ao modo grego e têm o seu bispo ortodoxo. Os Venezianos pagam cada ano de tributo aos Turcos por esta ilha e pela de Cefalónia certa quantidade de falcões, mas nem por isso deixam de ter guarda de gente de pé e de cavalo, por causa dos corsários turcos e mouros que infestam aqueles mares. Bons vinhos e azeites, muita passa, formosura de frutas, tal como por todas estas paragens mediterrânicas, mas com tanta abundância a terra quase toda é enfermiça de clima e de ares. Já quase noite nos tornámos à nau. Encontrei-me com Pérides, que regressava também, com ar radiante, vestindo uma camisola de lã que não lhe tinha visto de manhã quando saímos.

Então, amigo Pérides, lhe perguntei eu, a vossa namorada é daqui ou de Cefalónia? Esta é Crísida, respondeu ele com uma simplicidade e inocência estudada, a outra era Melânia. Ah! Compreendo! Coleccionais..., camisolas!... Prosseguindo nossa rota, no dia seguinte pela manhã costeamos a Moreia, de muitos chamada Negroponto e de outros Peloponeso, e passamos junto das duas pequenas ilhas Estrivais, onde estão como em deserto alguns calouros gregos que vivem de esmolas. Nos seus barcos as vão pedir às ilhas vizinhas e têm uma torre onde se recolhem quando sentem galés ou fustas de corsários. À hora de véspera, sobreveio-nos vento contrário, de tal modo que se nos tornou urgente tomar porto, que necessariamente havia de ser turco, queria dizer de inimigos. O patrão da nau e os marinheiros, que do porto tinham notícia e conheciam o género da gente, mostravam-se muito apreensivos, o que não nos escapou a mim e a frei Zedilho. Estamos em apuros?, pergunto a Pérides, já o barco entrava no porto e se preparava para lançar âncora. Olha-nos muito sério e diz: É boa altura de rezardes com todas as veras e ganas da vossa piedade! Ai, meu Deus!, entra frei Zedilho de empalidecer, ajoelhando logo ali e sacando das suas camândulas. Mas antes que a âncora fosse lançada o vento virou o rumo que trazíamos e, dando grandes gargalhadas nas velas pandas, assobiou pelas enxárcias que não ganháramos para o susto.

Navegando sempre ao longo da Moreia, aí estava o mar Jónio, que outros chamam Egeu e também já se chamou Icário. Quantas reminiscências de leituras, de estudos, tanto de autores gentios como de cristãos, aquelas terras, aquelas ilhas, aquele mar me traziam ao espírito! Quanta fábula e quanta história contida neste grande anfiteatro que são as terras dispostas em semicírculo em roda desse mar! Polvilhado de pequenas ilhas que arremedam poldras a manter a ligação humana da raça, da língua, das crenças e costumes, essa líquida orquestra de prata e ouro é rematada pelo palco magnífico, por esse estirado proscénio que é a ilha de Cindia, de costas voltadas a esse outro mundo ignoto e misterioso, a África. Onde estão os deuses e as deusas que povoaram essas montanhas azuladas? Onde as dríades e os faunos que corriam e dançavam nas clareiras dos bosques amenos, as náiades que riam e se banhavam nas fontes murmurantes, nos rios e lagos sonoros e cristalinos, à sombra da oliveira cor de cinza ou dos choupos mimosos? Onde as ninfas e as nereides? As musas que inspiraram tão grandes poetas? Os heróis que amaram e sofreram e foram cantados ao som de cítara de sete cordas nos palácios reais por um aedo cego? Já não vibra este ar finíssimo com as melopeias da lira de Orfeu, nem em redor da tímele o coro ditirâmbico evoca o suplício de Dioniso, nem o deus, embriagado e frenético, executa, ao som de flautas e crótalos, uma dança orgiástica, acompanhado de bacantes enlouquecidas e de sátiros obscenos, coroados de folhas, segurando mirtos, lambuzando-se e salpicando-se de vinho vermelho como sangue... Na velha Corinto, no rico templo de Vénus, já não se ouvem os suspiros, a respiração ofegante, das mil jovens que saciam a luxúria dos ricos viajantes e mercadores». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Negociadas em Corfu todas as coisas necessárias e oferecendo-se-nos tempo próspero e bom para navegar, levantamos âncora e demos vela com muito contentamento de todos»

jdact

A Tempestade

«(…) Entrei. Começava a perceber que o livro não era mais do que uma senha. Mal a judia fechou a porta, a sua atitude mudou totalmente. Sorrindo amavelmente, rogou-me que me sentasse, foi buscar biscoitos. Não se incomodasse comigo!, passas, figos, queijo, serviu-me do seu vinho, Ora valha-me Deus, que maçada lhe estava a dar!, enquanto ia falando. Que pena Isac não poder estar, ele que tanto me queria ver e falar! Mas tivera de ir à pressa a Chipre e daí ao Líbano, a colher umas informações especiais que Jacob, vindo das índias e passando por Ormuz, lhe queria transmitir. Jacob?,  estranhei eu. Será esse Jacob... Português, médico de Tavira. Esse mesmo!

Mas ele..., tinha morrido no terremoto! Assim era necessário que toda a gente pensasse, como depois se vira... Aliás era em parte isso que Isac me queria anunciar da parte de Jacob: que ele estava vivo e residia com Sara em Damasco. Sentindo-se velho e doente, não queria morrer sem me falar, para desobrigar sua alma de um pesado fardo que tem suportado. Isac pensava levar-me até ele, mas agora que tivera de ausentar-se subitamente deixara recado que me procuraria em Chipre, ou em Jerusalém, ou noutro qualquer lugar. Não devia preocupar-me: ele havia de encontrar-me...

Estivemos três dias naquela cidade, por ser necessário proceder à descarga de mercadorias que ali se venderam e à carga de outras que se compraram, o que não me pesou porque o meu espírito, deslassado de tanta espera infrutífera, caiu numa espécie de apatia e indiferença cansada, que eu sabia momentânea. Aproveitei o facto para satisfazer o meu natural pendor de desejar ver terras, ritos e costumes estranhos. Pude assim conhecer melhor a grande fertilidade de Corfu em muitos estremados azeites e vinhos, de que fazem exportação para diversas partes, a riqueza do gado que lhe dá pingues carnes, a bondade e variedade das frutas, em especial a fruta de espinho, mais avantajada que a nossa, e a abundância de pescado, não obstante o mar de Levante ser em muito lado falto dele. Visitei até uma grande pesqueira, a modo de viveiro, que os Venezianos têm num determinado ponto do estreito, em terra de turcos, onde criam infinito peixe que rende à senhoria grossa maquia: a maior parte são tainhas, que não é bom peixe por estar retido naquele viveiro à mistura com cobras e outras imundícies, mas há muita gente que o aprecia. O principal dele são as ovas, de que os Gregos e os Italianos fazem mais conta: extraem-nas e põem-nas a secar e a curar ao sol. São muito estimadas em todo o Levante e inúmeros mercadores vêm comprar o pescado e, tiradas as ovas, a que chamam butargas, dão-no livremente a quem o quer. Muitas pessoas o comem escalado e posto a enxugar, condimentado de alho, mas outras não lhe fazem tantas cerimónias.

Negociadas em Corfu todas as coisas necessárias e oferecendo-se-nos tempo próspero e bom para navegar, levantamos âncora e demos vela com muito contentamento de todos. No dia seguinte passamos a ilha de Cefalónia, suas altas montanhas a precipitarem-se vertiginosamente no mar. Preciosos vinhos!, era o nosso habitual informador, Pérides, apoiado como eu e meu companheiro à borda da balaustrada. Os ilhéus dedicam-se a fazer muita passa que levam à Itália e a outras terras Têm grande cópia de gado e lãs finíssimas... Estava particularmente feliz o bom do Pérides, pois mal fundeássemos iria a correr ver a sua namorada que era dali. Ia dar-lhe milhões de beijos e provar uma camisola que ela lhe andava a fazer (Margarida também me fez uma, lembrei-me!) com a lã das suas ovelhas! Era ver-lhe os olhos alongados a quererem puxar a si a terra que não havia meio de se aproximar. Era evidente que estávamos a  passar de largo. A desolação e mágoa de Pérides foi indescritível. Saiu da nossa beira e até ao dia seguinte, que aportamos à ilha de Zanze, não lhe pusemos a vista em cima. Aqui pouca gente saiu a terra: apenas o escrivão da nau, dois ou três mercadores, eu, depois de ter pedido licença ao patrão para satisfazer minha pura curiosidade..., e Pérides!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,

domingo, 3 de julho de 2022

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ela leu qualquer coisa no frontispício, que eu não entendi por ser naquela língua, e depois levantando os olhos para mim traduziu: Lisboa, 15 26»

jdact

A Tempestade

«(…) O padrinho segura a criança e conserva-lhe a cabeça encostada a si, enquanto o ministro, tomando o membro do menino, lhe arrepanha e puxa, com uma das mãos, a pele do prepúcio e com a outra empurra para baixo e conserva bem dentro a glande e o membro. Um instrumento de prata segura essa pele e vai permitir cortá-la circularmente com um cutelozinho de pedra, sem ferir a carne do pénis. Com as mãos retira a película que envolve a glande e liberta-a totalmente puxando para trás a restante pele. Com o seu choro bem mostra o menino que a carne é sua, o que nos provoca grande lástima. Um cálice com vinho é apresentado ao rabi, que, sorvendo um pouco na boca, vai assim sugar a glande ensanguentada, lançando fora o sangue que dela tomou. Faz esta operação três vezes, após o que polvilha a ferida com um pó vermelho. Envolve em seguida, com paninhos muito asseados, a pila do menino. Em cinco dias estarás curado, pequerruchinho!, ouço atrás de mim uma das moças a sussurrar. O ministro benze agora, à sua maneira, com orações, o vinho do cálice, toma uma golada e, metendo o dedo na boca, leva-o gotejando à boca do menino para que o sugue, o que também faz por três vezes. O que resta do vinho vai ser levado à mãe e é dado a beber às mulheres. Um ajudante segura um queimador de perfumes, de prata lavrada, e aproxima-se do ministro, que de boca ainda sangrenta recebe as exalações no peito e na cabeça. Incensa depois o menino e o padrinho. Dizem os judeus que quem for umas quantas vezes ministro da circuncisão os seus lábios serão incorruptíveis à terra e aos vermes, quando morrer. Que me parecia aquele acto?, é a pergunta de um judeu que nos acompanha cá fora na rua. Na Lei Velha, respondo-lhe, dada por Deus aos filhos de Israel, fora a circuncisão cerimónia muito santa. Ao presente, era função de gente cega e pérfida, acrescentava áspera e desajeitadamente frei Zedilho. Mas, apesar do desengano tão claro que havia nas palavras do meu companheiro, não deixaram por isso os judeus de ter connosco, muitos cumprimentos e de nos fazerem grandes oferecimentos, com que nos despedimos deles. Seguindo meu companheiro adiante, retardo o passo e pergunto ao judeu que connosco falara e vinha atrás: Conheceis um judeu português por nome Isac Beiçudo ou Bensaúde? Conhecia, sim. Mas não se encontrava na ilha naquele momento. Cria que fora a Chipre ou ao Egipto, não sabia bem. Andava sempre em viagem. Aquilo ali para nós que ninguém nos ouvia», confidenciava, como o não via fazer negócio ou só fingia que o fazia, cuidava ser por aí algum embaixador clandestino a soldo de alguém. Pois donde lhe havia de vir o dinheiro? Sabia tudo o que se passava, desde as índias Orientais às Ocidentais, incluindo o golfo Pérsico, o mar Vermelho, a Turquia e todas as terras de Europa, Ásia e África... Não sabeis quando torna? Ele era imprevisível. Podia voltar de um momento para o outro... Queria-lhe minha paternidade algum recado? Entregar-lhe uma encomenda. Se ele não vier antes que me torne a embarcar, terei de a deixar em casa dele. Se quisesse, indicava-me onde era. Ficar-vos-ia muito grato, disse eu e, dirigindo-me a frei Zedilho, pedi-lhe que fosse andando pois eu tinha recado a fazer.

Tomamos por umas ruas e travessas estreitas e, às tantas, o judeu parou em frente de uma porta a que bateu. Uma velha judia veio abrir e, sem que no rosto denunciasse qualquer surpresa ou curiosidade, ficou calada aguardando: Venho da parte de Joseph e trago uma encomenda para Isac. Saquei da manga a encomenda que, pelo volume, parecia ser um livro pequeno. A judia, em silêncio tomou o embrulho e rasgou o invólucro. Era de facto um livro, impresso em caracteres hebraicos. Ela leu qualquer coisa no frontispício, que eu não entendi por ser naquela língua, e depois levantando os olhos para mim traduziu: Lisboa, 15 26. Aquela data! Bem a conhecia eu! Sem fazer caso do meu espanto, ela atalhou vendo a minha boca a abrir-se para falar: Não digais nada, frei Pantaleão (ela dizia: Fra Pantaleone, pois era italiana). Entrai. Tu, Ibraim, disse ela para o judeu que me acompanhara, deixa-te de curiosidade e não metas o nariz onde não és chamado. Vai-te embora. Obrigado, Ibraim!, agradeci eu, um pouco enleado com a rudeza da judia, por me terdes trazido até aqui». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,