domingo, 3 de julho de 2022

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Ela leu qualquer coisa no frontispício, que eu não entendi por ser naquela língua, e depois levantando os olhos para mim traduziu: Lisboa, 15 26»

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A Tempestade

«(…) O padrinho segura a criança e conserva-lhe a cabeça encostada a si, enquanto o ministro, tomando o membro do menino, lhe arrepanha e puxa, com uma das mãos, a pele do prepúcio e com a outra empurra para baixo e conserva bem dentro a glande e o membro. Um instrumento de prata segura essa pele e vai permitir cortá-la circularmente com um cutelozinho de pedra, sem ferir a carne do pénis. Com as mãos retira a película que envolve a glande e liberta-a totalmente puxando para trás a restante pele. Com o seu choro bem mostra o menino que a carne é sua, o que nos provoca grande lástima. Um cálice com vinho é apresentado ao rabi, que, sorvendo um pouco na boca, vai assim sugar a glande ensanguentada, lançando fora o sangue que dela tomou. Faz esta operação três vezes, após o que polvilha a ferida com um pó vermelho. Envolve em seguida, com paninhos muito asseados, a pila do menino. Em cinco dias estarás curado, pequerruchinho!, ouço atrás de mim uma das moças a sussurrar. O ministro benze agora, à sua maneira, com orações, o vinho do cálice, toma uma golada e, metendo o dedo na boca, leva-o gotejando à boca do menino para que o sugue, o que também faz por três vezes. O que resta do vinho vai ser levado à mãe e é dado a beber às mulheres. Um ajudante segura um queimador de perfumes, de prata lavrada, e aproxima-se do ministro, que de boca ainda sangrenta recebe as exalações no peito e na cabeça. Incensa depois o menino e o padrinho. Dizem os judeus que quem for umas quantas vezes ministro da circuncisão os seus lábios serão incorruptíveis à terra e aos vermes, quando morrer. Que me parecia aquele acto?, é a pergunta de um judeu que nos acompanha cá fora na rua. Na Lei Velha, respondo-lhe, dada por Deus aos filhos de Israel, fora a circuncisão cerimónia muito santa. Ao presente, era função de gente cega e pérfida, acrescentava áspera e desajeitadamente frei Zedilho. Mas, apesar do desengano tão claro que havia nas palavras do meu companheiro, não deixaram por isso os judeus de ter connosco, muitos cumprimentos e de nos fazerem grandes oferecimentos, com que nos despedimos deles. Seguindo meu companheiro adiante, retardo o passo e pergunto ao judeu que connosco falara e vinha atrás: Conheceis um judeu português por nome Isac Beiçudo ou Bensaúde? Conhecia, sim. Mas não se encontrava na ilha naquele momento. Cria que fora a Chipre ou ao Egipto, não sabia bem. Andava sempre em viagem. Aquilo ali para nós que ninguém nos ouvia», confidenciava, como o não via fazer negócio ou só fingia que o fazia, cuidava ser por aí algum embaixador clandestino a soldo de alguém. Pois donde lhe havia de vir o dinheiro? Sabia tudo o que se passava, desde as índias Orientais às Ocidentais, incluindo o golfo Pérsico, o mar Vermelho, a Turquia e todas as terras de Europa, Ásia e África... Não sabeis quando torna? Ele era imprevisível. Podia voltar de um momento para o outro... Queria-lhe minha paternidade algum recado? Entregar-lhe uma encomenda. Se ele não vier antes que me torne a embarcar, terei de a deixar em casa dele. Se quisesse, indicava-me onde era. Ficar-vos-ia muito grato, disse eu e, dirigindo-me a frei Zedilho, pedi-lhe que fosse andando pois eu tinha recado a fazer.

Tomamos por umas ruas e travessas estreitas e, às tantas, o judeu parou em frente de uma porta a que bateu. Uma velha judia veio abrir e, sem que no rosto denunciasse qualquer surpresa ou curiosidade, ficou calada aguardando: Venho da parte de Joseph e trago uma encomenda para Isac. Saquei da manga a encomenda que, pelo volume, parecia ser um livro pequeno. A judia, em silêncio tomou o embrulho e rasgou o invólucro. Era de facto um livro, impresso em caracteres hebraicos. Ela leu qualquer coisa no frontispício, que eu não entendi por ser naquela língua, e depois levantando os olhos para mim traduziu: Lisboa, 15 26. Aquela data! Bem a conhecia eu! Sem fazer caso do meu espanto, ela atalhou vendo a minha boca a abrir-se para falar: Não digais nada, frei Pantaleão (ela dizia: Fra Pantaleone, pois era italiana). Entrai. Tu, Ibraim, disse ela para o judeu que me acompanhara, deixa-te de curiosidade e não metas o nariz onde não és chamado. Vai-te embora. Obrigado, Ibraim!, agradeci eu, um pouco enleado com a rudeza da judia, por me terdes trazido até aqui». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,