NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Soure, Sábado de Aleluia, Abril de 1126
«(… ) Mem concluiu que um dos
jumentos teria de descansar, pois estava magoado numa perna desde meio da
tarde, e por mais que quisesse chegar aos arrabaldes de Coimbra nessa noite tal
não seria possível. Ia pela antiga estrada, do tempo dos romanos, que ligava
Santarém à cidade do Mondego, onde seu pai morrera, mas teria de parar a carroça
um pouco afastada do caminho, pois nunca se sabia quem passava por ali durante
a noite. Para o Domingo de Páscoa, um nobre coimbrão tinha-lhe encomendado lebres,
gansos e perdizes, e Mem não estava habituado a falhar os seus compromissos.
Fora assim que se tornara um almocreve tão fiável quanto o seu pai, por isso
incomodava-o ter de parar, mas a perna do jumento necessitava de umas horas de
descanso. Partiria de madrugada, estava a pouco mais de uma hora de Coimbra, e
chegaria a tempo de entregar as carnes para o jantar, bem como uns salmonetes
com que queria surpreender a esposa do cavaleiro, amante de peixes bem
cozinhados e não só... Ao fundo, na penumbra da noite, descortinou os destroços
da velha vila de Soure, que tinha sido arrasada aquando da primeira invasão do
califa Ali Yusuf. Uma década depois, a destruição ainda se mantinha, agora
debaixo de um manto de terra e de milhares de raízes de árvores, como sempre
acontece aos locais de abandono.
Mem desatrelou os dois jumentos,
amarrando-os a um carvalho. Examinou a perna do que coxeava: tinha um inchaço
um pouco abaixo do joelho, provavelmente de uma pancada numa pedra. A estrada
estava cheias delas, a carroça andava aos solavancos e os jumentos nem sempre
as conseguiam evitar. Foi buscar um pó que lhe tinham vendido em Santarém e
massajou o bicho no local da dor. Depois, procurou uma zona onde a erva
estivesse baixa, para se deitar. Estava a estender uma manta no chão quando viu
uma luz ténue, vinda das ruínas de Soure. Pensara em acender uma fogueira, para
afastar os animais selvagens do carregamento e dos cansados jumentos, mas
decidira não o fazer, pois tinha consigo um arco e umas flechas, e preferia
atirar sobre um lobo ou um urso do que atrair a atenção dos salteadores. Agora,
estava contente pela decisão que tomara. Aprendera a usar o arco em Coimbra,
durante os anos que lá vivera depois da morte do pai, e tinha consigo flechas suficientes
para derrubar quatro ou cinco homens.
Aproximou-se das ruínas, mas
mesmo andando lentamente não conseguiu evitar pisar bosta de animal. Talvez
andassem por ali ursos ou lobos, e aguçou os ouvidos. Como estava muito escuro,
teve dificuldade em subir pelos destroços da muralha até encontrar um local
para se agachar. A vinte metros dele, uma pequena fogueira ardia, iluminando o
interior daquela desastrada alcáçova. Porém, não viu ninguém junto ao fogo, nem
qualquer sinal de gente. De súbito, sentiu uma rabanada de vento sobrevoá-lo e estranhou.
No céu, as nuvens que escondiam a Lua moviam-se lentamente. Notou um ligeiro
cheiro a âmbar, mas não existia movimento de seres, humanos ou animais, atrás
de si ou à sua frente, dentro ou fora do castelo. Começou a sentir-se ensonado
e decidiu que era melhor regressar para junto dos jumentos, mas o seu corpo
parecia estranhamente pesado e sem energia, e apoderou-se de Mem um receio
agudo. Todavia, era tarde de mais, um paralisante cansaço venceu-o e tombou em
cima das pedras. A meio da noite, acordou em frente à fogueira e não se
lembrava de como ali viera parar. Fixou as labaredas, tentando recordar-se.
Vira as nuvens, deitado em cima das pedras, e depois sentira o vento e o
cheiro... Uma vaga de terror assaltou-o, talvez alguém tivesse roubado o seu
ganha-pão. Libertou um palavrão e, para seu grande susto, ouviu nas suas costas
uma voz: Descansai, os jumentos estão bem e a carroça também. Em esforço, rodou
sobre si próprio no chão, tentando perceber quem lhe falava. A cerca de cinco
metros, sentada num penedo, estava uma mulher totalmente vestida de negro, com
um capuz sobre a cabeça, escondendo a cara.
Ela apontou para um local à sua
esquerda e Mem viu os dois jumentos e a carroça, e ouviu outra vez a voz: Tive
de vos adormecer, não gosto de surpresas. Mas depois reconheci-vos. O almocreve
sentiu de novo um receio agudo a percorrer-lhe o corpo. Quem sois vós?,
perguntou. De onde me conheceis? Então, a mulher falou pausadamente: Fui eu que
cremei o vosso pai. Mem recordou-se: o pai a ser degolado pelo demónio de
branco, o céu a ficar escuro e cheio de estrelas, uma mulher de negro colocando
a cabeça junto do corpo do pai, e depois dizendo-lhe que se dirigisse a
Coimbra, onde poderia recomeçar a sua vida, o que Mem fizera, com o coração
rasgado de dor. Sentiu uma comoção interior». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN
978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,