Madrugada. Os Pássaros da Bonança
«(…) Levanta a cabeça na direcção
dos vitrais, na sua frente. Roda o olhar para o centro da nave, onde convergem os
feixes de luz acabada de nascer, coados em finíssima poalha pelas frestas da
parede, do seu lado direito. Nota a sombra de alguém a manchá-los... Quem pode
ser a esta hora da manhã? Curiosidade e instinto de defesa, vira-se
ligeiramente para trás, para o lado esquerdo do transepto, quando pressente uma
pessoa encoberta com a coluna de pedra, desse lado. A sombra encena
intermitentes coreografias: aparece, esconde-se assim que ela vira a cabeça para
trás, reaparece quando a pressente concentrada na oração. Na concentração
aparente da Infanta há lugar para uma angústia que nunca experimentou, mormente
quando ouve o roçar de fato na pedra. Retoma a posição de orar, as mãos postas
ate sentir o terço castigar os dedos, ainda com a cabeça ligeiramente voltada
para o mesmo lado. O seu ângulo de visão apercebe o vulto de dona Paula, lá à
frente, mas não quer denunciar a presença intrusa nem alterar o rumo dos
acontecimentos iminentes.
Alguém repete a imprudência de
espreitar, numa impaciência reveladora que começa a preocupá-la. Deve ser um
homem, mas para que se esconde depois de ter cometido tamanha ousadia? Nessa
altura o desconforto acende uma lâmpada no silêncio das lembranças recentes: frases,
avisos meus e de outros moradores dos paços, advertências de nobres que muito a
estimam em memória de seu pai, têm pedido cuidado. Mais do que uma presença
curiosa a sombra pode trazer o abismo... Brevíssima fractura de receios para
quem nunca foi tomado por eles. Na mesma posição incómoda confirma mais uma,
duas vezes, que não pode estar enganada: espiam-lhe os movimentos
descaradamente num lugar de culto, mas não alcança quem poderia escolher a casa
de Deus para agir em seu proveito ou proveito de outrem. Vai-se toda a paz de
espírito capaz de convocar piedosos apelos, vai-se a vontade de rezar, a
confissão. Em ambiente de repente tão estranho só lhe resta fazer por descobrir
quem é, ao que vem, porque persiste em tal atrevimento. Nem que seja um novo morador
do paço, a melhor maneira de saber é obrigá-lo a revelar a identidade e acabar com
a intromissão. E antes que esmoreça a coragem benze-se, levanta-se, ajoelha na passadeira
a meio da nave, simula o abandono da capela, tudo isto no tempo em que costuma fazer
o sinal da cruz. Enquanto roda o corpo ainda vê a sombra pela última vez, acompanhada
do roçar das roupas.
Caminha agora, devagar, a
auscultar o silêncio. Pára um pouco, hesitante, as forças a escorregarem pelo
medo da revelação. Quem quer que seja sairá antes dela? E se lá estiver,
atrever-se-á a poisar os olhos na irmã de El Rei? Pode chamar dona Paula ou
frei António, esperar que ambos venham ao seu encontro. Tal como o pensa toma o
sentido contrário, certa de levar o desconhecido a acreditar que o seu destino
é a sacristia. Mas mal anda metade do caminho logo se volta direita à porta, .com
duas passadas mais rápidas, decidida a surpreendê-lo. E logra obter o efeito
que pretende. O homem não pode dissimular a presença, quase enroscado na coluna
de pedra em movimento lento, rotativo, no sentido inverso ao dos passos que se
aproximam». In Maria Helena Ventura, A Musa de Camões, 2006, Saída de Emergência,
2006, ISBN 972-883-940-5.
Cortesia de SdeEmergência/JDACT
JDACT, Camões, Maria Helena Ventura, História, Literatura, A Arte, MLAC, MLCT,