segunda-feira, 4 de julho de 2022

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Negociadas em Corfu todas as coisas necessárias e oferecendo-se-nos tempo próspero e bom para navegar, levantamos âncora e demos vela com muito contentamento de todos»

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A Tempestade

«(…) Entrei. Começava a perceber que o livro não era mais do que uma senha. Mal a judia fechou a porta, a sua atitude mudou totalmente. Sorrindo amavelmente, rogou-me que me sentasse, foi buscar biscoitos. Não se incomodasse comigo!, passas, figos, queijo, serviu-me do seu vinho, Ora valha-me Deus, que maçada lhe estava a dar!, enquanto ia falando. Que pena Isac não poder estar, ele que tanto me queria ver e falar! Mas tivera de ir à pressa a Chipre e daí ao Líbano, a colher umas informações especiais que Jacob, vindo das índias e passando por Ormuz, lhe queria transmitir. Jacob?,  estranhei eu. Será esse Jacob... Português, médico de Tavira. Esse mesmo!

Mas ele..., tinha morrido no terremoto! Assim era necessário que toda a gente pensasse, como depois se vira... Aliás era em parte isso que Isac me queria anunciar da parte de Jacob: que ele estava vivo e residia com Sara em Damasco. Sentindo-se velho e doente, não queria morrer sem me falar, para desobrigar sua alma de um pesado fardo que tem suportado. Isac pensava levar-me até ele, mas agora que tivera de ausentar-se subitamente deixara recado que me procuraria em Chipre, ou em Jerusalém, ou noutro qualquer lugar. Não devia preocupar-me: ele havia de encontrar-me...

Estivemos três dias naquela cidade, por ser necessário proceder à descarga de mercadorias que ali se venderam e à carga de outras que se compraram, o que não me pesou porque o meu espírito, deslassado de tanta espera infrutífera, caiu numa espécie de apatia e indiferença cansada, que eu sabia momentânea. Aproveitei o facto para satisfazer o meu natural pendor de desejar ver terras, ritos e costumes estranhos. Pude assim conhecer melhor a grande fertilidade de Corfu em muitos estremados azeites e vinhos, de que fazem exportação para diversas partes, a riqueza do gado que lhe dá pingues carnes, a bondade e variedade das frutas, em especial a fruta de espinho, mais avantajada que a nossa, e a abundância de pescado, não obstante o mar de Levante ser em muito lado falto dele. Visitei até uma grande pesqueira, a modo de viveiro, que os Venezianos têm num determinado ponto do estreito, em terra de turcos, onde criam infinito peixe que rende à senhoria grossa maquia: a maior parte são tainhas, que não é bom peixe por estar retido naquele viveiro à mistura com cobras e outras imundícies, mas há muita gente que o aprecia. O principal dele são as ovas, de que os Gregos e os Italianos fazem mais conta: extraem-nas e põem-nas a secar e a curar ao sol. São muito estimadas em todo o Levante e inúmeros mercadores vêm comprar o pescado e, tiradas as ovas, a que chamam butargas, dão-no livremente a quem o quer. Muitas pessoas o comem escalado e posto a enxugar, condimentado de alho, mas outras não lhe fazem tantas cerimónias.

Negociadas em Corfu todas as coisas necessárias e oferecendo-se-nos tempo próspero e bom para navegar, levantamos âncora e demos vela com muito contentamento de todos. No dia seguinte passamos a ilha de Cefalónia, suas altas montanhas a precipitarem-se vertiginosamente no mar. Preciosos vinhos!, era o nosso habitual informador, Pérides, apoiado como eu e meu companheiro à borda da balaustrada. Os ilhéus dedicam-se a fazer muita passa que levam à Itália e a outras terras Têm grande cópia de gado e lãs finíssimas... Estava particularmente feliz o bom do Pérides, pois mal fundeássemos iria a correr ver a sua namorada que era dali. Ia dar-lhe milhões de beijos e provar uma camisola que ela lhe andava a fazer (Margarida também me fez uma, lembrei-me!) com a lã das suas ovelhas! Era ver-lhe os olhos alongados a quererem puxar a si a terra que não havia meio de se aproximar. Era evidente que estávamos a  passar de largo. A desolação e mágoa de Pérides foi indescritível. Saiu da nossa beira e até ao dia seguinte, que aportamos à ilha de Zanze, não lhe pusemos a vista em cima. Aqui pouca gente saiu a terra: apenas o escrivão da nau, dois ou três mercadores, eu, depois de ter pedido licença ao patrão para satisfazer minha pura curiosidade..., e Pérides!» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

 JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,