Quarenta e quatro anos antes. Lisboa, Out0no de 1405
«(…) Mas John of Gaunt não fora
apenas um homem de desmedida ambição e vida devassa. Profundamente culto e
patrono das artes, promovera nos filhos o amor ao estudo e ao conhecimento. Ao
contrário do pai, Filipa fizera-se severa nos costumes morais. Fervorosamente
devota e de vasta, lisura, dominava o inglês, o francês e o latim e trouxera
para a corte portuguesa hábitos de erudição. Sonhara com o marido dar a
Portugal uma geração de infantes ilustres e, do seu ventre fértil, nasceram
oito filhos, que haviam sobrevividos seis. Consolidar a dinastia que iniciara
de forma tumultuosa e sem certezas de que se manteria no trono, confirmado em
Cortes pela mestria da oratória de João das Regras, era o propósito da vida do
rei português. Dignificar o nome de Avis impunha um esforço permanente.
Perspicaz, dom João cedo intuíra que era preciso reinar pelo exemplo para
manter os seus descendentes no trono de Portugal.
A autoridade moral e o
conhecimento, tanto como a força das armas, garantiriam essa determinação,
acredita o rei. Na inexperiência da mocidade, os filhos não haviam sentido como
lhe fora difícil chegar ali, nascidos já em berço mais do que dourado. Dom João
moldara-se como monarca, bem ciente da traição de parte da fidalguia do reino,
uma cisma que nunca o largava. Martirizava a mente verde dos infantes com essa verdade.
A nobreza, há que precaver dela! Ao invés da lealdade ao rei de Portugal, prostravam-se
aos pés dos de Castela quando vêem ganhos na traição. Julgais que a ameaça se
esfumou? Está sempre aqui, sempre aqui! De indicador esticado, batia com ele na
testa.
O rei tinha na soberba memória um
dos seus atributos. Não esquecia e não permitia que esquecessem, sabedor de que
o passado era teimoso e regressava sem pudor, sempre que a memória se esvaía de
um povo. Mas havia genuíno amor ao pai, não apenas temor, em todos os infantes
de Avis. Idealizavam o rei como um dos heróis dos romances de cavalaria que a
mãe lhes lia desde que se lembravam de existir Faziam tudo para agradar ao
monarca, homem de génio à flor da pele, cioso do seu mando e obstinado como
poucos. De coração generoso quando a vida lhe corria de feição, o rei comprazia-se
na companhia da família. Por todos os motivos do passado e sempre com a vista
no futuro, dom João voltara agora a reforçar a aliança inglesa, casando a sua
filha Beatriz com um nobre do reino da rainha dona Filipa». In
Isabel Machado, Infante Dom Pedro, O Regente Visionário que o Poder quis Calar,
2021, Editorial Presença, Manuscrito, 2021, JSBN 978-989-897-590-4.
Cortesia de EPresença/Manuscrito/JDACT
JDACT, Isabel Machado, História, Regente Pedro, Cultura e Conhecimento, Literatura,