A Tempestade
«(…) Ficaram para trás a saudosa
Ítaca e as sombras de Ulisses e da doce Penélope. A estátua de Zeus olímpico,
marfim e ouro sobre madeira preciosa, uma das sete maravilhas do mundo, ardera
algures num incêndio, junto de Constantinopla, e já não tutela as vitórias dos
atletas de músculos torneados e duros, brilhantes de suor. Nada resta já da
formosura de Helena e da juventude de Paris, que provocaram a ira de heróis e
de deuses. Não cai em transe, ao fundo da caverna, a enigmática pitonisa, a
esfinge não importuna o viandante às portas de Tebas, na Beócia, nem por
caminhos estranhos vagueia oscilante e trôpego o fantasma cego do rei Édipo.
Não vogam lentos e brancos à sombra dos ciparissos, nas águas mansas do
Eurotas, os cisnes de Artemisa junto aos degraus de mármore do seu templo, em
Éfeso... Um dia os deuses eternos morreram e com eles morreu o mundo antigo.
Passou por aqui depois um sopro novo e escutaram-se palavras nunca até aí
proferidas. Por todos estes lugares deixa vestígios a sombra de Paulo de Tarso,
as pedras abrem brechas em que nascem ervas, ruem paredes e colunas, e este
anfiteatro alarga-se, com centro em Roma, a todo o Mediterrâneo. De novo caem
impérios e reinos, e mais uma vez, neste mundo actual e moderno, que está
nascendo e em grande convulsão, o palco, o teatro está a alargar-se a toda a
Terra.
O mar Jónio reduziu há muito as
suas dimensões e torna-se agora apenas um pequeno anfiteatro onde, além das
ambições humanas de poder e riqueza dos imperadores e tiranos, dos mercadores
de Levante e de Ocidente, Cristo e Maomé medem metro a metro o terreno que
pisam. Terras frias, cruéis, de uma realidade que faz estremecer a evocação da
poesia e o véu de doçura de que os antigos as nimbaram fazem compreender a
comoção inspirada com que os artistas de agora, escultores, pintores, poetas,
estão fazendo renascer esse amável espírito. Tínhamos nós diante dos olhos a ilha
de Cândia, um dia ao cair da tarde o céu toldou-se de nuvens negras e pesadas.
Um vento frio começou a encrespar a superfície das águas e a nossa pele, que
logo arrepiados puxávamos a roupa contra o peito. Estrondeou em cima a
trovoada, com relâmpagos súbitos e medonhos, em fragoroso cascalhar. Desabou
dos céus a chuva em grossas varas, as ondas cavavam esverdinhadas, espumejando
uma babugem branca, lívida. Os da tripulação mais experimentados no mar
começaram a temer a tormenta. De um lado a outro corriam marinheiros açodados
às ordens do piloto, rapidamente arriando, amainando as velas, atando as vergas
e calabrês, concertando todas as enxárcias para que se não desfibrassem com a
força da borrasca e lançando cordas da popa à proa, uma de um bordo e outra
doutro, a fim de que se segurassem nelas para acudirem aonde urgisse. De outra
maneira era impossível terem-se de pé. Davam de si os madeiros em estertor. Os
passageiros tínhamos de ficar nos camarotes ou na coberta, muito quietos cada
um em seu lugar, uns gemendo, outros gritando, outros rezando e não poucos
transformando o terror numa agonia tão grande que as tripas lhes davam volta e
vomitavam o que não tinham comido, pois em todo o tempo que a tempestade durou
ninguém se lembrou de levar qualquer alimento à boca. A coisa chegou a tanto
que o patrão e os principais que iam na nau..., julgando a morte chegada,
pediam com muitas lágrimas a confissão. Os padres que íamos na viagem não
tínhamos mãos a medir. Até o pobre do frei Zedilho. Homem que em toda a sua
vida não tinha visto o mar, jazia como morto em cima do catre. Quando tomava
seu ânimo algum alento, todo o seu negócio era a confissão como boamente podia».
In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT
JDACT, Fernando Campos, Literatura, A Arte da Escrita,