sexta-feira, 15 de março de 2024

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros de azul e roxos esmaecidos»

jdact e wikipedia

Cambridge, Inglaterra

«Coitado do velho Jacob. Vilão! Eu vi o que o senhor fez. Eu sei, respondeu o outro, racionalmente. Por isso vou ter de matá-lo também. Sem mais uma palavra, pegou o maior cutelo do acossado, que se sentiu congelar. Ergueu a arma bem no alto. O açougueiro emitiu um grito tão agudo que foi quase inaudível. Timon virou o cutelo, baixou brutalmente a parte chata na cabeça do homem e apenas o derrubou inconsciente. Com todo o cuidado, enfiou a arma na mão direita da vítima. Depois ergueu o cachorro, abriu-lhe a garganta e despejou um pouco de sangue no dono e na lâmina.

Lançou o olhar à rua escura por um instante. Aguçou os ouvidos em busca da mínima sugestão de outras testemunhas. Convencido de estar sozinho na missão, escancarou a boca do cão, empurrou-a no amplo pescoço do açougueiro e fechou-a com força até os dentes sem vida extraírem sangue. Examinou as outras facas na loja até encontrar uma lâmina de fino gume. Usou-a para retalhar vários buracos profundos no pescoço do açougueiro, buracos que pareciam marcas dos dentes de um cachorro. Dois perfuraram a jugular, e logo jorrou sangue, espalhando uma rubra decoração pelo piso.

No dia seguinte, as pessoas diriam que coisa terrível!, pensou Timon consigo mesmo, recuando para admirar o quadro vivo. O cão do açougueiro atacara-o e ele se vira obrigado a retalhar a garganta do animal. Então, o coitado do homem sangrara até à morte antes que alguém pudesse socorrê-lo. Que ironia, num açougue, não era?

Timon vigiou durante cinco minutos para ter certeza de que o homem morrera. Só então examinou o próprio manto à procura de manchas, mas a vantagem de usar preto era que o sangue raras vezes deixava algum traço visível. Sem mais pensar nos mortos, o monge virou-se para a rua e pôs-se a recitar, de memória, toda a Poética de Aristóteles.

Na tarde seguinte, o tempo esquentou mais. Cambridge beirava a Primavera, pelo menos no lado de fora. O ar no interior das paredes do Grande Salão continuava de rigoroso Inverno. Até as chamas das velas tremiam, tiritando. O lugar era uma caverna. Janelas altas, embaçadas por décadas de poeira, pareciam planeadas para impedir a entrada da luz. As paredes exibiam nas sombras indícios de musgo, cujo cheiro pairava no ar. Os pisos, cinzentos como nuvens de chuva, apenas vedavam o frio.

Vigas de madeira cor de bico de corvo sustentavam o tecto de pé-direito alto, de cinquenta pés ou mais, incitando-o rumo ao céu. A gravidade, que pena, fazia o trabalho do diabo, afundando as vigas e ameaçando derrubar o tecto.

O irmão Timon, sem dúvida com mais de seis pés de altura no áspero manto de monge asceta, absorvia, e memorizava, tudo. A posição de cada homem, de cada mesa, a disposição das velas, a pequena caixa perto da porta, o aroma de conhaque: ele catalogava todas essas coisas na mente. Mas o que achou mais fascinante foi o ruído da imensa sala: um constante e baixo zumbido, resultado de vozes sussurradas com a arranhadura de penas em papel.

O diácono Marbury conduziu Timon de uma escrivaninha a outra. Muitas, vazias; algumas, ocupadas por estudiosos absortos, sete, ao todo. Os homens espalhavam-se aqui e ali e entre as cinquenta mesas de trabalho no salão. Os enormes cubículos de estudo distribuíam-se em fileiras de cinco, e nenhum deles se sentava em seguida nem defronte a nenhum outro.

Timon seguiu em silêncio atrás do diácono Marbury até ao lugar indicado, contando os passos e sentindo os contornos do piso ao andar. Aqui estamos, disse o anfitrião, afinal. Apresento-lhe minha filha, Anne. Srta. Anne, este é o seu novo tutor, irmão Timon.

O monge ergueu os olhos para encontrar os de Anne. Primeiramente, notou que a moça tinha uma postura perfeita. A estrutura dos ossos era um estudo de ângulos rectos e permitia uma graça ou fácil bem-estar que relaxavam os músculos. Ela sentara-se a uma pequena mesa retangular, não escrivaninha. Orelhas pequenas demais, olhos grandes demais, lábios cheios demais e faces mais avermelhadas, que ditava a moda. Tomadas em conjunto, essas partes compunham um todo de estranho encanto. Usava um vestido preto que lhe abafava o pescoço, um visível gesto petulante numa cultura onde as cores da corte tendiam mais a tons claros de azul e roxos esmaecidos. Sem perceber, o recém-chegado escovou com a mão os cabelos para trás, examinando cada feição da jovem como se lesse um difícil trecho de grego. Batia repetidas vezes e ritmadamente no polegar com os dedos da mão direita, enquanto a encarava». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesia de Prumo/JDACT

JDACT, Phillip Depoy, Literatura,

A Conspiração do rei James. Phillip Depoy. «O velho revirou os olhos. Ah. Timon retirou o punhal. A vítima cambaleou em direcção às pedras do beco no momento em que o assassino imaginou ver uma erupção de vapor branco…»

jdact e wikipedia

Cambridge, Inglaterra

«Deixe-me explicar o que acontece, sussurrou o agressor, calmamente. Deslizei a faca por essa finíssima pele até ao coração que batia. Agora o senhor já não sente a lâmina mover-se, mas dividi o coração quase na metade exacta. O ferimento no peito é tão perfeito que pouco sangue se espalhará, mas o coração continuará a bombear por um instante, enchendo a cavidade peitoral com suficiente sangue, pelo menos em teoria, para fazer o torso, na verdade, explodir. Não tenha medo. Estará morto quando isso acontecer. Mas tornará muito difícil a identificação do sangue. O capuz do monge escorregou para trás e revelou um rosto de frio brilho. Tinha os olhos cor de folhas verdes novas, cabelos grisalhos encaracolados, desgrenhados e tempestuosos ao redor da cabeça. As feições pareciam mais esculpidas que fixas.

Eu o conheci... anos atrás... Giordano!, conseguiu dizer Jacob. Sim, respondeu Giordano, tranquilizando-o. Por isso o matei: não devo mais ser Giordano. Preciso desaparecer de todos os registos, e o senhor é um registo vivo de minha existência. De agora em diante, serei chamado de Timon, entenda. Jacob lutou para falar mais.

Não tema, interrompeu-o o assassino. O senhor dedicou a Deus e a seus amos na família Sidney uma boa vida de serviço. Tem a alma prostrada agora... Eu a sinto... A espera do salto para o céu. Lá encontrará bem-aventurança. Foi um homem bom.

O beco era curto, o espaço de três cavalos, pedras sob os pés, gelo entre duas lojas ruidosas naquela parte mais pobre de Cambridge. A primeira, de um açougueiro, emprestava o ar de fétida putrefacção. A outra, o casebre de um funileiro. De toda a parte, pendiam panelas baratas.

Jacob se esquecera de onde se encontrava. Não conseguia sentir nada. Apenas o opressivo aroma de noz-moscada que se desprendia do agressor. Talvez se pergunte por que escolhi este método de execução, continuou Giordano, a lâmina ainda no peito do velho. Eu tinha ternura pelo senhor, e meus estudos indicaram que não se sente nada com esse ferimento. Os antigos médicos gregos nos dizem que, quando um homem sofre um repentino choque dessa magnitude, o corpo recusa-se a acreditar, e todos os sentidos se fecham por um breve tempo. O senhor logo dormirá, sem sentir mais que a primeira afronta do punhal. Ofereci-lhe, Jacob, a única bondade que tenho a dar numa circunstância como esta.

O velho revirou os olhos. Ah. Timon retirou o punhal. A vítima cambaleou em direcção às pedras do beco no momento em que o assassino imaginou ver uma erupção de vapor branco projectar-se para cima. Adeus, Jacob, disse o assassino ao vapor. Eu, ai de mim, não tornarei a vê-lo. Passaremos à eternidade em diferentes acomodações. Nesse momento, um cachorro saltou das sombras, liberado por uma porta lateral do açougue.

Pegue-o, garoto!, grunhiu uma voz. Ele matou Jacob. O animal saltou sobre a garganta de Timon. Sem reflectir, ele girou o punhal para a frente, enterrou-o fundo e cortou a garganta do animal, quase degolando-o. A carcaça agonizante continuou a voar até cair no chão ao lado da vítima. O assassino avançou três longos passos com toda a calma e encontrou o açougueiro agachado nas sombras, com os olhos saltando das órbitas.

Sem uma palavra, agarrou-o pelo avental e atirou-o para trás pela porta lateral, loja adentro. O homem bateu numa mesa de madeira e caiu encolhido no piso. Como uma sombra fugaz, Timon voltou ao beco para agarrar pelo rabo do cachorro morto e arrastá-lo até ao açougue. Vai ser um pouco desconfortável, avisou, muito tranquilo, e jogou mais uma vez o capuz para trás. Logo o açougueiro começou a rastejar de costas». In Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.

Cortesia de Prumo/JDACT

JDACT, Phillip Depoy, Literatura,

quarta-feira, 13 de março de 2024

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe»

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Salamanca

«Batem com força à porta de entrada, acordando Ari das suas divagações. Ouve vozes no átrio, pousa a pena e levanta-se, para dar com o Pai a tentar apoiar um homem velho e pequeno, que se arrasta a custo no outro lado do átrio. Assim que Ari vê os seus rostos cor de cinza, sabe que aconteceu mesmo qualquer coisa especial, e que hoje não será um dia igual aos outros.

Pai! Rabi Isaac!, grita, correndo em seu auxílio. O que se passa? O idoso rabi faz uma careta de dor quando o sentam com cuidado numa cadeira da cozinha. Tem a respiração ofegante e o rosto, coberto por tufos de barba branca, reluz brandamente sob uma fina camada de suor. Ari vai buscar água e leva o copo aos lábios do rabi. Ele bebe devagar, parando entre goles para balbuciar em voz baixa. Engasga-se e gagueja como se ainda tivesse qualquer coisa do pequeno-almoço presa na garganta. Finalmente, numa voz rouca do esforço, sai-lhe uma palavra de um jacto. Exílio!

As quatro sílabas ficam suspensas no ar. Atónito, Ari agarra no braço do Pai e sonda-lhe o rosto. Ele sabe pela Torá que o exílio é o caminho para a redenção. Então, porque se mostra o rabi tão receoso?

Não faz sentido! De certeza que o Pai, com todo o seu saber, vai conseguir explicar! Mas os olhos do Pai, normalmente calmos, estão agora vítreos. Tem as feições de pedra e o sangue fugiu-lhe da face, como se tivesse uma dor de dentes. Também está a ter dificuldade em mover o queixo.

Saiu um édito, balbucia, com a voz pesada de desespero. Temos três meses para ir embora. O choque invade Ari de repente. O mesmo choque que sentiu quando era criança, quando caiu da ponte para o rio. A torrente engole-o, tirando-lhe o ar dos pulmões. Não consegue respirar. Sente o sangue a latejar-lhe nos ouvidos. Está a afogar-se, vira-se para o Pai, à procura de ajuda, mas ele já se deixou cair como uma trouxa mal feita na cadeira ao lado do rabi.

Samuel deve ter ouvido toda aquela agitação, porque está encostado à porta, a fungar e a assoar-se com um lenço húmido. Apoiando-se na mesa de madeira acabada de esfregar, Ari olha de novo para o Pai, à espera de uma orientação. Mas o Pai tem os olhos fechados e uma expressão de descrença no rosto, como se tivesse acabado de descobrir que uma das leis universais que tanto ama tivesse sido violada.

Uma onda de vergonha apodera-se de Ari. E se os céus o ouviram? E se tudo aquilo for culpa dele? Desejara que acontecesse qualquer coisa de empolgante. Esperara que houvesse uma mudança. Não vale a pena tentar negá-lo. A culpa é mesmo dele. Devia ter estado a trabalhar nos seus  cálculos. Em vez disso, rezara para que acontecesse qualquer coisa de extraordinário. E agora tinha acontecido. Mas era uma coisa tão terrível que ninguém no seu perfeito juízo o teria desejado alguma vez!

Inclina-se para a frente e sussurra ansiosamente ao ouvido do pai: Pai, a culpa e minha! Sou eu o culpado. Desejei que acontecesse qualquer coisa especial que mudasse tudo! O Pai ergue os olhos para ele, espantado. Depois o rosto dele suaviza-se, e os seus olhos cinzentos enchem-se de lágrimas. Não! A culpa não é tua, Art, diz ele, estendendo a mão e pegando-lhe no braço. Estavas só a sonhar outra vez. Ainda nem sequer és um homem. Como poderia a culpa ser tua?

O ar volta a entrar nos pulmões de Ari. O Pai tem razão. Como poderia ser culpa dele? Um rapaz de 14 anos? Quase 15! As suas ideias arrebatadas? Era impossível, mas então de quem era a culpa? Quem faria uma coisa destas? Deve haver um engano qualquer. As lágrimas descem pelo rosto do Pai sem que ele se aperceba. Tem uma expressão perplexa. No silêncio da cozinha, o rabi é o primeiro a falar.

Não há engano nenhum, diz, com a voz estrangulada. O inquisidor da rainha proclamou o édito na praça ainda esta manhã. Está uma cópia afixada na porta da catedral. Mas porquê?, pergunta Ari. É o castigo de Deus. Mas que mal é que nós fizemos? Com os olhos vermelhos, Samuel aperta o lenço na mão.

Foram o rei e a rainha que assim planearam, diz o rabi, passando uma mão cansada pela face. Ari vê uma luz de esperança acender-se no rosto do Pai. A rainha, diz ele, com os lábios a tremer. Talvez eu consiga uma audiência na Corte. Pedir que atenda ao nosso caso. Por causa do meu trabalho...

Não se trata só do rei e da rainha, diz o rabi Isaac. Trata-se do inquisidor-mor e da Santa Irmandade, com todo o poder da Igreja Católica a apoiá-los.

O Pai passa os dedos trémulos pela barba. Tosse e tenta de novo. Talvez a rainha abra uma excepção para nós... Não, Abraão, não haverá excepções. Tem razâo. O Pai torce as mãos; desapareceu-lhe a luz da face. Tenho andado a estudar as constelações e vi os sinais que vêm dos céus.

Coragem, diz o rabi Isaac, reunindo as suas forças. Pense em das as tempestades celestiais que já nos caíram sobre a cabeça. Isto é mais do que uma mera tempestade. A voz do Pai vacila. Inclina o ouvido para o canto da cozinha, como se ouvisse uma tempestade levantar-se ao longe. Há indícios de grandes mudanças, conjunções dos Planetas que significam destruição e revolta. Nunca acreditei nisso até agora.

Lembra-te, Abraão, diz o rabi. Não há nenhum Planeta que tenha poderes para nos governar. Não. A voz do Pai adquire uma ênfase súbita. Vem aí o fim do mundo. Isto é o Apocalipse». In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

 Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura, 

terça-feira, 12 de março de 2024

O Astrólogo e o Rei. Brigid Hampton. «Os teus cálculos estão péssimos. Devias estar a estudar. Ari baixa os olhos para o exercício, molha a pena no tinteiro e segura-a, suspensa, sobre o papel»

jdact

Sevilha, 1492

«(Ismael desviou ou olhos. Não disse o que Paloma já tinha adivinhado. Os documentos que planeara esconder continham cópias de um mapa . que ele e o Papá tinham roubado da Corte. Se fossem apanhados, seriam todos julgados como traidores e queimados nas piras da Inquisição (maldita).

Ao longe, ouve-se ladrar um cão solitário. A alça do saco de Paloma enterra-se-lhe dolorosamente no ombro, e sente um bater desordenado no peito, no sítio onde o Papá diz que fica o coração. Tropeça e pega na mão de David, rezando para conseguirem passar em segurança. Isto é só o princípio do fim. Não é o fim. O que lhes trará a manhã?

Esforça-se por pensar na rota que Ismael planeia seguir, atravessando o rio Guadalquivir, passando pelas ruínas de Itálica através dos velhos campos de trigo de Roma, e depois subindo as colinas. Avançam-apressadamente e em silêncio. O vapor da sua respiração ofegante flutua acima deles, dissolvendo-se na noite.

Salamanca

O fumo é sempre a primeira coisa que Ari procura quando abre a janela. Nos dias em que queimam conversos na praça, consegue ouvir os gritos e os uivos da multidão.

Sente o estômago às voltas só de pensar nisso. Nesses dias, é-lhe impossível concentrar-se. Tem de trancar as janelas para evitar o fedor enjoativo que o vento traz da pira, e ao cair da tarde há uma camada de cinzas gordurentas que se lhe cola aos dedos se não limpar primeiro o beiral da janela.

Debruça-se sobre o parapeito para afastar as portadas. Hoje a viela está silenciosa. O céu é de um azul transparente. Ao longe, consegue ver os contornos do pináculo da catedral. Abaixo, nas margens do rio, há mulheres a lavar roupa e a pendurá-la nas cordas que se estendem entre as árvores, com as suas vozes cantadas a erguer-se por cima do rio'

Nem um sopro de vento. Nem o mais pequeno cheiro a fumo. Graças sejam dadas a Deus! Hoje não há autos de fé na praça. Com um suspiro de alívio, volta para o escritório. Há uma tira de luz que se projecta à sua frente, lançando uma luz dourada sobre a página em branco do seu livro, numa dança brincalhona. O irmão mais velho, Samuel, já está sentado à secretária. Com a pena na mão, tem o olhar fixo nos cálculos que o Pai lhes deixou para completar.

Fecha a janela, diz Samuel, sem erguer os olhos. Espirra e limpa com um lenço o nariz a pingar. O Pai quer que acabemos estes hoje. Ari fecha a janela e senta-se ao lado do irmão. Distraído, agita-se no lugar, brinca com a pena de junco, fazendo agitar à volta do dedo. O dia estende-se à sua frente numa monotonia sufocante e interminável.

Se ao menos acontecesse qualquer coisa. Uma coisa diferente. Uma coisa fora do comum. Nada que se pareça com mais autos de fé na praça. Deus nos livre! Mas uma coisa especial. Uma mudança qualquer que lhe desse uma desculpa para sair da secretária, da interminável rotina de tabelas e ângulos e cálculos feitos sob o olhar cinzento e incansável do Pai.

E vê lá se estás quieto. Samuel afasta dos olhos uma mecha de cabelo. Estás a sonhar outra vez. Os teus cálculos estão péssimos. Devias estar a estudar.

Ari baixa os olhos para o exercício, molha a pena no tinteiro e segura-a, suspensa, sobre o papel. O Pai vai regressar em breve para verificar o trabalho deles. Diz que só através do estudo se ganha mérito. Os números são tudo o que conta, segundo o Pai. São o padrão e a razão do mundo, explicam as leis do universo.

Se o mérito se ganha através dos números, então ele, Ari, nunca terá nenhum. Samuel é bom a fazer cálculos. Tem carradas de mérito. Com um mérito daqueles, seria de esperar que ele se entendesse com o mundo. Ou, pelo menos, que aprendesse a amar melhor o próprio irmão!» In Brigid Hampton, O Astrólogo e o Rei, Porto Editora, 2022, ISBN 978-972-003-487-8.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Brigid Hampton, História, Conhecimento, João II, Cartografia, Literatura,

terça-feira, 5 de março de 2024

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia…»

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«Mas eu não conhecia ninguém em Havana, mais ainda, era a primeira vez que estava em Havana, em minha viagem de lua-de-mel com minha mulher tão recente. Virei-me por fim e vi Luísa erguida na cama, com os olhos fixos em mim mas sem ainda me conhecer nem reconhecer onde estava, aqueles olhos febris do doente que acorda assustado e sem ter recebido aviso prévio de seu despertar no sono. Estava levantada, e o sutiã saíra do lugar enquanto dormia, ou então no movimento brusco que acabava de fazer ao erguer-se: estava torcido, tinha descoberto um ombro e quase um seio, com certeza a estava incomodando, devia tê-lo prendido com seu próprio corpo esquecido no mal-estar e no adormecimento. Que está acontecendo?, perguntou apreensiva. Nada, respondi. Volte a dormir.

Mas não me atrevi a achegar-me e acariciar seus cabelos para tranquilizá-la de verdade e para que voltasse ao torpor, como teria feito em qualquer outra circunstância, porque naquele instante eu não me atrevia a abandonar meu lugar na sacada, nem a desviar os olhos por pouco que fosse daquela mulher que estava convencida de ter estado comigo, nem a evitar por mais tempo o diálogo abrupto que da rua se impunha a mim. Era uma pena que falássemos a mesma língua e eu a compreendesse, porque o que ainda não era diálogo já se tornava violento, talvez porque não o fosse, não fosse diálogo. Eu te mato, filho-da-pu…! Juro que eu te mato aqui mesmo!, gritava a mulher da rua.

Gritava aquilo do chão e sem poder me encarar, porque, justo no momento em que eu me virara para dizer a Luísa quatro palavras, um sapato tinha saído do pé da mulata e ela caíra, sem se machucar mas sujando na hora a saia branca. Gritava isto, Eu te mato, e ia se levantando, um tombo, a bolsa sempre pendurada no braço, não a soltara, aquela bolsa ela não soltaria nem que a esfolassem, tentava sacudir-se ou limpar a saia com a mão e estava com um pé descalço, erguido no ar, como se não quisesse de maneira nenhuma pousá-lo e sujar também sua planta, nem as pontas dos dedos sequer, o pé que poderia ver o homem que ela tinha encontrado, vê-lo de perto, em cima, e tocá-lo, mais tarde.

Senti-me culpado para com ela, pela espera, por sua queda e por meu silêncio, e também culpado para com Luísa, minha mulher recém-contraída que estava precisando de mim pela primeira vez desde a cerimónia, ainda que apenas um segundo, o necessário para secar o suor que lhe empapava a testa e os ombros e para ajustar ou tirar o soutien para que não a incomodasse e fazê-la regressar com palavras ao sono que a curaria. Aquele segundo eu não podia dar-lhe naquele momento, como era possível, notava com força as duas presenças que quase me paralisavam e emudeciam, uma fora e outra dentro, diante de meus olhos e diante das minhas costas, como era possível, sentia-me obrigado para com ambas, tinha de haver um erro ali, eu não podia me sentir culpado para com minha mulher por nada, por uma demora mínima na hora de atendê-la e acalmá-la, e menos ainda para com uma desconhecida ultrajada, por mais que ela acreditasse que me conhecia e que era eu quem a ultrajava.

Ela estava fazendo malabarismos para voltar a pôr o sapato sem pisar no chão com o pé descalço. A saia era um pouco apertada para realizar essa operação com êxito, seus pés de ossos demasiado compridos, e enquanto tentou não gritou, mas resmungava, não podemos estar muito atentos aos outros enquanto tratamos de recompor a aparência. Não teve outro remédio que apoiar o pé, que se sujou no acto. Voltou a levantá-lo como se o chão a houvesse contaminado ou queimado, sacudiu a poeira como Luísa sacudia a areia seca nas praias justo antes de abandoná-las, às vezes ao cair da noite; enfiou os dedos do pé no sapato, a parte da frente; depois, com o indicador (da mão livre da bolsa), ajustou a tira do calcanhar que sobressaía sob aquela tira (a tira do soutien de Luísa devia continuar caída, mas eu não a via agora). Suas pernas robustas pisaram outra vez com firmeza, batendo no pavimento como se fossem cascos. Deu mais três passos sem erguer ainda a vista e, quando a ergueu, quando abria a boca para me insultar ou me ameaçar e iniciava pela enésima vez o gesto preênsil, garra de leão, aquele que agarrava e significava Você não vai se livrar de mim ou Vai comigo para o inferno, suspendeu-o no ar, e o braço nu ficou congelado no alto, como o de um atleta». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, Narrativa,

Coração Tão Branco. Javier Marías. «Você é meu ou Eu te mato. Você está abobalhado ou o que foi? Inda por cima ficou mudo? Mas por que você não me responde? Já estava bem perto, avançara pela esplanada uns dez ou doze passos, suficientes para que agora sua voz estridente não só se ouvisse…»

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«Ao dar mais passos do que os que dera repetidamente durante sua espera vi que andava com dificuldade e lentidão, como se não estivesse acostumada com os saltos, ou suas pernas robustas não fossem feitas para eles, ou a bolsa a desequilibrasse ou estivesse enjoada. Caminhava um pouco como Luísa tinha caminhado depois de sentir-se mal, ao entrar no quarto para deixar-se cair na cama, onde eu lhe tirara parte da roupa e a introduzira nos lençóis (eu a cobrira apesar do calor). Mas naquele andar desajeitado também se adivinhava a graça, perdida naquele momento: quando estivesse descalça a mulher mulata caminharia com graça, a saia ondularia, quebrando-se ritmicamente contra as coxas. Meu quarto estava às escuras, ninguém acendera a luz ao cair a noite, Luísa dormia indisposta, eu não me mexera daquela sacada, olhava os havaneses e depois aquela mulher que continuava se aproximando com passo trôpego e continuava gritando para mim o que agora já ouvia: Ei! Você o que faz aí? Tive um sobressalto ao entender o que estava dizendo, não tanto porque o dissesse para mim quanto pelo modo de fazê-lo, cheio de confiança, furioso, como de quem se dispõe a acertar as contas com a pessoa mais próxima ou a quem está amando, que a irrita continuamente. Não era que se tivesse sentido observada por um desconhecido de uma sacada de um hotel para estrangeiros e viesse reclamar de minha contemplação impune de sua figura e de sua humilhante espera, mas sim que reconhecera de repente em mim, ao levantar a vista, a pessoa que estava esperando sabe lá havia quanto tempo, sem dúvida desde muito antes de eu a notar. Ainda estava à distância, atravessara a rua evitando os poucos carros sem procurar um semáforo e se achava no começo da esplanada, onde parara, talvez para descansar os pés e as pernas tão salientes ou para alisar outra vez a saia, agora com maior afinco, já que por fim se encontrava diante de quem devia julgar ou apreciar sua queda, a da saia.

Continuava me fitando e desviando um pouco a vista, como se tivesse algum problema de estrabismo, seus olhos escapavam momentaneamente para minha esquerda. Talvez tivesse parado e ficado longe para mostrar sua irritação e que não estava disposta a deixar o encontro se consumar assim sem mais nem menos uma vez que me avistara, como se ela não tivesse sofrido ou não tivesse sido destratada até dois minutos antes. Então disse outras frases, todas elas acompanhadas do gesto inicial do braço e dos dedos móveis, o gesto de segurar, como se com ele dissesse Venha cá ou Você é meu.

Mas com a voz dizia, uma voz vibrante, empostada e desagradável, como de apresentador de tevê, político num discurso ou professor dando aula (mas parecia iletrada): Você o que faz aí? Não me viu que o estava esperando faz uma hora? Por que não me disse que você já tinha subido? Creio que dizia assim, com essa leve alteração na ordem das palavras e abuso dos pronomes em comparação com o que eu teria dito, ou qualquer pessoa de meu país, suponho. Embora eu continuasse sobressaltado, e além disso comecei a temer que os gritos daquela mulata acordassem Luísa às minhas costas, pude observar melhor o rosto, que de facto era de uma mulata bem clara, talvez tivesse uma quarta parte de negra, mais visível nos lábios grossos e no nariz um tanto achatado do que na cor, não muito distinta da cor de Luísa na cama, que passara vários dias bronzeando-se nas praias para recém-casados.

Os olhos piscantes da mulher me pareceram claros, cinzentos ou verdes, pelo menos cor de limão, mas talvez, pensei, tenha ganhado de presente umas lentes de contato coloridas, causa de sua visão deficiente. Tinha narinas veementes, alargadas pela ira (tinha cara de velocidade portanto), e mexia a boca em excesso (agora eu teria lido sem dificuldade em seus lábios, se precisasse), com esgares parecidos com os das mulheres de meu país, isto é, de substancial desprezo. Continuou se aproximando, cada vez mais indignada por não receber resposta, sempre repetindo o mesmo gesto do braço, como se não tivesse outro recurso expressivo além desse, um longo braço nu que dava um golpe seco no ar, os dedos dançando simultaneamente por um instante como para agarrar-me e depois arrastar-me, uma garra.

Você é meu ou Eu te mato. Você está abobalhado ou o que foi? Inda por cima ficou mudo? Mas por que você não me responde? Já estava bem perto, avançara pela esplanada uns dez ou doze passos, suficientes para que agora sua voz estridente não só se ouvisse, mas começasse a troar no quarto; suficientes também, achei, para que me visse sem incerteza por mais míope que fosse, portanto parecia indubitável que eu era a pessoa com quem marcara um encontro importante, que a angustiara com meu atraso e a ofendera da sacada com minha vigilância calada que continuava ofendendo-a». In Javier Marías, Coração Tão Branco, 1992, Relógio D’Água, 1994, ISBN 972-708-247-5

Cortesia do RelógioD’Água/JDACT

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Todas as Almas. Javier Marías. «… quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre…»

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«Como saber que troço melancólico do seu infindável trajecto estava a percorrer quando não erguia a mão naquele seu gesto infantil enquanto dava os bons-dias? Aquela mão verticalmente erguida, que nos fazia ter a convicção de que naquela cidade inóspita alguém ficava realmente alegre por nos ver, embora esse alguém não soubesse quem éramos ou, melhor dizendo, nos visse todas as manhãs como alguém diferente do dia anterior. Só por uma vez soube, graças a Cromer-Blake, em que momento exacto daquela sua vida sem sobressaltos, passada durante tantas horas atrás dos vidros da sua cabina, se encontrava Will. Cromer-Blake esperou por mim à porta do edifício e avisou-me: Diz algo ao Will, umas palavras de conforto.

Aparentemente, hoje está a viver no dia em que lhe morreu a mulher, em 1962, e ficaria muito magoado se um de nós não se apercebesse do sucedido ao entrar. Está muito triste, mas o seu bom humor natural permite-lhe usufruir do seu protagonismo de hoje apenas na medida certa para não perder de todo o sorriso. De modo que, até certo ponto, também está satisfeitíssimo. E, já sem olhar para mim,  fazer as suas deslocações sempre a correr para darem a impressão de um perpétuo sufoco e ocupação extrema nos intervalos entre uma e outra aula, as quais, no entanto, decorreram ou teriam de decorrer no mais absoluto sossego e despreocupação, como parte que eram do estar e não do fazer e nem sequer do fingir. Era o caso de Cromer-Blake e também do Inquisidor, também conhecido por Carniceiro ou Estripador, e cujo nome verdadeiro era Alec Dewar.

Mas quem negava todos os simulacros de agitação e dava corpo e verbo ao estatismo ou estabilidade do lugar era Will, o velho porteiro do edifício (a Institutio Tayloriana, assim chamada com pompa e em latim) onde eu costumava trabalhar em sossego e sem preocupações. Nunca vi um olhar tão limpo (certamente não na minha cidade, Madrid, onde não existem olhares limpos) quanto o daquele homem de quase noventa anos, pequeno e polido, invariavelmente vestido com uma espécie de macacão azul, a quem era permitido permanecer muitas manhãs na sua cabina envidraçada a dar os bons-dias aos professores à medida que iam entrando. Will não sabia, literalmente, em que dia vivia, e assim, sem que ninguém pudesse prever a data que escolhera e menos ainda saber o que determinava a sua escolha, passava todas as manhãs em anos diferentes, a viajar para trás e para a frente no tempo de acordo com a sua vontade ou, melhor dizendo, provavelmente à margem da sua vontade. Havia dias em que, mais do que acreditar que estava, na verdade estava em 1947, ou em 1914, ou em 1935, ou em 1960, ou em 1926, ou em qualquer um dos anos da sua longuíssima vida. Às vezes era possível intuir se Will se encontrava instalado num ano mau mediante uma leve expressão de temor (era um ser demasiado puro para que nele houvesse espaço para a preocupação, pois carecia absolutamente da visão de futuro sempre associada a tal sentimento) que, no entanto, nunca chegava a assombrar o seu olhar confiante e ufano.

Podíamos suspeitar que uma manhã de 1940 estava para ele dominada pelo medo dos bombardeamentos da noite anterior ou da manhã de 1916 o podia encontrar um pouco abatido com as más notícias procedentes da ofensiva do Somme, e que uma de 1930 o tinha acordado sem um tostão no bolso e com os olhos cautelosos e tímidos de quem tem de pedir emprestado e ainda não decidiu a quem. Noutros dias, o ligeiríssimo apagamento do seu imenso sorriso ou do brilho do seu olhar tão afectuoso era de todo indecifrável, nem sequer objecto de fabulação, porque, sem dúvida, devia-se a pesares e sensaborias da sua vida pessoal, que nunca interessou a um professor ou aluno». In Javier Marías, Todas as Almas, Editora Martins Fontes, 1998, Alfaguara, 2019, ISBN 978-989-665-914-4.

Cortesia de EMFontes/EAlfaguara/JDACT

JDACT, Javier Marías, Literatura, Espanha, 

segunda-feira, 4 de março de 2024

A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «Havia os que passavam a correr e ficavam com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com o vislumbre de alguém que consideravam estar morto…»

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O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa

«Daí que tenha ignorado a confusão que estava a acontecer poucos degraus acima. É que, na balaustrada aonde ia dar este primeiro vão de escada, esperava-me meia dúzia de pessoas que acompanhavam cada passo e analisavam cada gesto que eu fazia.

Observei-as e notei esse olhar incrédulo com que era habitual repararem em mim desde que ressurgira como Pessoa. Se, para alguns, a primeira sensação era o espanto perante a diferença entre a reprodução viva e a imagem estática, para outros, o mais estranho era o facto de eu falar. Notara essa incapacidade em aceitarem como real a fantasia que tinham de mim nestes últimos tempos em que ocupava os meus dias no Martinho da Arcada a reviver o passado.

Havia os que passavam a correr e ficavam com uma leve impressão de um engano; os que iam a caminhar em paz e a perdiam com o vislumbre de alguém que consideravam estar morto; os que paravam e fixavam os olhos no poeta enquadrado por um cenário que era mais literário do que possível; os que não queriam acreditar e me questionavam, e os que não se surpreendiam, talvez por já terem visto de tudo. Aliás, a existência de vida para um heterónimo de Fernando Pessoa após a sua morte não era coisa que acontecesse pela primeira vez já que antes um escritor até fizera um romance inteiro sobre o reaparecimento de Ricardo Reis por nove meses!

A verdade é que as pessoas ainda se surpreendiam com o meu regresso, mesmo que todos soubessem de tal novidade devido à quantidade de notícias publicadas nos últimos dias, e continuavam a ficar especadas, tal como acontecia com as que me aguardavam no fim do lance de escadas. A razão deste espanto não seria de estranhar, visto que a segunda vinda do poeta era palpável na carne do meu corpo e não como mero protagonista de um livro. Se me espetassem sairia sangue, coisa que ao Ricardo Reis do romance jamais aconteceria, porque era feito de palavras. Aliás, se me dessem tempo, o que iria sangrar era a continuação da obra do poeta. E isso é que era importante, até porque faltava aos portugueses alguém em quem acreditar e que lhes devolvesse a sua própria voz. Quem melhor do que um poeta para interpretar esta angústia tão visível num povo que já elegera um outro poeta como o seu patrono do dia nacional? A única condição que colocaria, quando fosse o tempo certo, era a de não me virem com a história do V Império. Não queria mais ilusões!

Eram já mais de uma dúzia as pessoas que me esperavam no primeiro andar da Casa. Se fora lento a subir as escadas, elas foram rápidas a concentrar-se junto ao corrimão, mesmo que eu não tivesse reparado no ajuntamento, porque prestei mais atenção ao que estava pendurado ou pintado nas paredes. Curiosas e receosas, iam recuando cada vez que eu avançava, ladeado pelo funcionário que me encaminhava para o lugar que definira como sendo o de uma surpresa feliz. Eis senão quando a directora da Casa interrompe a minha entrada triunfal e me manda parar». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN 978-989-702-565-5-

Cortesia de AGePazEditores/JDACT

JDACT, Fernando Pessoa, João Céu e Silva, Literatura, Conhecimento,

sábado, 2 de março de 2024

A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «… olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter sido. Estava a aproveitar este momento…»

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O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa

«Temos tido muito cuidado com a casa e está tudo em condições, mesmo que às vezes o dinheiro seja curto para as despesas de manutenção. Acho que vai gostar do que lhe vou mostrar e irá ficar surpreendido com as melhorias que os directores têm feito.

Realmente, estava tudo alterado em relação ao tempo em que eu vivera num andar deste prédio da rua Coelho da Rocha. Já lá iam muitos anos, no entanto, reconhecia o lugar com facilidade, pois alguns edifícios mantinham-se como eram na memória, apesar de estarem mais degradados do que nos quinze anos em que habitara no bairro, entre 1920 e 1935. As paredes que antes dividiam os pisos tinham sido destruídas, e o espaço à vista era bem maior. Se me perguntassem, confessaria sem problemas que nunca teria conseguido imaginar que os apartamentos fossem tão capazes de emparedar quem morava dentro deles e apagar-lhe o exterior. Que largueza e amplitude que estas mudanças teriam oferecido aos antigos moradores!

Bem, se morassem cá todos não poderíamos ter feito estas alterações.

O funcionário fora rápido na resposta ao meu comentário, fazendo-me pensar até que ponto este meu regresso não estava encenado na sua cabeça há bastante tempo. Passaria ele os dias a pensar no que me diria, caso eu voltasse a esta casa, ou seria apenas um empregado cuidadoso? Posso dizer que, para o primeiro contacto, estava a ficar com uma boa opinião sobre a Casa e que, se todos os funcionários fossem como este, a instituição estava bem entregue.

Continuámos a visita ao rés-do-chão, sempre com ele à minha frente a mostrar-me a habitação, tendo eu rapidamente desistido de a continuar a reconstituir mentalmente. Encaminhou-me para a escadaria que levava ao primeiro andar e, certo de que iria fazer-me uma surpresa, perguntou se queria subir pelos degraus ou se preferia experimentar o elevador.

Tenho a certeza de que isto é que não estava cá no seu tempo!

Realmente, este regresso à minha última morada era uma surpresa constante. Olhei para os degraus de madeira e contei-os, para confirmar se o seu número se mantinha o mesmo. Com tanta obra feita entretanto... Era a mesma quantidade de degraus, o que me permitia continuar a repetir a contabilidade que executava todos os dias ao chegar a casa. Porque seria que eu contava os degraus, perguntei-me. A questão seria antes o porquê de o fazer neste regresso e de como é que me lembrava desse tique, após quase um século passado? Voltei ao presente devido à pergunta do funcionário e respondi-lhe que preferia subir pelos degraus. Como fazia antigamente, não é?

Respondi-lhe que sim, enquanto reparava nos pormenores de decoração da casa, sempre com a minha imagem espalhada a cada canto. Eram estátuas, frases, poemas e desenhos. Uns meus. uns de outras pessoas sobre mim, mas sempre em torno do mesmo tema: eu. Coisas em que não tinha reparado com tanto cuidado na minha visita anterior à Casa Fernando Pessoa, às escondidas e ainda distante de ser quem vim a ser. O funcionário aproveitava a minha demora para ir explicando o significado do mobiliário novo e contava-me a sua história, mesmo que se notasse que estava com alguma pressa em chegar a uma das salas mais adiante. De tão entusiasmado, não conseguiu deixar de soltar uma pista.

Creio que no piso de cima vai encontrar algo que o deixará surpreso e feliz.

Não esclareceu qual seria a surpresa e também não o pressionei. Afinai se a minha intenção era tomar posse da Casa, seria conveniente que a olhasse bem nesta primeira visita como Fernando Pessoa. Aliás, para que nada falhasse, olhei-me num espelho onde estava desenhado o meu rosto e aproveitei para retocar o bigode, deixando-o conforme a ilustração mostrava ter sido. Estava a aproveitar este momento como mais nenhum outro na minha vida, continuando o passeio em câmara lenta, como se fosse o espectador de um filme que rodava depressa de mais para acompanhar o argumento». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN 978-989-702-565-5-

Cortesia de AGePazEditores/JDACT

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sexta-feira, 1 de março de 2024

A Segunda Vida de Fernando Pessoa. João Céu Silva. «Pedi-lhe, então, que me mostrasse a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão que antes nos separava e deu início à visita guiada»

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 O Poeta Regressa à Casa Fernando Pessoa

«Era mais que certo que, ao bater à porta da Casa Fernando Pessoa, iria revolucionar a minha vida e a do poeta para toda a eternidade. Afinal, a ressurreição não está à mão de qualquer ser humano que a reclame, nem o avanço da ciência a tornou mais fácil. Não me estou a referir ao voltar à vida através de bruxarias, complexas cirurgias, processos de congelamento ou outros progressos da tecnologia, daqueles que se vão ouvindo de vez em quando nas notícias.

Não, o meu caso é diferente e mais difícil de compreender, mesmo que para o aceitar seja necessário crer em alguma coisa. Porque para mim foi um passo dado sem dificuldade, quase natural, como o de uma criança que começa a caminhar. Estou certo, repito, de que ao bater à porta da Casa Fernando Pessoa irei revolucionar a minha vida e a do poeta para toda a eternidade. Afinal, o que vou dizer aos que estão resguardados pelas paredes grossas daquela construção e que mandam na minha antiga morada não é o que escutam todos os dias da boca dos visitantes que vão à procura das memórias de Fernando, nem o que querem ouvir sobre o Pessoa que guardam oficialmente.

E como não desejo ser aquele sobre quem existam dúvidas, tenho de lhes dizer toda a verdade, logo desde o princípio, convencendo-os de que não sou um turista de passagem que apareceu neste ano de 2010 por acaso, ou talvez um louco que decidiu fazer uma habilidade especial. Antes, devo mostrar-lhes que a eternidade das palavras que têm por missão preservar não está, como pensam, numa arca meio cheia, mas na parte meio vazia da qual só eu tenho a chave.

Decerto que a novidade que lhes vou dar não será a que esperam, mesmo que, passada a previsível grande tempestade, devam ficar satisfeitos com a revelação. Não me custa pensar que assim será, porque os últimos dias têm mostrado como é uma experiência complicada esta de certificar que o poeta não morreu para sempre.

Que não é como o Luís de Camões, morto e enterrado sabe-se lá aonde e cuja obra ficou esquecida por muito mais tempo do que a de Pessoa. De uma coisa estou certo antes de bater à porta da Casa e de lhes dizer ao que vou: não contem comigo para contar uma mentira. Tudo o que vai acontecer nos dias que se seguirão foi montado aos poucos, como se eu observasse uma casa a crescer desde as fundações até ao tecto. Foi assim que ficou definida a minha missão, como se fosse uma segunda vida que Vicente Guedes dá a Fernando Pessoa, depois de ter sido um heterónimo quase esquecido e substituído pelo Bernardo Soares no Livro do Desassossego.

O que eu disse ao porteiro não o surpreendeu. Olhou de alto a baixo e reconheceu-me. O que seria de esperar, porque eu era exactamente como me têm descrito; bigode, nariz circunspecto, fato negro e chapéu, tudo a combinar com a imagem das fotografias.

Bom dia, senhor Fernando Pessoa. Como tem passado? Diria mesmo que foi mais educado do que eu poderia esperar.

Poderia ter respondido torto e achar que vinha reclamar o que era meu, deixando-o sem emprego. Ou pensar que, portando-se bem, o manteria, pois nenhum poeta famoso dispensa um funcionário para todo o serviço, como ele parecia poder vir a ser. Portanto, fiquei satisfeito com a forma como decorreu a primeira situação, mesmo que tivesse antevisto vários outros desfechos.

Pedi-lhe, então, que me mostrasse a casa. Em menos de um minuto, o funcionário estava do lado de fora do balcão que antes nos separava e deu início à visita guiada». In João Céu e Silva, A Segunda Vida de Fernando Pessoa, Autores e Guerra e Paz, Editores, 2020, ISBN 978-989-702-565-5-

Cortesia de AGePazEditores/JDACT

JDACT, Fernando Pessoa, João Céu e Silva, Literatura, Conhecimento,

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «O comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida, cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo»


Cortesia de jdact e wikipedia

C

«Luanda começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na humidade e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no excesso de claridade trêmula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiantes dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires.

Pássaros brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insectos, nas quais put… cansadas por todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber os últimos champanhes de gasosa, à maneira de baleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de tempos a tempos as ancas ao ritmo de pasodoble de uma angústia indecifrável. Alferes pequeninos e de óculos, com ar competente de estudantes-trabalhadores escrupulosos, pastorearam-nos aos saltinhos na direcção de carruagens de gado que aguardavam num pontão coberto de detritos e de limos, pontão da Cruz Quebrada, lembra-se, onde os esgotos morrem estendidos aos pés da cidade, cães idosos que bolsam no capacho vómitos de lixo: em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta.

Sempre apoiei que se erguesse em qualquer praça adequada do País um monumento ao escarro, escarro-busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarro-homem de Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita definição do perfeito português: gabava-se de fornicar e escarrava. Quanto à filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal, tão rico de ideias como o deserto do Gobi de esquimós. De modo que, de cérebro exaurido por raciocínios complicados, tomamos ampolas bebíveis às refeições a fim de conseguir pensar.

Apetece-lhe outro drambuie? Falar em ampolas bebíveis dá-me sempre sede de líquidos xaroposos, amarelos, na esperança insensata de descobrir, por intermédio deles e da suave e jovial tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas, a quadratura do círculo das emoções. Por vezes, ao sexto ou sétimo cálice, sinto que quase o consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinças canhestras do meu entendimento vão colher, numa cautela cirúrgica, o delicado núcleo do mistério, mas logo de imediato me afundo no júbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropeçar nos chinelos a caminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremediável da minha existência, tão densa de um lodo de enigmas como pasta de açúcar na chávena matinal.

Nunca lhe aconteceu isto, sentir que está perto, que vai lograr num segundo a aspiração adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projecto que é ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperança, estender a mão para agarrá-lo numa alegria incontrolável e tombar, de súbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, à medida que a aspiração ou o projecto se afastam tranquilamente de si no trote miúdo da indiferença, sem a fitarem sequer?

Mas talvez que você não conheça essa espécie horrorosa de derrota, talvez que a metafísica constitua apenas para si um incómodo tão passageiro como uma comichão efémera, talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouçando devagar numa cadência autónoma de berços.

Uma das coisas, aliás, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, é a inocência, não a inocência inocente das crianças e dos polícias, feita de uma espécie de virgindade interior obtida à custa da credulidade ou da estupidez, mas a inocência sábia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dos outros e deles próprios o mesmo que você e eu, aqui sentados, esperamos do empregado que se dirige para nós chamado pelo meu braço no ar de bom aluno crónico: uma vaga atenção distraída e o absoluto desdém pela magra gorjeta da nossa gratidão.

O comboio cheio de malas e do receio tímido de estrangeiros em terra desconhecida, cuja lusitanidade se nos afigurava tão problemática como a honestidade de um ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

 Cortesia DomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador, mole e quente…»

Cortesia de jdact e wikipedia

B

«As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Fátima e porta-chaves com a efígie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaças do inferno bíblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficácia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pelos dos seus púbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchidão das coxas. Sentadas à mesa do brigadeiro, comiam a sopa com a ponta dos beiços tal como os doentes das hemorroidas se acomodam no vértice dos sofás, deixando nos guardanapos de papel pegadas de copas de bâton de que se evolavam ainda desgostos com as criadas e restos de tiradas patrióticas, e reencontrei-as no portaló do barco na manhã da partida, encorajando-nos com maços de cigarros Três Vintes e apertos de mão viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermédio dos anéis de brasão: Sigam descansados que nós na rectaguarda permanecemos vigilantes.

E com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de nádegas tão tristes, em relação às quais as cintas se conformavam com o papel secundário de fundas herniárias.

E depois, sabe como é, Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trágicos e imóveis de despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes de espanto. O espelho do camarote devolvia-me feições deslocadas pela angústia, como um puzzle desarrumado, em que a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz.  

Um dos médicos, dobrado no colchão do beliche, soluçava aos arrancos em palpitações irregulares de motor de táxi que se engasga, o outro contemplava os dedos com a atenção vazia dos recém-nascidos ou dos idiotas que lambem longamente as unhas com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim próprio o que fazíamos ali, agonizantes em suspenso no chão de máquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na distância num suspiro derradeiro de hino. Subitamente sem passado, com o porta-chaves e a medalha de Salazar no bolso, de pé entre a banheira e o lavatório de quarto de bonecas atarraxados à parede, sentia-me como a casa dos meus pais no Verão, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas. Como quando se tosse nas garagens à noite, pensei, e se sente o peso insuportável da própria solidão, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idênticos ao pulsar das têmporas no tambor do travesseiro.

Ao segundo dia alcançamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas a flutuar na bandeja de louça azul do mar, Alenquer à deriva no silêncio da tarde. A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melancólicos como corujas na aurora, e do porão onde os soldados se comprimiam subia um bafo espesso de vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infância, quando na cozinha, à hora das refeições, se agitavam à volta da minha sopa relutante as caretas alternadamente persuasivas e ameaçadoras da família, sublinhando cada colher com uma salva de palmas festiva, até que alguém mais atento gritava: Cantem o Papagaio Loiro que o miúdo está a puxar o vómito.

Em resposta a este aviso terrível, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em uníssono como no naufrágio do Titanic, de beiços arrepiados sobre os dentes de ouro, uma criada batia tampas de tacho a compasso, o jardineiro fingia marchar de vassoura ao ombro, e eu devolvia ao prato um roldão de massa e arroz que me obrigavam a engolir, desta vez sem coro, sibilando em voz baixa insultos furibundos.

Agora, percebe, estendido no convés numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacável metamorfose do Inverno de Lisboa no Verão gelatinoso do Equador, mole e quente como as mãos do senhor Melo, barbeiro do avô, no meu pescoço, na loja da Rua 1º de Dezembro, onde a humidade multiplicava o cromado das tesouras nos espelhos canhotos, o que com mais veemência me apetecia era que, tal como nesses tempos recuados, a Gija me viesse coçar as costas estreitas de menino num vagar feito da paciência da ternura, até eu adormecer de sonhos lavrados pelo ancinho dos seus dedos apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os fantasmas desesperados ou aflitos que o habitam». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT

JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita,  

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Idade Média. Umberto Eco. «… o pacto firmado com os ostrogodos, só acolhidos depois da queda do império dos hunos, em 456-457, entre o rio Sava e o rio Drava. O domínio das populações germânicas sobre o território só gradualmente se torna mais completo…»

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Da Queda do Império Romano do Ocidente a Carlos Magno

A instalação dos bárbaros

«Diferente é, pelo contrário, a génese dos reinos romano-bárbaros no território continental. Estes reinos não surgem da ocupação por potências estrangeiras de uma zona precedentemente imperial, mas estabelecem-se no território na sequência de negociação de foedera, instrumentos diplomáticos em uso desde o alto império, por meio dos quais Roma se intromete nas questões internas das tribos germânicas residentes fora das estremas imperiais. A partir da época de Marco Aurélio (121-180, imperador desde 161), inicia-se, de facto, o costume de acolher, no território do império, bárbaros inquilini, isto é, cultivadores ligados à terra; no tempo de Diocleciano junta-se-lhe o uso de os receber como læti e gentiles, cultivadores semilivres, vinculados a obrigações militares e talvez instalados em terras públicas e organizados, ao contrário dos precedentes, em grupos etnicamente compactos.

De uma ulterior evolução destas práticas, que não constituíram, portanto, uma inovação tardo-antiga, resultam os foedera do século V, que preveem a instalação da população bárbara numa determinada zona do império, em que um soberano governa em vez do imperador e as tropas, bárbaras, devem para todos os efeitos ser consideradas de foederati romanos, em 451, por exemplo, os visigodos combatem ao lado dos romanos contra Átila (?-435) nos Campos Cataláunicos.

A legitimação do poder do rei provém de uma delegação imperial que se concretiza com a recepção não só do título de rex no interior das suas comunidades mas também de um cargo oficial romano que era, em geral, o de magister militum. Estas realidades só são, pois, possíveis no interior do império, onde o elemento bárbaro é sempre muito inferior numericamente ao romano. E também as estruturas fiscais e administrativas romanas são, geralmente, mantidas; a organização provincial, por exemplo, chefiada por duces, mantém-se no reino visigótico, conservando frequentemente nos seus postos os mesmos indivíduos, e, de um modo geral, é dos cargos romanos de dux e de comes que provêm os duques e condes francos e lombardos.

Entre os mais importantes foedera deste tipo são, certamente, de recordar: o que em 382 é negociado por Teodósio I com os godos, a quem é permitido instalar-se na Trácia depois do desastre de Adrianópolis; os dois pactos de 411 e 443, que dão origem aos dois reinos burgúndios; o pacto que em 418 concede aos visigodos, que já em 413 haviam sido autorizados a estabelecer-se na Gália Narbonense, a Aquitânia II, com a inclusão de alguns territórios da Novempopulânia e da Narbonense I, com capital em Toulouse, de onde se expandem até conquistar a Espanha sueva; o que em 435 é concedido aos vândalos, que depois o violam ocupando três províncias da África setentrional; e, por fim, o pacto firmado com os ostrogodos, só acolhidos depois da queda do império dos hunos, em 456-457, entre o rio Sava e o rio Drava.

O domínio das populações germânicas sobre o território só gradualmente se torna mais completo e independente do poder imperial, que continua formalmente superior no plano hierárquico: a autoridade dos reges é-lhes delegada durante todo o século V pela autoridade imperial. Isto vê-se, por exemplo, nas moedas e, em particular, na de ouro: os regna começam mais ou menos imediatamente a cunhar moeda própria, mas fazem-no em nome do imperador, e nem em caso de conflito com o império colocam nas moedas o nome do rex; quando muito, substituem o imperador da época por um dos anteriores, por exemplo, aquele que estabelecera originalmente o foedus. É o caso dos solidi ostrogodos de Totila e de Teia com o busto de Anastácio». In Umberto Eco, Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN 978-972-204-479-0.

Cortesia de PdQuixote/JDACT

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