terça-feira, 23 de maio de 2023

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «É esta maldita barba!, resmungou meu tio. Não consigo chegar à ferida. O Doutor Montesinhos vai ter de te cortar a barba, disse ele para o ferido. Diego, que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir isto, deu-nos um empurrão…»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) O impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o rio de sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos conduzir à paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa. Mas por enquanto essa geografia de morte era ainda um segredo para nós. Pela sua fronte corriam torrentes de suor e as faces estavam sujas das marcas da eterna poeira da cidade. O sangue do corte no queixo fluía pelo pescoço. Por entre ataques de tosse, procurava recuperar o fôlego. Andava a passear por aqui... só um passeio, disse ele em português. Parei perto do rio, no Chafariz d’El-Rei a lavar as mãos.

Tia Ester desapertou-lhe a gola do gibão enodoado e limpou-lhe o peito com um farrapo que rasgou da sua blusa. Reparei no traço escuro de uma cicatriz antiga que tinha no peito, por baixo da clavícula, que parecia ter sido escavada por algum bicho. Em torno a nós, começaram a juntar-se vizinhos, a bisbilhotar entre si. Dois rapazes..., continuou Diego. Começaram aos berros que eu estava a envenenar o poço com essência de peste. Desataram a correr atrás de mim. Caí. Atiraram-me pedras. Apanhem o rabino de rabicho! Apanhem o rabino... Quem me salvou foi um homem moreno com um gorro azul. Era alto, forte... No seu desespero, as últimas palavras procuravam o socorro do hebraico. Fala português, murmurei-lhe, enquanto o deitávamos no empedrado da rua.

O turbante de Diego tombou e reparei então pela primeira vez, por entre os tufos de cabelo que lhe cobriam as orelhas e que começava a rarear e a ficar grisalho, os sinais que cobriam a sua cabeça. Tinha-lhe caído um papel dobrado. Pensando que podia ser alguma mensagem ou alguma fórmula de orações que o poderiam incriminar como judeu praticante, apanhei-o e enfiei-o na grande bolsa que sempre trazia pendurada ao pescoço e me servia como uma espécie de bornal. Judas encostava-se a mim, gelado de medo, e tive de o sacudir para que fosse chamar o Doutor Montesinhos. Meu tio reuniu-se a nós e, depois de uma breve oração, disse: Vou lá dentro ver se posso arranjar algum remédio.

Ainda tentei manter fechado o lanho, com os dedos apertados em torno da ligadura improvisada de minha tia, mas o tecido depressa ficou tinto de sangue. Tia Ester foi a correr buscar água limpa, enquanto eu rasgava tiras da minha camisa para substituir as ligaduras. Meu tio chegou com Farid. Traziam extractos de consolda, bagas de loureiro, gerânio, goma e argila, goma arábica e água sulfurosa. Mas apesar de todas estas substâncias adstringentes, o sangue não coagulava.

É esta maldita barba!, resmungou meu tio. Não consigo chegar à ferida. O Doutor Montesinhos vai ter de te cortar a barba, disse ele para o ferido. Diego, que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir isto, deu-nos um empurrão. Não o permitirei!, gritou em hebraico. Tenho de ter barba. É proibido...» In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

 Cortesia de QuetzalE/JDACT

JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimentos,

segunda-feira, 15 de maio de 2023

O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin. «.Nos anos que se seguiram o rei procurou obstinadamente obter o original de Les Bergers d'Arcadie, de Poussin. Quando finalmente conseguiu, guardou o quadro em seus apartamentos privados, em Versalhes»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mistério. A Intriga

«(…) Como talvez fosse de se esperar, após a exibição do filme recebemos um dilúvio de cartas, elogiosas ou excêntricas. Algumas ofereciam  intrigantes sugestões. Uma delas, que o autor não desejava ver publicada, parecia merecer especial atenção. O missivista era um padre anglicano aposentado que parecia ser um curioso e provocador non sequitur. Escreveu com certeza e autoridade categóricas, com asserções claras e objectivas, sem titubeios, e com aparente descaso por acreditarmos ou não no que dizia. O tesouro, declarou sem escândalo, não envolvia ouro ou pedras preciosas. Era, ao contrário, uma prova irrefutável de que a crucificação havia sido uma fraude e que Jesus vivera até 45 d.C.

Isso soou, evidentemente, absurdo. O que seria, mesmo para um ateu convicto, uma  prova irrefutável da sobrevivência de Cristo à crucificação? Éramos incapazes de imaginar algo crível que pudesse constituir não somente prova, mas, além disso, fosse irrefutável. Ao mesmo tempo, a abrupta extravagância da afirmação pedia esclarecimentos.

Como o autor da carta havia fornecido endereço para retorno, na primeira oportunidade fomos vê-lo para tentar uma entrevista. Ele foi muito mais reticente no contacto pessoal. Aparentou arrependimento por nos haver escrito. Recusou-se a desenvolver sua referência à prova irrefutável e só ofereceu um fragmento adicional de informação. A prova, ou sua existência, havia sido revelada a ele por outro clérigo anglicano, Alfred Leslie Lilley.

Lilley, que morreu em 1940, havia publicado muito e não era desconhecido. Durante a maior parte de sua vida, mantivera contatos com  o Movimento Modernista Católico, baseado principalmente em Saint Sulpice, em Paris, e conhecia Emile Hoffet.

A trilha tornou-se circular, mas a conexão entre Lilley e Hoffet nos impedia de rejeitar sumariamente as afirmações do nosso missivista. Evidências similares de um segredo monumental haviam surgido durante nossa pesquisa sobre a vida de Nicolas Poussin, o grande pintor do século XVII, cujo nome reaparecia ao longo da história de Saunière. Em 1656, Poussin, que vivia em Roma, teria recebido uma visita do abade Louis Fouquet, irmão de Nicolas Fouquet, superintendente de finanças de Luís XIV da França. De Roma, o abade despachara uma carta a seu irmão, descrevendo sua visita a Poussin. Parte desta carta merece menção. Nós discutimos certas coisas que devo sem óbice ser capaz de explicar-lhe em detalhes,  coisas que lhe darão, através do Senhor Poussin, vantagens que mesmo reis teriam dificuldades em obter e que, segundo ele, é possível que ninguém mais venha a redescobrir nos próximos séculos. São coisas tão difíceis de descobrir que nada sobre a Terra, hoje, pode significar melhor ou igual fortuna.

Nenhum historiador ou biógrafo de Poussin ou Fouquet explica esta carta, que se refere claramente a um assunto misterioso de imensa importância. Logo depois de recebê-la, Nicolas Fouquet foi detido e encarcerado por toda a vida. Segundo alguns relatos, foi mantido incomunicável,  alguns historiadores o vêem como o provável Homem da Máscara de Ferro. Toda sua correspondência foi confiscada por Luís XIV, que a  inspecionou pessoalmente. Nos anos que se seguiram o rei procurou obstinadamente obter o original de Les Bergers d'Arcadie, de Poussin. Quando finalmente conseguiu, guardou o quadro em seus apartamentos privados, em Versalhes.

Embora de grande qualidade artística, o quadro é aparentemente ingénuo. Três pastores e uma pastora, em primeiro plano, estão reunidos em volta de uma grande e antiga tumba, contemplando a inscrição na pedra envelhecida: ET IN ARCADlA EGO. No fundo vislumbra-se uma paisagem montanhosa, irregular, do tipo geralmente associado com Poussin. Segundo Anthony Blunt e outros especialistas em Poussin, essa paisagem é totalmente mística, produto da imaginação do pintor. Entretanto, no início dos anos 70, uma tumba real foi localizada, idêntica àquela do quadro,  idêntica em cenário, dimensões, proporções, forma, vegetação e até mesmo» In Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, Editora Nova Fronteira, 2015, ISBN 978-852-090-474-9.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Conhecimento,

domingo, 14 de maio de 2023

O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin. «Não houve qualquer especulação sobre a existência de um segredo explosivo ou de chantagem em altas esferas. Vale mencionar que o filme não citava o nome de Emile Hoffet, o jovem seminarista…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mistério. Os Possíveis Tesouros

«(…) Mais de três séculos depois, em 410 d.C., Roma foi por sua vez saqueada. Invasores visigodos, liderados por Alaric, o Grande, pilharam toda a riqueza da Cidade Eterna. Segundo o historiador Procopius, Alaric escapou  com os tesouros de Salomão, rei dos hebreus, maravilhas aos olhos, pois eram em sua maioria enfeitados de esmeraldas e haviam  sido roubados de Jerusalém  pelos romanos. Um tesouro poderia então ser a fonte da inexplicável fortuna de Saunière. O padre poderia ter descoberto um dos vários tesouros, ou um único que mudara de mãos repetidamente através dos séculos, passando talvez do Templo de Jerusalém aos romanos, depois aos visigodos e finalmente aos cátaros e/ou  aos templários.

Estaria explicado o facto de o tesouro pertencer a Dagobert II e a Sion. Até aí nossa história parecia ser essencialmente uma história de tesouros. Como tal - mesmo envolvendo o Templo de Jerusalém, seria de relevância limitada. Pessoas estão constantemente descobrindo tesouros de um tipo ou de outro. São, com frequência, descobertas excitantes, dramáticas e misteriosas, e muitas delas lançam  importantes luzes sobre o passado. Poucas, no entanto, exercem  alguma influência directa, de ordem política ou não, sobre o presente,  a menos, é claro, que o tesouro em questão inclua um segredo de algum tipo, possivelmente explosivo.  Nós não eliminamos a possibilidade de Saunière haver descoberto um tesouro. Ao mesmo tempo, parecia claro que, além de qualquer outra coisa, ele descobrira também um segredo histórico de imensa importância no seu tempo, e talvez no nosso. Dinheiro, ouro ou jóias  não explicariam, por si mesmos, muitas facetas de sua história. Não levariam  à sua introdução no círculo de Hoffet, por exemplo, à sua associação com Debussy ou à sua relação com Emma Calvé. Não explicariam o imenso interesse da Igreja  no assunto, a impunidade com a qual Saunière desafiara o bispo ou sua subsequente exoneração pelo Vaticano, que pareceu mostrar uma preocupação urgente com o caso. Não explicariam a recusa de um padre em ministrar a extrema-unção a um moribundo, ou a visita de um arquiduque de Habsburgo a uma longínqua cidadezinha dos Pirinéus, especialmente numa ocasião, em 1916, em que seu país estava em guerra com  a França. Dinheiro, ouro ou jóias tampouco explicariam a poderosa aura de mistificação que envolveu todo o caso, desde os códigos sofisticados até a queima, por Marie Denarnaud, de sua herança em dinheiro. E a própria Marie prometera divulgar um segredo que conferia não só fortuna, mas poder .

Na medida em que as informações se acumulavam, ficávamos cada vez mais convencidos de que a história de Saunière envolvia, além de riqueza, um segredo polémico. Por outras palavras, pareceu-nos que o mistério não estava confinado a um remoto e isolado vilarejo e a um padre do século XIX. Algo irradiava de Rennes-le-Château e produzia ondas, talvez mesmo uma enchente, no mundo exterior.

Teria a fortuna de Saunière vindo não de algo com valor intrinsecamente financeiro, mas do conhecimento de alguma coisa?

Se este era o caso, poderia tal conhecimento ter-se traduzido em bens materiais? Poderia ter sido utilizado em chantagem, por exemplo? Seria a fortuna de Saunière oriunda do pagamento pelo seu silêncio?

Nós soubemos que ele recebera dinheiro de Johann Von Habsburgo.

Ao mesmo tempo, o segredo do padre, qualquer que fosse, parecia ser de natureza mais religiosa que política. Além disso, suas relações com o arquiduque austríaco, segundo todos os relatos, era marcadamente cordial. Por outro lado, no final de sua carreira o Vaticano ameaçava-o com  luvas de veludo e parecia bastante temeroso dele. Estaria Saunière chantageando o Vaticano? Tal chantagem  seria tarefa presunçosa e arriscada para um homem, qualquer que fossem suas precauções. E se ele estivesse sendo ajudado e apoiado por outros, cuja importância os tornasse invioláveis, tais como os Habsburgo? E se o arquiduque Johann fosse apenas um intermediário, e o dinheiro fornecido por ele a Saunière proviesse, na realidade, dos cofres de Roma?

O Mistério. A Intriga

O primeiro de nossos três filmes sobre Saunière e o mistério de Rennes-Ie-Château, O tesouro perdido de Jerusalém,  foi exibido em Fevereiro de 1972. Não usava argumentos polémicos.

Simplesmente, narrava a história básica, tal como foi contada nas páginas anteriores. Não houve qualquer especulação sobre a existência de um segredo explosivo ou de chantagem em altas esferas. Vale mencionar que o filme não citava o nome de Emile Hoffet, o jovem  seminarista parisiense a quem Saunière confidenciou  seus pergaminhos».  In Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, Editora Nova Fronteira, 2015, ISBN 978-852-090-474-9.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Conhecimento, 

sábado, 13 de maio de 2023

O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin. «Outros tesouros existiram. Entre os séculos V e VIII, grande parte da França foi governada pela dinastia merovíngia, que incluía o rei Dagobert II. Rennes-le-Château, no tempo de Dagobert, era um baluarte visigodo…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mistério. Os Possíveis Tesouros

«(…) Nos tempos pré-históricos, por exemplo, a área ao redor de Rennes-Ie-Château era considerada sítio sagrado pelas tribos celtas que viviam por perto. A cidade em si, antes chamada Rhédae, deriva seu nome de uma  dessas tribos. Nos tempos modernos, uma comunidade grande e promissora ocupara a área, importante por suas minas e fontes termais terapêuticas. Os romanos também  consideravam sagrado o local. Mais tarde, pesquisadores ali encontraram  traços de templos pagãos.

Durante o século VI, o pequeno vilarejo pendurado no topo da montanha possuía presumivelmente 30 mil habitantes. Ele parece ter sido, em determinada época, a capital nortista do império dos visigodos, o povo teutónico que varreu a Europa de centro a oeste, saqueou Roma, derrubou o Império Romano e estabeleceu  seu  próprio domínio cavalgando sobre os Pirinéus.

A cidade permaneceu  como sede de uma importante região, ou condado, o Condado de Razès, por mais quinhentos anos. No início do século XIII, uma armada de cavaleiros do norte desceu  pelo Languedoc para exterminar as heresias cátaras e albigenses e requisitar  para si os ricos espólios da região. Durante as atrocidades da chamada Cruzada Albigense, Rennes-le-Château foi  tomada e transferida de mão em mão, como um domínio. Após pouco mais de um século, por volta de 1360, a população local foi dizimada por uma peste; logo depois, Rennes-le-Château foi destruída por bandos catalães.

As lendas de tesouros fantásticos são entremeadas por essas vicissitudes históricas. Os hereges cátaros, por exemplo, eram considerados possuidores de alguma coisa de valor fabuloso e mesmo sagrado que, segundo várias lendas, era o cálice sagrado.

Estas lendas, segundo relatos, teriam  impelido Richard Wagner a peregrinar até Rennes-le-Château antes de compor sua última ópera, Parsifal; durante a ocupação de 1940-1945, época em que Wagner foi muito popular, as tropas alemãs teriam  realizado inúmeras escavações infrutíferas nas vizinhanças. Havia também o tesouro desaparecido dos templários, cujo grão-mestre, Bertrand de Blanchefort, teria organizado misteriosas escavações nas vizinhanças. Segundo todos os relatos, essas escavações eram de natureza marcadamente clandestina, realizadas por contingentes de mineiros alemães trazidos especialmente para este fim. Algum tipo de tesouro de templários, guardado ao redor de Rennes-le-Château, explicaria a referência a Sion no pergaminho descoberto por Saunière.

Outros tesouros existiram. Entre os séculos V e VIII, grande parte da França foi governada pela dinastia  merovíngia, que incluía o rei Dagobert II. Rennes-le-Château, no tempo de Dagobert, era um baluarte visigodo, e o próprio Dagobert foi casado com uma princesa visigoda. A cidade poderia ter constituído algum tipo de tesouro. Há documentos que falam da grande riqueza acumulada por Dagobert e guardada nos arredores de Rennes-le-Château, visando conquistas militares. A descoberta de algum desses depósitos por Saunière explicaria a referência a Dagobert nos códigos.

Os cátaros. Os templários. Dagobert lI. E ainda um tesouro, produto de saques acumulados pelos visigodos durante seus avanços tempestuosos pela Europa. Tal tesouro poderia incluir mais que o resultado de saques convencionais,  possivelmente, artigos de relevância, tanto simbólica quanto literal, para a tradição religiosa ocidental. Em resumo, o legendário tesouro do Templo de Jerusalém poderia estar aí incluído,  o qual, ainda mais que os templários, explicaria a referência a Sinai.

Em 66 d.C., a Palestina ergueu-se em revolta contra o jugo romano. Quatro anos depois, em 70 d. C., Jerusalém foi arrasada pelas legiões do imperador, sob o comando de seu filho Titus. O Templo foi saqueado, e o conteúdo do lugar mais sagrado dos sacros foi levado para Roma. Conforme descrição no arco triunfal de Titus, este conteúdo incluía o imenso candelabro de sete braços, tão sagrado ao judaísmo, e possivelmente a Arca da Aliança». In Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, Editora Nova Fronteira, 2015, ISBN 978-852-090-474-9.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Conhecimento, 

O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin. «Haveria uma explicação banal? Ou envolveria alguma coisa mais excitante? Esta segunda possibilidade deixava entrever um aspecto fascinante do mistério, e nós não podíamos resistir ao impulso de brincar de detectives»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mistério. Rennes-le-Chateau e Berenger Saunière

«(…) No dia 17 de Janeiro de 1917, Saunière, então com 65 anos, sofreu um derrame cerebral. A data de 17 de Janeiro talvez seja suspeita, pois também aparecia na tumba da marquesa de Hautpoul de Blanchefort, a tumba que Saunière havia erradicado. E 17 de Janeiro é também a festa de Saint Sulpice, que reapareceria através de toda a nossa história. Foi no seminário de Saint Sulpice que ele confiou seus pergaminhos ao abade Bieil e a Emile Hoffet. O que torna o derrame de Saunière em 17 de Janeiro mais suspeito é o facto de, cinco dias antes, em 12 de Janeiro, seus paroquianos terem declarado que ele parecia estar gozando de uma saúde invejável para um homem de sua idade. Entretanto, em 12 de Janeiro, segundo um recibo que está connosco, Marie Denarnaud encomendou um caixão para seu mestre.

Quando Saunière estava em seu leito de morte, o padre de uma paróquia vizinha foi chamado para ouvir sua última confissão e administrar a extrema-unção. O padre chegou e confinou-se no quarto do doente. De acordo com testemunhas oculares, ele saiu logo depois, visivelmente chocado. Nas palavras de algumas testemunhas, nunca mais sorriu. Nas palavras de outras, caiu numa depressão profunda que durou vários meses. Se são afirmações exageradas não sabemos, mas o padre, presumivelmente com base na confissão de Saunière, recusou-se a administrar-lhe o último sacramento.

Em 22 de Janeiro Saunière morreu sem o perdão da confissão.

Na manhã seguinte seu corpo foi colocado verticalmente numa poltrona no terraço da Torre Magdala, envolto numa indumentária enfeitadas de pingentes com franjas escarlate. Certas pessoas compadecidas e não identificadas desfilaram, uma a uma, muitas delas arrancando franjas dos pingentes como lembrança do morto.

Nunca houve qualquer explicação para tal cerimónia. Confrontados com ela, residentes actuais de Rennes-Ie-Château ficam tão aturdidos como qualquer outra pessoa.

A leitura do testamento de Saunière foi esperada com grande ansiedade. Para surpresa geral, contudo, ela revelou que não tinha nenhum  tostão. Algum tempo antes de sua morte, aparentemente, transferira sua fortuna para Marie Denarnaud, que compartilhara de sua vida e de seus segredos por 32 anos. Ou talvez a maior parte daquela fortuna tenha estado em seu nome desde o início. Depois da morte de seu mestre, Marie continuou a viver confortavelmente em VilIa Bethania até 1946. Depois da Segunda Guerra Mundial, entretanto, o governo francês recém-instalado estabeleceu uma nova moeda. Como meio de apreender sonegadores de impostos, colaboradores e especuladores do tempo da guerra, os cidadãos franceses eram obrigados a declarar seus rendimentos quando trocavam francos velhos por novos.

Confrontada com a perspectiva de ser obrigada a dar explicações, Marie escolheu a pobreza. Foi vista no jardim da mansão, queimando maços de notas de francos velhos.

Durante os sete anos seguintes, Marie viveu de forma austera, mantendo-se com o dinheiro obtido da venda de ViIla Bethania. Prometeu confiar ao comprador, Noel Corbu, antes de morrer, um segredo que o faria não só rico mas também poderoso.

Em 29 de Janeiro de 1953, entretanto, Marie, como seu mestre antes dela, sofreu um súbito e inesperado derrame cerebral que a deixou prostrada em seu leito, incapaz de falar. Para grande frustração do senhor Corbu, ela morreu logo depois, carregando consigo o segredo.

Os Possíveis Tesouros

Em linhas gerais, esta é a história na forma em que foi publicada na França nos anos 60. Foi a forma sob a qual a descobrimos. E foi para as perguntas levantadas por ela que dirigimos nossa pesquisa, do mesmo modo que outros pesquisadores o fizeram.

A primeira pergunta é bastante óbvia. Qual era a fonte do dinheiro de Saunière? De onde poderia vir tão súbita e enorme fortuna?

Haveria uma explicação banal? Ou envolveria alguma coisa mais excitante? Esta segunda possibilidade deixava entrever um aspecto fascinante do mistério, e nós não podíamos resistir ao impulso de brincar de detectives.

Começamos por considerar as explicações fornecidas por outros pesquisadores. Segundo vários deles, Saunière tinha encontrado, na realidade, alguma espécie de tesouro. Uma conclusão plausível, pois a história da cidade e de seus arredores incluía muitas possíveis fontes de ouro e de jóias escondidos». In Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, Editora Nova Fronteira, 2015, ISBN 978-852-090-474-9.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

 JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Conhecimento,

O Santo Graal e a Linhagem Sagrada. Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin. «Seus paroquianos tampouco foram negligenciados. Saunière lhes presenteava com banquetes sumptuosos e outras generosidades, mantendo assim o estilo de vida de um potentado»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Mistério. Rennes-le-Chateau e Berenger Saunière

«(…) Uma parte dessa inexplicada riqueza foi empregada em excelentes obras públicas, a construção de uma rodovia moderna até a cidade, por exemplo, e a introdução de facilidades para água corrente.

Outras despesas foram mais quixotescas. Uma torre foi levantada, a Torre Magdala, com vista para a montanha. Uma opulenta casa de campo foi construída, chamada Villa Bethania, que Saunière pessoalmente nunca ocupou. E a igreja não só foi decorada de novo, como o foi de um modo muito bizarro. No pórtico, acima da entrada, a seguinte inscrição foi gravada:

TERRIBILlS EST LOCUS ISTE. (Este local é terrível). No interior, logo na entrada, foi erigida uma estátua horrenda, uma representação do demónio Asmodeus, detentor de segredos, guardião de tesouros escondidos e, segundo antiga lenda judaica, construtor do Templo de Salomão. Nas paredes da igreja, placas ostensivamente pintadas representavam as estações da Via Sacra.

Cada uma delas era caracterizada por alguma estranha inconsistência, algum detalhe inexplicável, algum desvio, flagrante ou subtil, da narrativa oficial das Escrituras. Na estação VIII, por exemplo, havia uma criança envolta numa capa escocesa. Na estação XIV, que retrata o corpo de Jesus sendo levado à tumba, aparecia um fundo de céu nocturno, escuro, dominado por uma lua cheia. Como se Saunière estivesse tentando dizer algo. Mas o quê? Que o enterro de Jesus ocorreu após o início da noite, várias horas depois do que diz a Bíblia? Ou que o corpo estaria sendo levado para fora da tumba e não para dentro dela?

Enquanto realizava esses adornos curiosos, Saunière continuou a gastar de maneira extravagante, coleccionando porcelana rara, tecidos preciosos e mármores antigos, criando um jardim e um zoológico e reunindo uma biblioteca magnífica. Pouco antes de sua morte ele estava, supostamente, planeando a construção de uma torre como a de BabeI, forrada de livros, de onde pretendia pregar.

Seus paroquianos tampouco foram negligenciados. Saunière lhes presenteava com banquetes sumptuosos e outras generosidades, mantendo assim o estilo de vida de um potentado. No seu remoto e ao mesmo tempo próximo e inacessível ninho de águia, recebia inúmeros hóspedes ilustres. Um deles, é claro, era Emma Calvé.

Outro era o ministro da Cultura do governo francês. Talvez o mais augusto visitante do desconhecido padre provinciano tenha sido o arquiduque Johann Von Habsburgo, um primo de Franz Josef, imperador da Áustria. Extratos bancários revelaram depois que Saunière e o arquiduque haviam aberto contas no mesmo dia, e que este último havia transferido para a conta do primeiro uma soma substancial.

As autoridades eclesiásticas fizeram, no início, olhos de mercador sobre o assunto. Contudo, quando o superior de Saunière morreu, em Carcassonne, o novo bispo tentou chamar o padre à ordem. Saunière respondeu com uma desobediência inesperada e insolente. Recusou-se a explicar sua riqueza e a aceitar a transferência que o bispo ordenava. Na falta de uma acusação mais substancial, o bispo acusou-o de vender missas ilicitamente, e um tribunal local o suspendeu. Saunière apelou para o Vaticano, que o exonerou e depois o reinvestiu». In Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincolin, O Santo Graal e a Linhagem Sagrada, Editora Nova Fronteira, 2015, ISBN 978-852-090-474-9.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

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sábado, 29 de abril de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «O Basto, quem é? Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos…»

jdact e cortesia de wikipedia

Os Animais Apaixonados

«(…) Estas coisas merecem a sua coroação. Lá adiante há outro vale, um enorme circo rodeado de montanhas, cultivado, fundo, largo. E logo depois, quando o solo volta a ser bravo, de pinheiral e mato, aparece o arco-íris, o arco do céu, aqui tão perto que o viajante cuida que lhe pode chegar com a mão. Nasce em cima da copa dum pinheiro, vai por aí acima e esconde-se por trás da encosta, e em verdade não é um arco, mas sim um quase invisível segmento de círculo franjado de faixas coloridas, assim como uma cortina de tule finíssimo em frente de um rosto. O viajante cansa-se de comparações e faz uma última e definitiva, junta todos os arco-íris da sua vida, verifica que este é o mais perfeito e completo de todos, agradece à chuva e ao Sol, à sua preciosa sorte que o trouxe aqui nesta preciosa hora, e segue viagem. Quando passa debaixo do arco-íris, vê que lhe caem sobre os ombros tintas de várias cores, mas não se importa, felizmente são tintas que não se apagam e ficam como tatuagens vivas.

O viajante está quase a chegar a Cabeceiras de Basto, mas antes fez um desvio para Alvite, só para a ver, da banda de fora, a Casa da Torre, conjunto de porta, capela e torre, barrocas as primeiras, a torre mais antiga, e o mais singular daqui são os altos pináculos das esquinas, equilíbrio magnífico de formas volumétricas, airosa graça de funambulismo arquitectónico. Em Cabeceiras, o viajante é recebido pelas primeiras gotas do que há de vir a ser, não tarda, uma devastadora bátega. Vai ao convento, que é uma enorme construção setecentista onde já nada se encontra do primitivo mosteiro beneditino. Esta região está bem guardada por S. Miguel. Aqui são logo dois, um sobre o pórtico, e outro, de tamanho maior que o natural, vê-se cá de baixo empoleirado no lanternim do zimbório, mirando toda a paisagem, à procura de almas perdidas. S. Miguel deve ter ganho todas as suas batalhas, ou não estariam os demónios, de língua de fora, pategos e humilhados, suportando os órgãos da igreja, como atlas de plástica monstruosa, sem nenhuma grandeza.

Volta o viajante à praça, de repente lembrado de que não vira o Basto, delito que tão pouco se perdoa como não ver o papa em Roma, estando lá. Habituado a praças de monumento ao meio, o viajante concluiu que o Basto foi roubado, ou não é ali a sua Roma. Foi por isso informar-se, e afinal eram só dois passos, a deslado, entre o chafariz e o rio. O Basto, quem é? Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos do que o rústico batalhador de antigas eras. Tem na cabeça uma barretina das invasões francesas, e para não falhar a primeira comparação parece usar umas meias bem puxadinhas por mandado de sua mãe ou avó. Dá vontade de sorrir. O viajante tira-lhe o retrato, e ele apruma-se, olha para a objectiva, quer ficar favorecido, o Basto, com o seu fundo de ramos verdes, como convém a senhor de terras e montanhas, muito mais que o S. Miguel do lanternim, tão distante. O Basto é, por força, uma das mais justificadas estátuas portuguesas, todos lhe querem bem.

O viajante olha o céu, desconfiado. Estão a amontoar-se umas nuvens escuríssimas, netas reforçadas das que fizeram o dilúvio. Pensa no que fará, se fica por ali a beber um cafezinho quente ou se se mete ao caminho, traz na ideia ir à aldeia de Abadim, que fica perto. Como o viajante anda à descoberta do que não sabe, tem de correr seus riscos. Vai portanto a Abadim, e é como se passasse o Rubicão. Não tinha andado um quilómetro desaba uma catarata do céu. Em poucos segundos o espaço ficou branco do contínuo fluxo de água. Uma árvore a vinte metros ficava tão vaga, tão difusa como se estivesse escondida no nevoeiro. Para a estrada, péssima, corriam as cascatas dos montes.

Aí, o viajante temeu. Já se via arrastado pela corrente, de cambulhada com as pedras soltas e as folhas mortas. Atravessou uma pontezinha frágil, e agora vai mais sereno, sobe o monte, o automóvel não dá parte de fraco, e depois de mil voltas aí está Abadim. Não se vê vivalma, toda a gente recolhida, em casa a que em casa está, em abrigos de ocasião os que andam fora. A chuva diminuiu, mas ainda cai com grande violência. O viajante resolve retirar-se, continuar viagem, mais frustrado do que quer confessar. É então que passa uma mulher nova, de guarda-chuva aberto, e o viajante aproveita: Boas tardes. Pode dar-me uma informação? Aqui os gados dos vizinhos ainda vão todos juntos para a serra da Cabreira, ou já não se usa? A mulher há-de estar a perguntar a si própria por que quer o viajante saber tais coisas, mas é simpática, e delicada, se lhe perguntam, responde: É, sim senhor. Do primeiro domingo de Junho até ao dia da Assunção, vai o gado todo para a serra, com os pastores. Ao viajante custam a entender estas transumâncias, mas a mulher explica que na serra da Cabreira há uma pastagem que é de Abadim, sua propriedade mesma, e é para aí que o gado vai aposentar. O viajante lembra-se de Rio de Onor, terras da banda de lá que são nossas, terras da banda de cá que são deles, e mais se lhe enraíza a convicção de quanto é relativo o conceito de propriedade, querendo os homens. Despede-se da mulher, que deseja boa viagem, e quando já vai na estrada, chove quase nada, encontra um pastorzito de quinze anos. Quem é, quem não é: Ando a guardar vacas do meu pai e de uns vizinhos». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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Viagem a Portugal. José Saramago. «E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem o viajante espera mais do que tem»

                                                        

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Os Animais Apaixonados

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Os Animais Apaixonados

«(…) Felgueiras já ficou para trás, e aí adiante é Pombeiro de Ribavizela, um mosteiro arruinado, triste como só os mosteiros em ruínas conseguem ser. São cinco horas da tarde, o dia vai escurecendo, e o viajante cai em grande melancolia. A igreja, por dentro, é húmida e fria, há manchas nas paredes onde a água das chuvas se infiltrou, e as lajes do chão estão, aí e além, cobertas de limo verde, mesmo as da capela-mor. Ouvir aqui missa deve valer uma indulgência geral com efeitos pretéritos e futuros. Mas o assombro do viajante atinge extremos quando a mulher da chave lhe diz que na missa das sete da manhã é que a afluência é grande, vem gente de todos os lugares próximos. Sob a capa fria e húmida da atmosfera, o viajante arrepia-se: que será isto pelos grandes frios e dilúvios do Inverno? Quando vai a sair, a mulher aponta-lhe as arquetas tumulares que ali estão, de um lado e outro da porta. Um é o Velho, o outro é o Novo», diz. O viajante vai certificar-se. Os túmulos são do século XIII. Um deles representa Gomes de Pombeiro na tampa e deve conter-lhe os ossos. Esse é o Velho. Porém, o Novo, quem será? Não o sabe dizer a mulher da chave. Então, o viajante aceita sem discutir o que a sua própria imaginação lhe propõe: o outro túmulo é também de Gomes de Pombeiro, feito quando, mancebo e vivíssimo rapaz, recebeu grave ferimento em batalha, de que felizmente escapou. Fez-se o túmulo para escarmento e Gomes de Pombeiro esperou pela velhice para ir descansar ao lado da sua própria imagem quando moço. É um imaginado tão bom como qualquer outro, mas o viajante não fez dele confidência à mulher da chave, pois ela merece outro respeito que este brincar com os mortos, tanto mais que não terá túmulo de pedra nem estátua jazente, e se a tivesse haveria de merecer a sua dupla imagem, a Nova que foi, e a Velha que é de amargoso luto e face sucumbida. Fecha a mulher a igreja com a grande chave e retira-se para as ruínas do convento, onde mora. O viajante olha a altíssima fachada, a grande rosácea, compraz-se alguns minutos no híbrido mas formoso portal. A tarde morre mesmo, já não há quem segure este dia.

Quando o viajante entra em Guimarães, os candeeiros estão acesos. Dormirá numa água-furtada com vista para a Praça do Toural. Sonha com o Velho e o Novo, vê-os a caminhar pela estrada que vai de Pombeiro a Telões, ouve o duro pisar dos seus pés de pedra, e está com eles diante do altar das almas, olhando todos os três a bela condenada, aquecendo enfim o corpo gelado naquela fogueirinha que nem S. Miguel pode apagar.

O viajante acorda já de manhã clara. Não gosta do sonho que teve, não é nenhum dom João para assim lhe aparecerem convidados de pedra, e decide cortar cerce nas imaginações para não vir a perder o sono. Toma um café que mais eficazmente cobrirá as suas negruras interiores, e sai à rua a farejar os ares. Tempo instável, sol apenas por metade, mas luminoso quando aparece. Ao viajante não agrada ficar na cidade. Logo tornará a ela, mas neste momento o que lhe apetece é voltar aos grandes horizontes. Por isso decide seguir para as terras de Basto, nome pelos vistos de muito requestamento, pois só Basto há três, duas são as Cabeceiras, e ainda temos Mondim e Celorico, Canedo e Refojos, tudo de Basto, com muita honra. O viajante viu estes casos pelo mapa, não lhe impõe o seu roteiro que por todos aqueles lugares passe, mas, tendo observado a abundância, mal parecia que não registasse. Poucos quilómetros adiante de Guimarães é Arões. Lástima tem o viajante de que uma linha de palavras não seja uma corrente de imagens, de luzes, de sons, de que entre elas não circule o vento, que sobre elas não chova, e de que, por exemplo, seja impossível esperar que nasça uma flor dentro do o da palavra flor. Vem isto tão a propósito de Arões como de qualquer outro lugar, mas como a paisagem é esta beleza, como a igreja matriz é este românico, tem o viajante este desabafo. Mesmo agora sentiu o cheiro das folhas molhadas e não sabe onde está a palavra que devia exprimir esse cheiro, essa folha e essa água. Uma só palavra para dizer tudo isto, já que muitas não o conseguem.

E este vale, como explicar o que ele é? A estrada vai andando às curvas, por entre montes e montanhas, e é a costumada formosura, nem o viajante espera mais do que tem. Então, aqui, num ponto entre Fafe e Cabeceiras de Basto, numa volta da estrada, o viajante tem de parar, e na página mais clara da sua memória vai pôr a grande extensão que os seus olhos vêem, os planos múltiplos, as cortinas das árvores, a atmosfera húmida e luminosa, a neblina que o sol levanta do chão e perto do chão se dissipa, e outra vez árvores, montes que vão baixando e depois tornam a erguer-se, ao fundo, sob um grande céu de nuvens. O viajante está cada vez mais crente de que a felicidade existe». ». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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quinta-feira, 27 de abril de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «O vale onde foi construído Telões é aberto, amplo, passa aqui um ribeirito qualquer, e quando o viajante vai entrar na igreja são horas de bater o relógio»

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A Cava do Lobo Manso

«(…) O viajante deixa ao lado Marco de Canaveses e vai à procura de Tabuado. Prevê que será outra busca demorada, mas enganou-se. De súbito, aparece-lhe pela direita, como se o segurasse pela manga do casaco, a igreja matriz do século XII, de um românico simples na arquitectura, mas preciosamente decorado de motivos de plantas e animais. Dentro e fora, a igreja justificaria um dia inteiro de apreciação, e o viajante sente grande ciúme de quem esse tempo já aqui gastou ou possa vir a gastar. O que resta dos frescos da capela-mor, obra quatrocentista, retém os olhos, e o viajante fica a pensar nos desvios de gosto que terão feito ocultar, em passados tempos, a beleza rústica destas pinturas, quem sabe se por isso mesmo poupadas a maiores estragos. Quando o viajante sai, conversa um pouco com um homem e uma mulher que ali estão. A igreja, para eles, é só o que sempre ali viram desde que nasceram, mas concordam com o viajante, que sim senhor é bonita.

Entre Marco de Canaveses e Baião, tem o viajante ocasião e tempo para dar a mão à palmatória. Disse ele, quando do Marão falou, que toda a serra era de arredondados montes, com amenas florestas, um vergel. Não retira nada do que disse, que assim é o Marão entre Vila Real e Amarante, mas aqui, Marão é isto também, e contudo não pode haver orografia mais diferente, áspera e dura, com as agudas pedras que mais a norte faltam. Tem esta casa grande, afinal, muitas moradas, e a que o viajante agora vai percorrendo é decerto a casa dos ventos e das cabras monteses, desabitada casa se diga, porque hoje nem uma aragem sopra, e as cabras extinguiram-se há séculos.

Talvez por ser a paisagem assim, o viajante não se sente atraído pelos lugares habitados. Não se detém em Baião, continua para norte, a par do rio Ovil, e num lugar chamado Queimada vê sinal de que há ali perto dólmenes. Sabe o viajante que não faltam no País construções destas, e, se agora não as fosse ver, não perderia ele nem perderia a viagem. Mas já foi dito que, na disposição em que vai, prefere os ermos, e este íngreme caminho que arranca pelo monte acima promete muito silêncio e solidão. Ao princípio há pinhal, sinais de trabalho recente, mas o mato começa logo adiante. O caminho é uma tosca e arruinada carreteira, com profundos sulcos cavados pelas torrentes vindas do alto, e o viajante teme um acidente, uma avaria. Contudo, persevera, e tem a sua recompensa quando a ascensão termina num quase raso planalto. Os dólmenes não estão à vista. Agora é preciso avançar pelo mato dentro, há uns delgados carris que se interrompem, maneiras de negaça que o deixam perplexo. É um quebra-cabeças malicioso, traçado em monte deserto para obscuros fins. O viajante avança pelo mato, tem de encontrar a mina de ouro, a fonte milagrosa, e quando já lança pragas e imprecações (bem está que o faça neste cenário inquietante) vê na sua frente a mamoa, o primeiro dólmen meio soterrado, com o chapéu redondo assente sobre esteios de que só se vêem as pontas, é como uma fortificação abandonada. O viajante dá a volta, aí está o corredor, e lá dentro a câmara espaçosa, mais alto todo o conjunto do que pelo lado de fora parecia, tanto que o viajante nem precisa curvar-se, e de baixo nada tem. Não há limites para o silêncio. Debaixo destas pedras, o viajante retira-se do mundo. Vai ali à Pré-História e volta já, cinco mil anos lá para trás, que homens terão levantado à força de braço esta pesadíssima laje, desbastada e aperfeiçoada como uma calote, e que falas se falaram debaixo dela, que mortos aqui foram deitados. O viajante senta-se no chão arenoso, colhe entre dois dedos um tenro caule que nasceu junto de um esteio, e, curvando a cabeça, ouve enfim o seu próprio coração.

Os Animais Apaixonados

Tornou o viajante a Amarante, pela estrada que segue ao longo do rio Fornelo, e desta vez não pára. Simples cuidado de prudência, que Amarante tem artes de mulher e seria bem capaz de cativar por muitos dias o incauto. Poucos quilómetros andados, é Telões. Há aqui um mosteiro com uma airosa galilé, ainda que restaurada. Quando o viajante sai das estradas principais cobra sempre grandes compensações. O vale onde foi construído Telões é aberto, amplo, passa aqui um ribeirito qualquer, e quando o viajante vai entrar na igreja são horas de bater o relógio. E ele de carrilhão e amplificadores, umas buzinas orientadas aos quatro pontos cardeais que atroam a gravação dos bronzes por todos os espaços infra e supra. O viajante teria preferido o dlim-dlão natural dos sinos a tais electrónicas, mas não será por sua causa que o progresso vai ficar fora destes vales. Vivam pois Telões e o seu carrilhão do último modelo. Lá dentro, na igreja, há um painel das almas que atrai o viajante. Tem S. Miguel da santificada lança, umas labaredas de cor natural, mas os olhos vão cobiçosos para aquela formosíssima condenada, de peitos firmes e apetitosos, que arde voluptuosamente entre as chamas. Não está bem que a igreja castigue as tentações da carne e ao mesmo tempo as provoque desta maneira em Telões. O viajante saiu do templo em pecado mortal». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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Viagem a Portugal. José Saramago. «Quando o viajante regressa à luz do Sol, é como se tivesse caído doutro planeta. E tão abalado vai que chega a Amarante sem dar por isso, mas aí acorda e indigna-se diante da estátua de Pascoaes…»

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A Cava do Lobo Manso

«(…) Pena leva o viajante de não ter puxado uma cadeira para junto da mesa a que o sacristão trabalhava nas sua eclesiais escriturações e ficar ali na boa conversa, a saber de vidas e de gostos musicais, perde-se muito não falando com as pessoas. Porém, já fora de Amarante, trata-se de descobrir S. João de Gatão, onde é, onde não é, não faltam as indicações, estes homens que fazem a vindima empoleirados em altas escadas: Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à esquerda, é logo lá. Virar, vira o viajante, ou julga tê-lo feito, porque adiante outros homens dirão: Chegando aí adiante, onde há umas árvores grandes, vire à direita, é logo lá. Enfim, chegou o viajante ao seu procurado destino. A casa é igual a muitas que por estes lados se encontram: um pequeno solar, de corpo central e duas alas, casa às vezes nobre, outras vezes de burguês enobrecido, rurais ambos, dependentes da terra e da renda, e por isso duros no trato negocial. Não será esse o caso. Esta casa é de poeta. Viveu aqui Teixeira de Pascoaes, debaixo daquelas telhas morreu.

O viajante pisa o caminho amolecido pelas chuvas, retarda o momento e vai ali ao lado, a uma adega, certificar-se do que já adivinhou: Se é ali a casa do poeta. Respondem-lhe que sim, com simplicidade, o informador serve outras obrigações, e ainda por cima está habituado à vizinhança, nenhum homem é grande para a adega que lhe estiver perto. O viajante guarda na memória a cautela que teve de usar para passar sobre uns canos de borracha ou de plástico que por ali havia estendidos, e o cheiro da uva pisada, uva de Pascoaes, mosto poético, vai acompanhá-lo durante muitos quilómetros, até se lhe dissipar a embriaguez. Melhor se diria vertigem.

Há um lanço de escadas simples, vasos de flores, beirais marcados de musgo e líquenes. É óbvio que o viajante está intimidado. Bateu à porta, espera que venham abrir: Falha a viagem se não entro. É que esta casa não é museu, não tem horas de abrir e fechar, mas sem dúvida há um deus dos viajantes bem-intencionados, é ele que diz: Entre, e quando se apresenta não é deus nenhum, mas sim o pintor João Teixeira de Vasconcelos, sobrinho de Teixeira de Pascoaes, que abre todas as portas de uma casa toda ela preciosa romã e vai acompanhando o viajante até ao fundo do corredor. O viajante está no limiar da parte da casa onde Teixeira de Pascoaes passou os últimos anos da vida. Olha e mal se atreve a entrar. Casas, lugares onde vive ou viveu gente, tem visto muitas. Mas não a cava de um lobo manso. São três salas dispostas em fiada, o sítio de dormir e trabalhar, a biblioteca, chaminé ao fundo, dizer isto é o mesmo que nada dizer, porque as palavras não podem exprimir a indefinível cor de barro que tudo cobre ou de que tudo é feito, a não ser que a origem da cor ambiente seja a luz da manhã, assim como não dirão que súbita comoção é esta que enche de lágrimas os olhos do viajante. Nestas salas andou um lobo, isto não é casa de gente avulsa e paisana. E o viajante tem de disfarçar e enxugar os olhos sentimentais, assim lhes chamaria quem cá não veio, mas entenderá melhor se se lembrar de que Marão é Casa Grande, e entrar aqui é o mesmo que estar no mais alto monte da serra, recebendo todo o vento na cara e olhando de cima os vales profundos e negros. Teixeira de Pascoaes não é dos mais preferidos poetas do viajante, mas o que comove é esta casa de homem, este leito pequeno como o de S. Francisco em Assis, esta rusticidade de ermitério, a lata das bolachas para a fome das horas mortas, a tosca mesa dos versos. Todos deixamos no mundo o que no mundo criámos. Teixeira de Pascoaes teria merecido levar consigo esta outra criação sua: a casa em que viveu.

Há mais que andar. Quando o viajante regressa à luz do Sol, é como se tivesse caído doutro planeta. E tão abalado vai que chega a Amarante sem dar por isso, mas aí acorda e indigna-se diante da estátua de Pascoaes que lá está, obra peca e pouca. Torna a passar a ponte depois de ter deitado um olhar de despedida à trecentista Nossa Senhora da Piedade que está no nicho, e segue por baixo das grandes frondes da alameda, a tomar a estrada que o levará a Marco de Canaveses. Suave caminho é este ao longo do Tâmega, formoso e brando para éclogas. Em suas reflexões, o viajante vem a concluir ser o lugar bom para pastores arcádicos, pelo menos enquanto não desse a morrinha nas ovelhas e as frieiras nos dedos do zagal». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

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Viagem a Portugal. José Saramago. «Já nada surpreende o viajante, porém quer averiguar por completo até onde vai a subversão, e então pergunta: Dá licença que passe uma vista de olhos? O sacristão levanta a cabeça, olha afavelmente e responde: Ora essa»

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A Cava do Lobo Manso

«(…) Quando o viajante acordou, ainda mal aclarava, percebeu que não fora só o marulhar da corrente do rio que o embalara. Chovia, as goteiras despejavam cataratas sobre os ladrilhos da varanda. Acostumado já a viajar com todo o tempo, encolheu o viajante os ombros debaixo dos cobertores e tornou a adormecer, sem cuidados. Foi o bem que fez. Ao levantar-se, já manhã franca, o céu está descoberto, o Sol anda a fazer arco-íris pequeninos nas gotas penduradas das folhas. É uma festa. O viajante arrepia-se só de pensar no calor que já estaria se fosse Verão. A primeira ida é ao Museu Albano Sardoeira, onde há algumas peças arqueológicas de interesse, umas tábuas quinhentistas que merecem atenção, mas, acima disso e do resto, estão os Amadeus, soberbas telas do período de 1909 a 1918, com um saber de oficina que as mostra no esplendor da última pincelada, como se o pintor, acabada a obra, tivesse saído agora mesmo para a sua casa de Manhufe onde a vindima o estava esperando. Tem mais o museu uns Elóis, uns Dacostas, uns Cargaleiros, mas é o Amadeo de Souza-Cardoso que o viajante devagar contempla, aquela prodigiosa matéria, suculenta pintura que se desforra do exotismo orientalista e medievalizante dos desenhos que, em reprodução reduzida, o viajante veio a comprar, humildemente.

Está visto que a paciência é uma grande virtude. Diga-o S. Gonçalo que no século XIII construiu a ponte antes desta e teve de esperar cinco séculos para lhe arranjarem lugar para um túmulo em que não está, mas onde não faltam as oferendas. O viajante diz isto com ares de gracejo, maneira conhecida de compensar o susto que apanhou quando, ao entrar numa capela de tecto baixíssimo, deu com a grande estátua deitada, colorida como de pessoa viva. Estava o local meio às escuras e o susto foi de estalo. Estão polidos os pés do milagroso santo, de afagos que lhe fazem e de beijos que neles depõem as bocas que vêm implorar mercês. É de acreditar que os pedidos sejam satisfeitos, pois não faltam as oferendas, pernas, braços e cabeças de cera, equilibrados sobre o túmulo, é certo que ocos, os tempos vão maus para a cera maciça, e esta bem se vê que é adulterada. Salva-se a fé que é muita neste S. Gonçalo de Amarante que tem reputação de casar as velhas com a mesma facilidade com que Santo António, por condão das raparigas, passou à história.

O viajante percorre a igreja e o claustro do que foi o convento, e, em seu coração, põe-se a amar Amarante, sabendo já que é um amor para sempre. Nem o afligem os três maus reis portugueses que na varanda estão, e o outro, espanhol, pior que todos: o dom João III, o dom Sebastião e o dom Henrique cardeal, mais o primeiro dos Filipes. Amarante é tão graciosa cidade que se lhe perdoa o perverso gosto histórico. Enfim, estão lá estes reis porque foi durante os reinados deles que a construção se fez. Razão suficiente.

Torna o viajante à igreja mete por uma passagem lateral que vai dar à sacristia. Donde vem esta música rock and roll, é que não adivinha. Talvez da praça, talvez um vizinho amador. Em cidades de província, o menor ruído chega a toda a parte. O viajante dá mais dois passos e espreita. Sentado a uma secretária, um homem, escriturário ou sacristão, isso não veio a saber-se, faz lançamentos num grande livro e tem ao lado um pequeno transístor que é o responsável pela música, ali, enchendo a sacristia venerável de sons maliciosos e convulsivos. Já nada surpreende o viajante, porém quer averiguar por completo até onde vai a subversão, e então pergunta: Dá licença que passe uma vista de olhos? O sacristão levanta a cabeça, olha afavelmente e responde: Ora essa. Veja à vontade. E enquanto o viajante dá a volta à sacristia, examina os tectos pintados, as imagens de boa nota artística, um S. Gonçalo patusco e bem-disposto, vai o transístor chegando ao fim do rock e começa outro, até parece invenção, mas não é, são verdades inteiras, nem aparadas, nem acrescentadas. Agradece o viajante, o sacristão continua a escrever, ninguém lhes perguntou, mas ambos estão de acordo em que está um lindo dia, e a música toca. Talvez daqui a bocado dêem uma valsa». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

Cortesia de PEditora/JDACT

 

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terça-feira, 25 de abril de 2023

A Doçura da Chuva. Deborah Smith. «Mas dói!, soluçou Lily. A sua bata barata, às flores, estava ensopada em fluidos e amarrotada à volta das ancas. Acho que é m-mesmo assim, disse-lhe Mac. T-talvez d-devas levantar-te»

Cortesia de wikipedia e jdact

Kara

O meu nascimento, 1974

«No mundo inocente da minha mãe, baseado nos desenhos animados das manhãs de sábado, os bebés, com faixas a dizerem o respectivo nome, flutuavam por cima de jardins coloridos ao serem entregues por uma cegonha celestial. Lily Akens não tinha motivos para duvidar da obstetrícia dos programas de televisão. O meu pai adolescente, Mac Tolbert, sabia mais do que ela, pois muitas vezes auxiliava no parto dos bezerros e dos potros em River Bluff, a quinta da sua família no Norte da Florida, mas não sabia como explicar o processo à minha mãe. Além disso, não tinha a certeza se os bebés humanos nasciam da mesma maneira que os animais.

Só podia partir do princípio de que o bebé saía pelo mesmo sítio por onde tinha entrado. Lily , L-Lily , não chchores, gaguejou Mac, ajoelhando-se a seu lado, sem saber o que fazer, na escuridão pegajosa, subtropical, enxotando os mosquitos que esvoaçavam no clarão trémulo da sua lanterna. Os pinheiros altos baloiçavam por cima deles sob a brisa do pântano. As rãs coaxavam no fundo dos ribeiros. Algures, fez-se ouvir um aligátor. As florestas escuras da Florida interior respiram e falam durante a noite, arrancando memórias misteriosas ao leito de calcário poroso. Embora longe de ambos os oceanos, o ar traz um leve vestígio de água salgada.

Mas dói!, soluçou Lily. A sua bata barata, às flores, estava ensopada em fluidos e amarrotada à volta das ancas. Acho que é m-mesmo assim, disse-lhe Mac. T-talvez d-devas levantar-te. C-como uma égua. Acho que não consigo! Oh, Mac! Dói tanto! Mac! Há qualquer coisa a querer sair de mim lá por baixo! A tremer, Mac apontou a lanterna para o meio das pernas dela. Os cavalos e os bezerros quando nasciam apresentavam em primeiro lugar as patas da frente, como se estivessem a mergulhar no mundo. Mac olhou com atenção mas não viu mãos de bebé, apenas o crânio ensanguentado de uma cabeça minúscula. A visão aterrorizou-o, mas escondeu as emoções. Tinha de ser forte, por Lily . Eles eram diferentes dos outros adolescentes; tomavam conta um do outro desde a infância. É só o b-bebé.

Parecia mais confiante do que na verdade se sentia. Sabia como dar a volta a um bezerro ou a um potro atravessado, mas não se conseguia imaginar a enfiar a mão enorme dentro de Lily. Mac! Está a mexer-se! Segurou-lhe nas mãos enquanto ela se sentava. Lily baloiçou-se para trás e para a frente. Os calcanhares dos ténis dela rasgaram sulcos no solo macio e húmido. Lily começou a gritar. Depois do que lhe pareceu uma eternidade, calou-se e deixou-se cair contra Mac. O bebé caiu, gemeu ela. Porque não está a flutuar? Deve ter alguma coisa errada. Oh, Mac... O meu pai apontou de novo a lanterna para o meio das coxas dela. Ele e a minha mãe ficaram a olhar, horrorizados. Nenhum deles tinha alguma vez visto uma criança recém-nascida. Eu não era uma bonequinha engraçada ou um querubim sorridente. Estava quase roxa. Tinha a cabeça amolgada. Um muco sanguinolento colava-me ao crânio uma madeixa fina de cabelo ruivo. Abri a boca e engoli uma grande golfada de ar. Para eles, o meu esforço parecia o arquejar de um moribundo.

Debruçaram-se sobre mim e choraram. Depois a luz de várias lanternas cortou a escuridão da floresta. O irmão mais velho de Mac, Glen, foi quem os encontrou primeiro. Que raio é que vocês fizeram?, perguntou. Mac e Lily soluçaram. Antes que pudessem segurar-me nos braços uma única vez, antes de se aperceberem de que eu estava viva e era normal, fui-lhes retirada. Só depois de adulta viria a saber da existência de Mac e Lily. Só depois de adulta viria a saber que eles me tinham feito vir ao mundo nas florestas da Florida. Só depois de adulta saberia que eles me desejavam. Era já adulta e órfã quando voltei a nascer na vida dos meus pais». In Deborah Smith,  A Doçura da Chuva, Porto Editora, 2007, 2009, ISBN 978-972-004-189-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

JDACT, Deborah Smith, Literatura,

segunda-feira, 24 de abril de 2023

A Cruz de Esmeraldas. Cristina Torrão. «Enquanto sacudia a areia da túnica, Johann acrescentou: O próprio pai a vendeu à dona da espelunca, apenas a uma semana da nossa chegada ao Porto»

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«(…) Konrad levantou-se de um salto, pousando os olhos esbugalhados no irmão: Ainda és mais pacóvio do que o que eu pensei, pivete! Que queres dizer com isso?, replicou Johann, enquanto se levantava. Não era de esperar uma coisa dessas? Uma rameira sabe muito bem o que tem de fazer para... Não a chames assim!, gritou-lhe o mais novo. Há três meses que ela é a minha noiva. Não me digas! E a criança também é tua? Ignorando o ferimento do irmão, Johann lançou-se a ele, que, apanhado desprevenido, caiu ao chão. Os dois rolaram sobre a areia, mas, embora Konrad não estivesse nas melhores condições, depressa forçou o outro a deitar-se de costas. Sentou-se em cima dele, como se montasse, e segurou-lhe os braços. O moço tentava libertar-se, berrando: Larga-me! Só quando prometeres respeitar o teu irmão mais velho. Onde já se viu, abalroar-me assim, sem mais nem menos? Sem mais nem menos? Não perdes uma oportunidade de insultar a Ausenda. O que tens contra a rapariga? Toda a gente sabe que ela não se meteu com mais ninguém, desde que deixou o maldito bordel. Konrad caiu em si. Ainda há poucas horas ele confirmara esta afirmação. Largou o rapaz e levantou-se, sem uma palavra. Enquanto sacudia a areia da túnica, Johann acrescentou: O próprio pai a vendeu à dona da espelunca, apenas a uma semana da nossa chegada ao Porto. Pelo jeito dela, até pode ser verdade. Mas não te deixes levar pela pena que ela... Não se trata de ter pena dela. Mesmo que não estivesse prenhe, eu ficaria aqui e casaria com ela. Santo Deus, tu és de origem nobre! Quando é que vais meter nessa tua cabeça que não podes casar com uma moça qualquer? Só podes casar com uma fidalga. O que aliás não te impede de assumires a paternidade da criança da Ausenda e sustentá-la... nem tão-pouco de teres a rapariga sempre que te apetecer...

Acaba com isso! Estou cheio de te ouvir falar dos nossos antepassados com pergaminhos. Do que é que isso me adianta? Sou tão miserável quanto a Ausenda. Recuperaremos a nossa honra na Terra Santa! Para te ser sincero, deixei de acreditar nisso. Ora essa! Porquê? Pensas que lá vai ser muito diferente daqui? Continuaremos a batalhar em cercos destes, meros instrumentos nas mãos dos poderosos! E só com muita sorte sobreviveremos à trapalhada. A nossa própria vida é a nossa única e verdadeira riqueza! Konrad respirou fundo e replicou: Eu não desistirei! Regressarei a Colónia como cavaleiro honrado e rico e vingar-me-ei de todos aqueles que nos viraram as costas!

Alimentar desejos de vingança não está de acordo com a nossa religião. Jesus Cristo era avesso a ideias dessas. Disse que nos amássemos uns aos... Não me venhas com o teu latim de convento! Como queiras, suspirou Johann e acrescentou: Faz o que achas que tens de fazer. Mas sem mim». In Cristina Torrão, A Cruz de Esmeraldas, Edição Ésquilo, 2009, ISBN 978-989-809-261-8.

 

Cortesia de Ésquilo/JDACT

 

JDACT, Cristina Torrão, História, Cultura e Conhecimento, Lisboa,