sexta-feira, 12 de julho de 2024

Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Levanto‑me. Vou comprar qualquer coisa e depois venho olhando de frente, digo, deixando António a puxar de um cigarro. Caminho até ao bar. Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão, os ombros e a cabeça recortados na superfície polida do grande espelho que corre a todo o comprimento da parede. Procuro nos retalhos de imagens, entre prateleiras de garrafas, reconstituir o cenário atrás de mim, enquanto pago os fósforos. No embaciamento daqueles estilhaços de prata velha a custo reconheço António sentado à mesa e, três filas além, a mancha de um vestido claro, uma vaga sombra de mulher que se ergueu e se afasta. Volto‑me para regressar. E este voltar‑me... Como o virar de página do tempo! Trinta anos transcorridos!... Aquele meu voltar‑me para não encontrar ninguém! Apenas uma mesa vazia. No pires, junto à chávena, um guardanapo de papel amarrotado, uma ponta de cigarro esmagada... Perdi para sempre a ocasião de alguma vez me encontrar com ela? De saber quem era?... Os anos desataram a transformar em húmus e a diluir em éter, numa vertigem, aqueles que foram protagonistas ou meras testemunhas desses insólitos acontecimentos. Caíram na voragem novos e velhos: Silva Lisboa, Albertina, outros... Os que ficaram, ainda quando aqui e ali roçaram por eles vestígios vivos desse passado, fecharam‑se numa cómoda ausência de curiosidade ou uma estudada distanciação e apatia. Como que acabaram por esquecer.

Nem esquecer‑me nem lembrar‑me podia eu. Factos que mal conhecera fragmentariamente esbateram‑se em nebuloso fundo de outras preocupações que vieram relevar‑se longos anos, em nitidez e luz, na ribalta da vida. Andanças de errante saltimbanco do ofício de professor... Terras distantes escondidas nas voltas das estradas, no tramontar das serras.... Muralhas tisnadas dos séculos e dos sonhos, vigiando a veiga expectante e úbere do vale imenso... Perfumes e cores exalando‑se do seio do oceano na ilha perdida como nenúfar que floriu no cume de um vulcão extinto... Banho de brancura luminosa, olhos magoados da claridade do céu e da cal de paredes e açoteias mouriscas... Maresia ribeirinha de gaivotas e traineiras ondulando no porto fenício... Até vir aproar na cidade de Ulisses a lustrar‑me de rosa... Que me chamou então de novo, decorrido tanto tempo, a atenção para o mistério?...

Toma!‑ disse‑me Fernanda um dia ajoelhada no chão à boca da antiga mala abaulada, enquanto me ia entregando livros, embrulhos, velhas fotografias. "Esta mala! Viajou connosco tantos anos por todo o lado!...E parava, cansada, com as mãos no regaço, o olhar tresmalhado no passado. De súbito acordava e tornava a mexer na papelada. Estes são os álbuns dele. Que canseira miúda e aturada! As mãos dele! Estou a vê‑las, habilidosas, a recortar, a colar... Que paciência! Coligidos quase dia a dia, recortes de jornais, postais ilustrados, recordações dos teatros em que actuou, de amigos, artistas, personalidades que conheceu... O desnovelar da vida!... Tudo passou!» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Uma caixa de fósforos, se faz favor. O gesto mecânico do empregado, olhar distante, rosto enjoado, passando o pano sórdido sobre o mármore do balcão…»

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A memória do esquecimento

«Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer. Foi por isso que não desci esse Natal ao Porto. Tampouco pela Páscoa me fiz à estrada. Tinha, entretanto, tirado a carta e comprara um carro, motorizando‑me, fazendo preito ao progresso. Só lá para os fins dos exames, em Julho, princípios desse outro Agosto, de cinquenta e seis, cheguei do nordeste, nos olhos ainda a longa negra fita de alcatrão ou paralelipípedos a enrolar‑se no galgar dos quilómetros, nos rins o cansaço das intermináveis horas sentado ao volante do Volkswagen, que vinha todo vomitado das voltinhas do Marão. Foi António o primeiro que falou. Não porque sentisse necessidade de abordar o assunto. Aliás, posteriormente, quando eu já me encontrava senhor dos acontecimentos, compreendi aquele como que preconceituoso pudor da família em rodear o caso de um espesso mutismo. O que o fez falar foram as circunstâncias... Aí estava ela! Não, não olhasse ainda, para não dar nas vistas!... A mesa da terceira fila, atrás de mim...

Animava‑se o café àquela hora, onze e meia da manhã, acabada a missa. Homens fumando, chávena vazia à frente ou por instantes aflorada aos lábios, jornal aberto, folheado, saboreado. Fatos cuidados, na ausência de nódoa ou enxovalho, no vinco recente da calça. Barba escanhoada, camisa lavada. Catarro matinal, tabacal. Aos pés de um deles, cabelo ralo todo lambido de brilhantina, para trás, cara chupada, o macaco coçado, os tornozelos escanzelados a saírem das peúgas lassas e do calçado cambado, faz o engraxador chiar e estalar a tira de pano lustroso ao polir do sapato. Dá‑se um casal ao luxo da fofa loira torrada com manteiga, em palitos, lambuzando os dedos. Os dela são papudos e brilham de jóias. Por detrás do tinir das xícaras, pires e talheres, das vozes dos empregados de mesa a comunicarem ao bufete os pedidos dos clientes (Sai um galão! Três pingos e um copo de leite com canela!...), por entre a névoa que paira no ar, misto de fumo e de vapor que embacia as vidraças, vêm de fora as vibrações do tanger dos sinos. Coisa concreta, que quase se corta à faca, a respiração e o perfume domingueiro. Que semelhança!, continuava António. Enquanto o escutava, eu ia esperando a oportunidade de me voltar para trás. Aparecia por ali muitas vezes, no Amial, dizia a voz dele. Morava talvez perto ou então andava a espiá‑lo, a persegui‑lo. Isto pelo menos era o que insinuava sua mulher, a Catalina, desconfiada... Cruzava com a desconhecida na rua, nos lugares mais diversos e imprevisíveis da cidade, na Cordoaria, na Avenida dos Aliados, na Lapa. Olá, sobrinho!, palavras dela no ar quando passava... As feições um pouco menos amaciadas mas muito parecidas com as de Fernanda e com um retrato antigo que ele vira da avó Ana... Teria aí uns vinte e dois anos. Parece que aquilo fora caso acontecido aquando da morte de Raquel... Estranha coincidência! O nascimento e a morte! Para Silva Lisboa tornara‑se motivo de funda meditação. Albertina, porém, não podia admitir a junção dos dois factos, das duas dores a lancear‑lhe a alma. Em cima da perda da filha, aquilo!... Olá, sobrinho! Que queria tudo isso dizer?...» In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer»

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A memória do esquecimento

«O telefone tocara no meio da barafunda do início do ano lectivo e das preocupações. Não se deve expor a uma tal viagem agora, foi a proibição do Mário Carneiro. Nem pensar! Ela concordava, virava‑se para mim: tu... Também não podes ir. Não há ninguém para te substituir no colégio. Foi assim que não estive presente no funeral de Silva Lisboa. Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade possíveis e desfazer a natural emoção. Silva Lisboa e Albertina, Raquel e Alberto Tavares, Fernanda e Alberto Campos..., e Mário..., e Ana de Jesus..., e Maria José..., e João..., e Josué..., e a desconhecida... Pessoas, personagens de romance. Lembro a última imagem que dele me ficou. Chegara o fim de Agosto e partíamos, eu e Maria Olga, com as duas filhas, acabadas as férias grandes, para o nosso castelo roqueiro, por causa da abertura do colégio. Fomos ao quarto dele despedirmo‑nos. Olhou‑nos com um sorriso a disfarçar o ar triste, sentado na borda da cama, seu pijama de flanela azul às riscas. Mostre‑me as suas mãos!, recordo‑lhe a voz dirigindo‑se à Maria Olga. Pegou‑lhas vivamente quando ela as estendeu de costas para cima. Gostava de falar com ela, que tinha muita paciência para o escutar, lhe fazia atenciosa companhia quando lá passávamos uns dias. Deixava‑a arrancar‑lhe pormenores da sua vida que a mais ninguém confidenciara. Talvez porque mais ninguém lhe fazia ou ousava fazer perguntas ou se sentia à vontade para lhas fazer.

Pairava no ar um certo receio de se virem a descobrir realidades penosas que fossem contra as conveniências. Ela, sim. Sentia‑se desinibida à beira dele, a conversar com ele. O visconde de Cairu? surpreendi‑a uma vez a perguntar‑lhe. É verdade, respondia ele. E o pai?... Como é que o vovô soube?..., tornava ela. E ele lá contava, com a voz um pouco sumida, à puridade, a estranha história... Flanela azul às riscas... sentado na borda da cama..., o faiscar do anel no dedo mindinho... Basta um pormenor para lhe avivar a imagem! Ela estendia‑lhe as mãos de costas para cima. Ah! É um rapaz! Vou ter um bisnetinho! Mas a vinte e seis de Dezembro nascia uma menina que ele já não pôde conhecer». In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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Fernando Campos. Psiché. «Escrevo Silva Lisboa e não meu avô porque, como narrador que conta os factos muitos anos volvidos, desejo aproveitar esse distanciamento para ganhar a perspectiva e imparcialidade…»

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A memória do esquecimento

«Lembrava‑se apenas de que se esquecera... ou esquecera‑se de se lembrar. Que queria? Fraca memória a sua!, suspirava. Os anos!... Fernanda tinha muitas vezes comigo este desabafo e eu tomava‑lhe a preocupação, procurava colar‑lhe os restos das lembranças, reconstituía‑as em mantas de retalhos, a tentar conservar o calor das veias, a cor das faces, o brilho de um olhar, o tom de uma voz, o latejar dos corações atingidos pelo gelo do tempo que chegou ao seu limite... Procurar trabalhar a matéria perpetuável, no limiar do eterno... e transpô‑lo! Tomar o esquecimento e recolocá‑lo na memória! Repor a memória no pedestal do esquecimento, na cidade indiferente e distraída..., nas cidades, vilas, aldeias e lugares distraídos e indiferentes por onde Silva Lisboa espalhou a rodos a fantasia e o riso!... Antes que o verme pontual e infalível roa com suas mandíbulas tenazes os últimos músculos putrefactíveis, ainda vivos, que o sal do artista fez contrair num sorriso, vibrar e estalar numa gargalhada. Fixar as recordações para ao menos essas se não transformarem em cinza!... Descuidados que somos até da única certeza indesmentível! Dir‑se‑á não querermos acreditar que nascemos mortais. Surpreende‑nos sempre desprevenidos a notícia da morte. A carta, o telegrama que nos bate à porta quando se está longe. O telefone que toca como tantas vezes rotineiras... Está? Fernando?, Sim. É para te dizer que o avô...

O gesto lento, interiorizado, de pousar no descanso o telefone. Então aquele foi mesmo o último suspiro?... E aquele corpo vai arrefecer?... Do espantoso lance teatral inesperadamente surgido no cemitério junto ao corpo exânime do actor, ao fechar do caixão, quando o padre pronunciava as últimas encomendações, lançava as derradeiras aspersões de água‑benta, traçava no ar a cruz do requiem e um coveiro avançava com a pá de cal viva, far‑me‑iam relato mais tarde os parentes que assistiram. Estranha realidade: nenhuma das versões é coincidente! Eu encontrava‑me no norte, para lá das montanhas, desmaiava Setembro. Grande a azáfama do abrir das aulas. A mulher, pesadona, a três meses do fim do tempo. Eu não possuía ainda carta nem carro nesse tempo e a única possibilidade de me deslocar para ir assistir ao enterro era aquele comboiinho de brincar que levava meio dia a chegar, depois de fumegar e resfolegar as voltinhas gaiatamente apitadas, trepando a montes de vento e lobos, espreitando telhados isolados, adormecidos em vales perdidos, bordejando pegos e córregos de vertigem. Apareciam os pais a trazerem os filhos para o internato, os professores vinham pelos horários e as cadernetas. Tudo eu fazia ali, naquele colégio que era de brincar como o comboio. A única coisa bonita que tinha era estar alcandorado nas velhas muralhas medievais bordadas de lírios a olhar o rio largo e lento sob a ponte de Trajano. De resto achava‑me praticamente só num barco a naufragar. Trinta alunos que mal davam para as despesas, um sócio que fugira mal cheirara o descalabro, deixando‑me com as suas dívidas. Director, prefeito, administrador, professor de tudo e mais alguma coisa, português, francês, inglês, desenho, treinador de jogos, para evitar ter de pagar a outros aquilo que eu não recebia. Vinte e seis anos de idade..., a construção do meu futuro!».. In Fernando Campos, Psiché, Difel, Lisboa, 1987, Dl nº 83973.

Cortesia de Difel/JDACT

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terça-feira, 2 de julho de 2024

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «… algumas mulheres preparam comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu encalço espalha o terror. Alguns, que tentaram atingir os bosques vizinhos, são rapidamente alcançados»

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A Invasão. 1096-1100

«(…) É verdade que os franj perderam cerca de seis mil homens, mas os que restam são seis vezes mais numerosos, e esta é a única oportunidade para se livrarem deles. Para tanto, ele preferiu destacar dois espiões, gregos, para o acampamento de Citivot, afim de anunciar que os homens de Renaud estão em excelente condição, que conseguiram apoderar-se da própria Nicéia, e que estão firmemente decididos a não permitir que seus correligionários lhes disputem as riquezas. Enquanto isso, o exército turco preparará uma gigantesca emboscada. De facto, os rumores cuidadosamente propagados suscitam no acampamento de Citivot a confusão prevista. Formam-se grupos, injuria-se Renaud e seus homens. Logo tomam a decisão de pôr-se a caminho para participar do saque de Nicéia.

Mas eis que, subitamente, não se sabe muito bem como, um homem que conseguiu escapar da expedição de Xerigordon chega, revelando a verdade quanto à sorte de seus companheiros. Os espiões de Kilij Arslan pensam ter fracassado em sua missão, já que os mais sábios entre os franj pregam a calma. Mas, passado o primeiro momento de consternação, a exaltação volta.

A multidão se agita e brada, quer partir imediatamente e não mais para participar de meros saques, e sim vingar os mártires. Aqueles que hesitam são tratados de covardes. Finalmente, os mais enfurecidos obtêm ganho de causa, e a partida é fixada para o dia seguinte.

Tendo seu artifício descoberto, ainda que o objectivo houvesse sido previamente atingido, os espiões do sultão triunfam e mandam dizer ao seu senhor que se prepare para o combate. Na madrugada de 21 de Outubro de 1096, os ocidentais deixam seu acampamento. Kilij Arslan não está longe. Ele passou a noite nas colinas próximas a Citivot. Seus homens estão nos seus lugares, bem escondidos. Ele mesmo, de onde está, pode avistar ao longe a coluna dos franj levantar uma nuvem de poeira.

Algumas centenas de cavaleiros, a maioria sem armadura, andam na frente, seguidos por uma multidão de infantes em desordem. Estão andando há menos de uma hora quando o sultão ouve o clamor que se aproxima. O sol que se ergue atrás dele golpeia-os em pleno rosto. Prendendo a respiração, ele faz sinal aos seus emires comandados para que se mantenham alertas.

O instante fatídico é chegado. Um gesto apenas perceptível, algumas ordens sussurradas aqui e ali, e eis os arqueiros retesando lentamente seus arcos. De repente, mil flechas jorram num único e longo assobio. A maioria dos cavaleiros desaba nos primeiros minutos. Depois, os infantes são dizimados por sua vez. Quando se travou o combate corpo-a-corpo, os franj já estavam derrotados.

Aqueles que se encontravam na rectaguarda voltaram correndo para o acampamento, onde os que repousavam eram despertados. Um velho sacerdote celebra um ofício religioso, algumas mulheres preparam comida. A chegada dos fugitivos com os turcos no seu encalço espalha o terror. Alguns, que tentaram atingir os bosques vizinhos, são rapidamente alcançados». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Cruzadas, Árabes,

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «Podem ser vistos, nesses primeiros dias de Outubro, olhando desesperadamente para o céu, mendigando algumas gotas de chuva. Em vão. Após uma semana um cavaleiro chamado Renaud…»

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Invasão. 1096-1100

«Kilij Arslan é apanhado de surpresa. Quando lhe chegam as primeiras noticias, os atacantes já estão sob os muros de sua capital; e o Sol ainda não atingia o horizonte quando os cidadãos veem subir a fumaça dos incêndios. Imediatamente, o sultão manda uma patrulha de cavaleiros, que se choca com os franj. Esmagados pelo número, os turcos são massacrados. Apenas raros sobreviventes voltam, ensanguentados, para Niceia. Vendo seu prestígio ameaçado, Kilij Arslan resolve começar a batalha imediatamente, mas os emires de seus exércitos o desaconselham. A noite já vai cair e os franj retiram-se às pressas para seu acampamento.

A vingança terá que esperar. Contudo não por muito tempo. Aparentemente animados com seu sucesso, os ocidentais repetem a façanha duas semanas mais tarde. Dessa vez, o filho de Suleiman, avisado a tempo, segue passo a passo sua progressão. Uma tropa franca, compreendendo alguns cavaleiros, mas sobretudo milhares de saqueadores esfarrapados, pega a estrada de Niceia, depois, contornando a aglomeração, dirige-se para o leste e toma de surpresa a fortaleza de Xerigordon. O jovem sultão se decide.

À frente de seus homens, cavalga rapidamente em direcção à pequena praça-forte onde, para comemorar sua vitória, os franj embebedam-se, incapazes de imaginar que seu destino já esteja selado. Pois Xerigordon apresenta uma armadilha que os soldados de Kilij Arslan conhecem bem, mas que esses estrangeiros inexperientes não foram capazes de descobrir: o abastecimento de água que se situava fora, bastante longe das muralhas. Então os turcos não precisam de muito tempo para interditar seu acesso. Basta-lhes tomar posição ao redor da fortaleza e não se mover mais. A sede luta por eles.

Para os sitiados, começa um suplício atroz: eles chegam a beber o sangue de suas montarias e sua própria urina. Podem ser vistos, nesses primeiros dias de Outubro, olhando desesperadamente para o céu, mendigando algumas gotas de chuva. Em vão. Após uma semana um cavaleiro chamado Renaud, chefe da expedição, aceita a capitulação com a condição de que lhe seja poupada a vida. Kilij Arslan, que exigiu que os franj denunciem publicamente a sua religião, não fica pouco surpreso quando Renaud se diz pronto não só a converter-se ao islamismo, mas também a combater ao lado dos turcos contra seus próprios companheiros. Vários de seus amigos, que se prestaram às mesmas exigências, são enviados como prisioneiros para as cidades da Síria ou da Ásia Central. Os outros são mortos pela espada. O jovem sultão está orgulhoso de sua proeza, mantém-se ponderado. Após ter concedido a seus homens um prazo para a tradicional partilha dos bens restados da guerra, ele os coloca em alerta a partir do dia seguinte». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

Cortesia de Edições70/JDACT

Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Árabes,

Amin Maalouf. As Cruzadas vistas pelos Árabes. «Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros»

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A Invasão. 1096-1100

«(…) Mesmo se o exército bizantino, dilacerado há anos por crises internas, fosse capaz de lançar-se sozinho numa Guerra de Reconquista, ninguém ignora que Alexis sempre pode apelar para auxiliares estrangeiros. Os bizantinos nunca hesitaram em recorrer aos serviços dos cavaleiros vindos do Ocidente. Mercenários com armaduras pesadas ou peregrinos a caminho da Palestina, são numerosos os franj que visitam o Oriente. Em 1096 eles não eram estranhos aos muçulmanos. Cerca de vinte anos antes, Kilij Arslan ainda não era nascido, mas os velhos emires lhe contaram, um desses aventureiros de cabelos louros, um tal de Roussel de Bailleul, que conseguira estabelecer um Estado autónomo na Asia Menor, marchou inclusive sobre Constantinopla. Apavorados, os bizantinos não tiveram outra escolha senão apelar para o pai de Kilij Arslan, que chegou a duvidar do que ouvia quando um enviado especial do basileu veio suplicando-lhe que voasse para socorrê-lo. Os cavaleiros turcos tinham-se então, de facto, dirigido para Constantinopla e conseguido vencer Roussel. Por isso, Suleiman fora generosamente recompensado em ouro, cavalos e terras.

Desde então, os bizantinos desconfiam dos franj, mas os exércitos imperiais, constantemente carentes de soldados experientes, veem-se obrigados a contratar mercenários. Não unicamente franj, aliás; os guerreiros turcos são numerosos sob as bandeiras do império cristão. E precisamente graças a compatriotas engajados no exército bizantino que Kilij Arslan fica sabendo, em Julho de 1096, que milhares de franj se aproximam de Constantinopla. O quadro pintado pelos informantes deixa-o perplexo. Esses ocidentais parecem-se muito pouco com os mercenários que se costuma ver. É verdade que há, entre eles, algumas centenas de cavaleiros e um número importante de infantes armados, mas também há milhares de mulheres, crianças, velhos em andrajos: parece um povo desalojado de suas terras por um invasor. Conta-se também que trazem todos, costuradas nas costas, faixas de tecido em forma de cruz. O jovem sultão, encontrando dificuldades em avaliar o perigo, pede aos seus agentes que dobrem a vigilância e que o deixem constantemente a par dos factos e condutas desses novos invasores. Como medida de precaução, ele manda verificar as fortificações de sua capital. As muralhas de Niceia, que tem mais de um farsakh (seis mil metros) de extensão, são coroadas por 240 torres. A sueste da cidade, as águas calmas do lago Ascanios constituem uma excelente protecção natural.

No entanto, nos primeiros dias de Agosto, a ameaça torna-se mais evidente. Os franj atravessam o Bósforo, escoltados por navios bizantinos e, mesmo sob um sol opressivo, avançam ao longo da costa. Apesar de terem sido vistos saqueando a caminho mais de uma igreja grega, pode-se ouvi-los bradar que vem exterminar os muçulmanos. Seu chefe seria um eremita chamado Pierre. Os informantes avaliam que sejam algumas dezenas de milhares, mas ninguém sabe dizer onde seus passos os levam. Parece que o imperador Alexis resolveu instalá-los em Citivot, um acampamento que ele acomodou anteriormente para outros mercenários, a menos de um dia de caminhada de Niceia. O palácio do sultão fica em estado de alerta. Enquanto os cavaleiros turcos preparam-se para alar seus cavalos a qualquer momento, assiste-se a um vaivém continuo de espiões e batedores que relatam os mínimos movimentos dos franj. Conta-se que cada manhã eles deixam o acampamento em hordas de vários milhares para explorar a vizinhança, onde saqueiam algumas fazendas e incendeiam outras, antes de voltar para Citivot, onde seus pares disputam os frutos da razia. Não há nada disso que possa realmente atemorizar os soldados do sultão. Nada também que possa preocupar seu senhor. Durante um mês, a rotina se repete. Mas eis que um dia, por volta de meados de Setembro, os franj modificam bruscamente seus hábitos. Não tendo provavelmente mais nada que obter de sua vizinhança, eles tomaram, dizem, o rumo de Niceia, atravessando alguns vilarejos, todos cristãos, e apossaram-se das safras que acabavam de ser colocadas em celeiros, nesse período de colheita, massacrando sem piedade os camponeses que tentavam resistir. Crianças de colo teriam sido queimadas vivas». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

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Amin Maalouf, JDACT, Literatura, Árabes,

As Cruzadas vistas pelos Árabes. Amin Maalouf. «Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se»

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Agosto de 1099. Bagdade

«(…) Em Bagdade, a decepção dos refugiados será tão grande quanto as suas esperanças. Antes de encarregar seis altos dignitários da corte para que efectuassem uma investigação sobre esses acontecimentos desagradáveis, o califa Mustazhit-billah expressa a sua simpatia pela causa. E preciso dizer que não se ouvira mais falar nesse comité de sabios? O saque a Jerusalém, ponto de partida de uma hostilidade milenar entre o Islão e o Ocidente, não provoca, na hora, nenhuma reacção. Foi preciso esperar cerca de meio século antes que o Oriente árabe se mobilize perante o invasor, e que a chamada ao jihad lancada pelo cádi de Damasco à tenda do califa seja celebrada como o primeiro acto solene de resistência. No inicio da invasão, poucos árabes medem imediatamente, como al-Harawi, a amplitude da ameaça vinda do Oeste. Alguns adaptam-se até rápido demais à nova situação. A maioria só procura sobreviver, amargurada e resignada. Alguns colocam-se como observadores mais ou menos lúcidos, tentando compreender esses acontecimentos tão imprevistos quanto novos. O mais cativante deles é o cronista de Damasco, Ibn al-Qalanissi, jovem letrado de uma família de notáveis. Testemunho ocular, ele tem 23 anos, em 1096, quando os franj chegam ao Oriente e se aplica em consignar por escrito os acontecimentos que chegam ao seu conhecimento. A sua crónica narra fielmente, sem envolvimento excessivo, a progressão dos invasores, tal como é vista na sua cidade. Para ele, tudo começou nesses dias de angústia em que chegam a Damasco os primeiros rumores...

 

A Invasão. 1096-1100

Olhem para os franj! Vejam com que fúria lutam por sua religião, enquanto nós, os muçulmanos, não demonstramos ardor algum em travar a Guerra Santa. In Saladino

Naquele ano, começaram a chegar informações sucessivas sobre a aparição de tropas de franj vindas do mar de Mármara em grande multidão. As pessoas amedrontaram-se. Essas noticias foram confirmadas pelo rei Kilij Arslan, cujo território era o mais próximo desses franj. O rei Kilij Arslan de quem fala aqui Ibn al-Qalanissi ainda não tem 17 anos quando os invasores chegam. Como primeiro dirigente muçulmano a ser informado da sua chegada, esse jovem sultão turco de olhos levemente puxados será o primeiro a infligir-lhes uma derrota e posteriormente o primeiro a ser vencido pelos seus temíveis cavaleiros. Desde Julho de 1096, Kilij Arslan sabe que uma imensa multidão de franj está a caminho de Constantinopla. Imediatamente, ele teme o pior. É claro que ele não tem ideia alguma dos objectivos reais perseguidos por essa gente, mas a vinda deles ao Oriente bastava para que se atemorizasse. O sultanato que ele governa abrange uma grande parte da Ásia Menor, um território que os turcos acabam apenas de arrancar aos gregos. Na verdade, o pai de Kilij Arslan, Suleiman, foi o primeiro a apossar-se dessa terra que se chamaria, muitos séculos mais tarde, Turquia. Em Niceia, capital desse jovem Estado muçulmano, as igrejas bizantinas continuam mais numerosas do que as mesquitas. Se a guarnição da cidade é formada por cavaleiros turcos, a maioria da população é grega, e Kilij Arslan não tem ilusões quanto aos verdadeiros sentimentos de seus súbditos, para os quais ele será sempre um chefe de bando bárbaro. O único soberano que eles reconhecem, aquele cujo nome é murmurado em todas as suas orações, e o basileu Aléxis Comneno, imperador dos romanos. Na realidade, Aléxis seria antes o imperador dos gregos, os quais se proclamam herdeiros do Imperio romano. Essa qualidade lhes é, aliás, reconhecida pelos árabes, que, no século XI como no século XX, designam os gregos pelo termo rum, romanos. O domínio conquistado pelo pai de Kilij Arslan em detrimento do Imperio grego é chamado, inclusive, de sultanato dos rum.

Na época, Aléxis e uma das figuras mais prestigiosas do Oriente. Esse quinquagenário de baixa estatura, olhos cintilantes de malícia, de barba bem cuidada, modos elegantes, sempre paramentado de ouro e ricas roupagens azuis, exerce um verdadeiro fascínio sobre Kilij Arslan. É ele quem reina sobre Constantinopla, a fabulosa Bizâncio, situada a menos de três dias de caminhada de Niceia. Uma proximidade que provoca no jovem sultão sentimentos mistos. Como todos os guerreiros nómadas, ele sonha com conquista e pilhagem. Não lhe desagrada sentir as riquezas legendárias de Bizâncio ao alcance da mão, mas ao mesmo tempo sente-se ameaçado: sabe que Aléxis nunca perdeu as esperanças de recuperar Niceia, não somente porque a cidade sempre foi grega, mas principalmente porque a presença de guerreiros turcos, a tão curta distância de Constantinopla, constitui um perigo permanente para a segurança do Imperio». In Amin Maalouf, As Cruzadas vistas pelos Árabes, 1983, Colecção História Narrativa, nº 38, Reimpressão, Edições 70, Ensaio, 2016, ISBN-978-972-441-756-1.

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domingo, 30 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar? ... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia»

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A Tempestade

«São grandes senhores!, disse frei Zedilho. Sim, eram! Mas, com o serem, continuavam escravos do grão-turco e se não cumpriam os seus ofícios e governos como deviam, não se ensaiava nada em tirá-los do cargo e com facilidade os mandava matar, se lhe parecia, sem haver quem lho ousasse contradizer. Se porém serviam fiel e louvavelmente, promovia-os de uma dignidade pequena a outra maior. Ordinariamente não dava estas funções senão por três anos, já se via com que intenção...

Tínhamos passada toda a Albânia com a diversidade dos seus portos, cidades e lugares, entre os quais a famosa Castória, edificada dentro do mar como a rica Veneza, e a inexpugnável Valona, onde ao presente o grão-turco tem a sua esquadra de galés e naus de que se serve nas batalhas navais. Pérides, com o seu olhar habituado a perscrutar o horizonte onde começava a sombrear a mancha de uma ilha, disse: Tenho de vos deixar. Estamos a chegar a Corfu. Bateu-me mais forte o coração e senti subitamente um grande medo do que iria encontrar naquela ilha.

Não tardou muito que a víssemos com nitidez, suas muralhas edificadas sobre a rocha viva, e pouco tempo depois dávamos entrada pelo estreitíssimo canal que vai entre a ilha e a terra dos Turcos, tão estreito que as embarcações que entram não podem fazer manobra para se voltarem e necessitam de um vento para entrar e outro para sair. Por isso muitas vezes sucede estarem ali detidas sem poderem fazer viagem, salvo sendo ajudadas pelas galés que a senhoria veneziana ali tem continuamente para guarda e defensão da ilha.

A muita proximidade da terra dos Turcos faz que estes a cobicem e mais que uma vez tentaram tomá-la, mas sem resultado, pois Veneza tem sabido defendê-la, com a guarnição militar dos seus dois fortíssimos castelos roqueiros sobre o mar e as suas cerca de trinta galés.

Enigma Alfa. 1501 - 1545

O que murmuram os canaviais

Herdou as saboarias paterna, mas não a provedoria, que o pai vendera para pagar dívidas. Casava assim a irmã Inês com um homem bem dotado e rico. Uma pontinha de inveja? Ana era mais velha que Inês e lá se quedava naquele casarão de Santarém, condenada a cuidar do pai viúvo e dos irmãos, sem a companhia da irmã nem da aia Maria do Céu que Inês levava consigo. Súbito veio o luto: Inês morria do parto do filho Francisco; o cunhado casava segunda vez, com uma prima dele, Filipa, de quem teve o filho Fruitos; falecida a segunda mulher, volta a contrair matrimónio, agora Isabel Vieira que se finou de peste sem lhe dar geração: e pela quarta vez com Isabel Gomes Limi que gerou cinco filhos: primeiro Rui como o pai, falecido ainda no berço, o segundo Manuel e depois Damião, Baltasar e Antónia. A aia ia ficando na casa a cuidar das crianças.

Em mil e quinhentos e onze, Isabel viu-se viúva. Foi então que ao menino Damião, nascera em mil e quinhentos e dois como o príncipe João, recordava Ana, após o saimento do pai levou-o para a corte, ainda na idade do eixo e do pião, o meio-irmão Fruitos, a sugestão de el-rei de quem era moço da guarda-roupa. Aí vão os dois rapazes a entrar nos Paços da Ribeira. Largo e comprido corredor de portadas de vidro viradas ao terreiro e, ao fundo, às naus varadas no Tejo. Grossos tocheiros em castiçais dourados. A espaços certos, pesadas portas de carvalho polido e nos intervalos, em frente das portadas, grandes espelhos a beberem a luz e a espalharem claridade.

Soam-lhes os passos nas lajes de mármore, os de Fruitos mais largos, os do irmão miudinhos. Na última porta dois archeiros fardados de librés com galões de ouro fazem sentinela. Na antecâmara vem recebê-los o guarda-mor: por aqui. Vais ver o senhor do mundo, segreda Fruitos ao ouvido do irmão.

O rei Emanuel estava sentado em cadeirão de espaldar, junto a uma mesa com papéis, a ditar suas cartas ao secretário. Ao vê-los, parou de ditar e ergueu o olhar para o menino. Damião arregalou os olhos de água. O rei sorria-lhe: aproxima-te. Beija a mão a Sua Alteza, disse-lhe Fruitos em voz baixa. Damião, num dobrar de joelhos, os olhos cheios de lágrimas, beijou a mão do rei. Estás espantado, moço? Nunca viste um rei? Que se passa com teu irmão, Fruitos? Senhor, nosso pai foi a enterrar. E ver-te agora…, a tua parecença com ele... Até eu, habituado a ti, estou torvado. Vá meu filho, disse o rei afagando a cabeça do menino, enxuga-me essas lágrimas. Serei para ti um pai, verás. Ana Macedo recordava estas coisa com o susto na alma e, quando Maria do Céu se preparava para ingressar num convento… Volta para Santarém, propõe-lhe. A nossa casa continua a ser a tua. Maria do Céu ripostava: mas, menina… Céu, estou sozinha, meu paizinho Deus o chamou, meus irmãos na Índia... Cá me soou que a menina vai casar…

Sacrifiquei os meus vinte anos a tratar do pai e dos irmãos. Agora, com trinta e cinco, não achas que é tempo de casar? ... e de ter filhos... Mais uma razão para lhe fazeres companhia. Recordaremos os tempos felizes e tu ajudas-me a tratar das crianças que nascerem… Quem é ele? Um cavaleiro-fidalgo chamado Simão Vaz. Vem. Contar-te-ei tudo quando estiveres comigo. Um dia, já casada, foram viver para Lisboa e por essa altura vira Ana o rei pela primeira vez e logo notara a extrema semelhança dele com o defunto marido da sua defunta irmã, que ambos Deus fosse servido de ter em sua glória, amém. Homem de boa estatura de corpo el-rei Emanuel, mais delgado que grosso, a cabeça sobre o redondo, cabelos castanhos, a testa desanuviada deles, olhos alegres, de um verde quase branco, alvo, semblante bem-assombrado, risonho nas covas da face e na comissura dos lábios, os braços carnudos, tão compridos que as mãos lhe passavam abaixo dos joelhos, as pernas proporcionadas ao corpo...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,

sábado, 29 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?»

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O Rei de Marfim

«(…) Falas de outra luta? Tu, minha irmã, é que referiste esse rei de Mmarfim como sendo o bom rei Duarte nosso avô. À roda dele giravam nobres senhores e esboçavam-se as lutas que ao depois se seguiram. Marfim, ébano... eu sei. encetaremos outra jogada, outras jogadas. reveremos tudo. com a morte recente da nossa avó Isabel de Urgel fecha-se um círculo de tamanho ódio! Psiu! falasse baixo! Tia Filipa podia ouvir pobre senhora de luto pela mãe...

Tudo aí começou  voltou-se Filipa em lágrimas. Não chores, minha tia! Então? Levantava-se Joana a abraçá-la, a sentá-la ao pé de si, trinta e um anos secos e martirizados. Tudo aí começou ..., abriu-se em soluços,  e agora, de uma casa tão grande e tão feliz, só eu e a triste da minha irmã Catarina encerrada na casa.

(…)

A Tempestade

No dia seguinte, a fúria do vento minguava e nós fomos costeando a Dalmácia, Argentina, Zara, Lissa, Meleda, Cúrsula, terras sujeitas umas a Veneza e outras à senhoria de Aragusa. Vinham-me à lembrança fragmentos de antigas e recentes leituras: a Dalmácia era a pátria de São Jerónimo e também do papa mártir São Caio, da parentela do imperador Diocleciano; Aragusa ou Ragusa, o antigo Epidauro, era ao presente dos Turcos e chamava-se Dobrónica, cidade grandíssima, rica, muito nomeada naquelas partes, terra de grandes tratos e mercadores, onde se fazem muitas naus, as maiores e mais grossas de todo o Levante. É daqui o nosso padre guardião, frei Bonifácio. Seguimos sempre ao longo da costa, o que amenizava a viagem, pois tinham nossos olhos com que se entreterem. Que montes seriam aqueles?, apontava frei Zedilho. Eu consultava o meu enquirídio e não demorava muito a identificá-los: eram os montes Acroceráunios, muito afamados na Antiguidade.

Ah! Deles fazia memória São Jerónimo no segundo prólogo da Bíblia, comentava o meu teólogo. Vinha depois a costa do Epiro, a que está ligada a Macedónia, pátria de Alexandre Magno, do qual tantas grandezas contam tantos escritores gregos e latinos.

As línguas de todas estas terras são muito diversas umas das outras, mas os Aragúsios e os Dalmacianos entendem-se bem entre si pela contínua comunicação. Os Albaneses e os Epirotas usam comumente o grego, mas, como presentemente estão submetidos aos Turcos, toda a gente principal e nobre fala a língua turca. Estas informações colhi-as eu de um marinheiro grego chamado Pérides, a quem frequentemente fazíamos perguntas quando queríamos saber alguma coisa.

Era muito sensível ao facto de a sua pátria grega estar sob o domínio turco. Isolava-se amiúde junto à amurada a olhar a linha da costa passar, os montes e vales, as lágrimas a desfiarem-lhe pelas faces e cantando baixinho, só para si, saudosas melopeias que aprendera em menino. Ansiava pelo dia em que a Grécia sua bem-amada recobrasse a independência. Mal adivinhava eu, naquele tempo, que também me estava destinado ter, a respeito do meu país, essa dolorosíssima experiência!... Contava-nos ele factos nunca ouvidos.

De todas as partes e províncias e em especial do Epiro, da Macedónia e da Albânia, todas as pias de baptizar eram obrigadas cada ano a dar certas crianças de tributo ao grão-turco... Dar crianças ao turco?, admirava-se, escandalizado, frei Zedilho. Para quê?, secundava eu. Que as mandava criar com muito cuidado e diligência, doutrinar na bruta e maldita seita do sancarrão Mafamede e instruir em todas as boas artes militares: na cavalaria, no pelejar com toda a sorte de armas. Com que fim?

Criavam assim um corpo militar de eleição, no qual residia toda a força e potência humana do grão-turco. Era com eles que fazia a guerra a todo o mundo..., e conquistava tantos reinos e províncias como tinha tomado aos cristãos, por nossos pecados, rematava eu tomando calor no que dizia, e pela ambição e cobiça de alguns príncipes católicos, se este nome lhes cabia, que procurando com injustas guerras o alheio perdiam o próprio...

Aqueles eram os guerreiros a que se chamava janízaros. Mas não era só nas guerras que o grão-turco deles se servia. Usava-os também no governo da sua corte e de todos os seus reinos e províncias. Segundo o esforço, a prudência, a valentia e virtude que cada um demonstrava ia-lhes dando os ofícios e honras, dignidades e prémios que lhe parecia merecerem: a uns fazia baxás, que eram uma espécie de vizo-reis de reinos e províncias, a outros sanjacos, que eram governadores das cidades e seus termos, a outros berebés, chauses, cádis, que eram como justiças-mores das terras onde residiam...» In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos, Conhecimento,

Madeline Hunter. Deslumbrante. «Já fui em outras festas com as crianças presentes. Não me lembro de vê-la nessas. Só estive com elas um ano, antes de conhecer o capitão Joyes e deixar minha posição. Na cidade ninguém ouviu falar que houvesse algum homem na casa»

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«(…)  Então deixarei a indicação para ela vir para aqui assim que retornar. Olhou para o lado. Lizzie, pode... Ora essa, onde é que ela se enfiou? Estava aqui mesmo antes de a Celia trazê-lo e até leu o seu cartão... Estalou a língua em sinal de exasperação. Por favor, aguarde aqui, lord Sebastian, enquanto vou pessoalmente dizer para nos enviarem miss Kelmsleigh.

Deixou-o no meio da vegetação. O ar tinha um aroma luxuriante cuja densidade húmida continha um pouco de tudo. Citrinos e rosas e até o laivo fresco da erva. Uma pessoa podia se inebriar com um perfume daqueles. Enfiou o dedo na terra de um dos vasos em que mrs. Joyes estivera trabalhando. Tocou no volume de um bulbo. Desceu tranquilamente o corredor, passando por vários limoeiros em vasos e por mesas de botões floridos. No fundo do edifício uma videira crescia dentro do vidro. A raiz encontrava-se do lado de fora, mas o pé espesso entrava por um buraco aberto na parede de tijolo. As várias gavinhas trepavam por apoios robustos, estirando-se depois por barras de ferro, colocadas meio metro acima da sua cabeça. Debaixo deste frondoso caramanchão interior, estavam uma mesa de pedra e quatro cadeiras, compondo uma vinheta toscana.

Foi uma experiência, esclareceu mrs. Joyes, regressando. A videira, não pensei que resultasse. Deve ser agradável ficar sentado a esta mesa nos dias ensolarados de Inverno. Tem um belo conservatório de plantas.

É uma estufa. A maior parte daquilo que as pessoas chamam conservatórios na realidade são estufas, ou estufas de forçagem. Imagino que a palavra não seja suficientemente requintada e por isso a designação incorrecta se tenha tornado comum. Um verdadeiro conservatório de plantas faz isso mesmo, limita-se a conservar as plantas durante o Inverno, período em que estão em dormência. Temos um desses, também, no fundo do jardim. O rosto dela voltou a prender sua atenção.

Queira me desculpar, acho que fui inadvertidamente grosseiro. Já nos cruzamos, tenho certeza, mas não consigo me lembrar onde. Já nos cruzamos, realmente, anos atrás. Eu trabalhava como governanta para a família do duque de Becksbridge. Fomos apresentados um ao outro numa recepção no jardim, à qual fui autorizada a ir com a mais velha das minhas pupilas. Tem uma memória excelente para as pessoas insignificantes com as quais se cruza na vida, lord Sebastian. Se ela fosse de facto insignificante, ele poderia merecer o elogio, mas duvidava de que algum homem esquecesse que a conhecera.

Já fui em outras festas com as crianças presentes. Não me lembro de vê-la nessas. Só estive com elas um ano, antes de conhecer o capitão Joyes e deixar minha posição. Na cidade ninguém ouviu falar que houvesse algum homem na casa. O seu marido está ao serviço da marinha?

Esteve no exército. Morreu na Guerra Peninsular. A pergunta não alterou a graciosidade da sua postura, mas os olhos, escurecendo um pouco, revelaram que o assunto ainda lhe causava dor. Se me der licença novamente, vou ver porque demora Audrianna. Já devia ter voltado». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT

JDACT, Madeline Hunter, Escrita, Saber,

Deslumbrante. Madeline Hunter. «Olhou para cima. Metade do tecto era composto também por pequenos painéis de vidro. Aguarde aqui, por favor, indicou ela, desaparecendo por trás de uma enorme palmeira num vaso»

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«(…) Era o tipo de casa boa e sólida que se encontrava por toda a Inglaterra. Bonita, na sua alvenaria de pedra cinzenta, era grande demais para uma simples casa rústica e pequena demais para ser um solar. No topo, um sótão com telhado duplo erguia-se em dois pisos de altura tendo apenas janelas bem proporcionadas decorando a fachada simples.

Não apareceu ninguém para ficar com seu cavalo, por isso Sebastian atou as rédeas a um poste. O tempo que esperou depois de bater à porta deixava a entender que poucos criados trabalhavam lá, apesar da propriedade deixar transparecer alguma riqueza. A porta finalmente abriu. Uma governanta muito magra de meia-idade espreitou-o por entre os folhos da touca. Leu o cartão dele e voltou a espreitar. O olhar dela se demorou na caixa de madeira comprida que ele trazia debaixo do braço.

Disseram-me que miss Kelmsleigh vive aqui, explicou ele. Vim devolver uma coisa que ela perdeu.  Uma moça loira, bonita, surgiu. Também leu o cartão. Eu trato disto, mrs. Hill.  A mulher mais velha se retirou. A loira indicou que entrasse. Devia falar com mrs. Jones, prosseguiu. É a proprietária da casa. Está na estufa. Vou levá-lo até lá. Num passo tranquilo, levou-o até aos fundos da casa. Passaram por uma biblioteca com bonitas estantes e muitas cadeiras estofadas. Uma segunda sala de estar ocupava a parte de trás da casa. Através de uma das janelas, viu uma estufa.

Situada a vinte metros da casa, a estufa era muito maior do que as encontradas em casas rurais, a não ser que fossem propriedades muito grandes. A metade de cima das paredes era de vidro, num mosaico de painéis rectangulares suportados por ferro. A entrada para a estufa ficava no fundo de um corredor que saía da sala de estar. A mulher que o guiava abriu uma porta e ele foi envolvido por um calor húmido. Olhou para cima. Metade do tecto era composto também por pequenos painéis de vidro. Aguarde aqui, por favor, indicou ela, desaparecendo por trás de uma enorme palmeira num vaso. Momentos depois reapareceu e gesticulou para que se aproximasse. Apontou mrs. Joyes e se despediu.

Mrs. Joyes trabalhava sentada a uma mesa coberta de vasos cheios de terra. A mesma terra sujava o avental, as mãos e a touca. Enquanto ele se aproximava, ela pegou um trapo para limpar a pior parte.

Tinha um rosto muito bonito. Muito pálido. Muito perfeito. Olhos cinza-escuro. Possuía uma elegância natural que afectava até sua postura de pé. Se ele nunca a tivesse visto, poderia ter ficado embasbacado. Só que ele já a vira antes. Tinha certeza.

Lord Sebastian Summerhays, que honra. Não é frequente termos visitas tão ilustres. Procura uma flor para dar de presente a uma pessoa da sua estima? Temos pelargónios raros de nossa própria hibridação que são sempre apreciados. Procuro uma mulher que, segundo me disseram, vive aqui. miss Kelmsleigh. Indicou com a cabeça a caixa que trazia. – Devo devolver-lhe algo que lhe pertence. Miss Kelmsleigh não está em casa. Deve voltar muito em breve, se quiser aguardar. Ou pode deixar a caixa comigo.

Bom, era aquilo. Podia largar a caixa e ir embora. Não havia razão para não confiar que mrs. Joyes a entregasse a miss Kelmsleigh quando voltasse. Se avisasse para não abri-la, era bastante provável que controlasse a curiosidade.  Se estiver voltando em breve, eu mesmo lhe darei». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

Cortesia de EASA/JDACT

 JDACT, Madeline Hunter, Escrita, Saber, 

Madeline Hunter. Deslumbrante. «A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção. Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna»

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«(…) Demais então. Avise a Fenwood para não recebê-la na próxima vez. Não permita que ela se assenhore do seu apartamento e entre nele a seu bel-prazer. Existira sempre o perigo de a mãe deles transformar Morgan numa criança assim que tivesse a oportunidade. Intrometia-se, o mimando e dominando, até ele perder o direito de ser um homem distinto. Esse havia sido o motivo de Sebastian se mudar para aquela casa quando o irmão voltou da guerra. Sua presença assegurava que a mãe não expandiria demais o seu domínio, especialmente no que dizia respeito ao filho mais velho. Sempre foi melhor em lidar com ela do que eu. Como em tantas outras coisas, declarou Morgan. Não havia nada que dizer adiante daquilo, por isso ambos voltaram-se aos jornais. Disse que esteve perto de Brighton, ontem? Ouviu alguma coisa acerca do espectáculo no Duas Espadas? Espectáculo? Morgan estreitou os olhos para ler as letras impressas. Deixou sair um sorriso. Um homem levou um tiro de uma amante. Aquilo é que deve ter sido um bom teatro. Ele não morreu, parece. Mesmo assim, não se deve ter falado de outra coisa lá em baixo. O que está lendo aí? Morgan corou. Um dos jornais cor-de-rosa da nossa mãe. De Brighton? Londres.

Maldição! Sir Edwin estava certo. A história provavelmente chegara à cidade antes de qualquer uma das suas vítimas. Evidentemente, não havia nomes no jornalzinho, porém. Ainda. O ritual terminou às onze horas. Sebastian se despediu e voltou ao próprio quarto. O criado pessoal o saudou com uma carta selada na mão. O endereço não estava correcto, meu senhor. Sebastian pegou a carta. Escrevera-a para miss Kelmsleigh e enviara-a por um mensageiro para a casa do pai. Não vivem mais lá? Mrs. Kelmsleigh sim, e miss Sarah Kelmsleigh. Audrianna Kelmsleigh, porém, não. O lacaio perguntou e lhe disseram que ela fora morar no Middlesex, perto da aldeia de Cumberworth. Sebastian levou a carta para o quarto. Abriu uma gaveta e olhou para a pistola que trouxera do Duas Espadas. Suas tentativas de devolvê-la de forma discreta não tinham dado certo. Podia mandar o despachante a Cumberworth. Se miss Kelmsley havia se mudado para o campo, bastariam algumas perguntas para localizá-la. Podia igualmente embrulhar a pistola e dá-la ao criado, e dar o assunto por encerrado. Viu a pistola numa mão suave, feminina. Viu olhos verdes de mulher cintilando de vida, depois acendendo de fascínio e paixão, e, por fim, esmaecendo de melancolia. Imaginou ela atravessando a hospedaria até à carruagem, fingindo não reparar que os outros clientes olhavam e sussurravam. Disse ao criado para mandar buscar o cavalo.

Cumberworth continuava uma aldeia rural, mas Londres se aproximava a cada ano que passava. Já fora absorvida pelos subúrbios da cidade, um dos muitos vilarejos do Middlesex que viam recém-chegados se misturar com velhos residentes e agentes imobiliários decompor quintas em pequenas propriedades para as famílias prósperas da sua vizinha maior. A chegada de Sebastian, portanto, não atraiu grande atenção. Desceu a rua principal, passando por lojas em edifícios velhos de tabique e casas de pedra alinhadas. Procurou uma taverna.

O Baron’s Board não estava muito cheio às duas da tarde e a cerveja de Sebastian chegou rápido. Bebeu em pé, submetendo-se à inspecção curiosa do proprietário. Também está assim húmido na cidade?, perguntou o homem, secando canecas de cerveja. Pior, respondeu Sebastian. Está a caminho de um lugar mais seco? Não, vim à procura de uma pessoa para tratar de negócios. Talvez a conheça. Miss Kelmsleigh. O proprietário estalou a língua… Eu conheço ela e as amigas. Todas as pessoas de Cumberworth conhecem as hóspedes de mrs. Jones. Ah, conhecem? Acho que miss Kelmsleigh é prima dela, não sua hóspede. É difícil saber do que chamar aquelas mulheres, não acha? O resto não são parentes, não me parece. Só um grupo de mulheres que vieram de visita e nunca mais foram embora. Mrs. Joyes vive na aldeia? Tem propriedade a pouca distância. Uma casa boa e um bom pedaço de terra. Cultiva flores numa estufa grande. Vende-as em Londres a floristas chiques. A casa dela fica um tanto afastada da rua, por isso há uma placa pintada no local onde é preciso virar. Flores Preciosas, é assim que o negócio dela se chama. Estalou novamente a língua. Até parecem boa gente. São reservadas. Não há razão para pensar que haja alguma coisa imprópria, mas as pessoas falam, não é mesmo? Sem dúvida. Sebastian acabou de beber a cerveja e pediu indicações para chegar ao letreiro do Flores Preciosas. Quinze minutos depois, seguia pelo caminho privado que conduzia à casa de mrs. Joyes». In Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.

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sexta-feira, 28 de junho de 2024

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras…»

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O Rei de Marfim

«(…) Por areias e papirais marginam o rio sagrado e junto de frescas nascentes avistam enfim, a brilhar ao sol, o palácio das portas de cedro e janelas de cristal, e ante o trono encastoado de safiras ajoelham e beijam a mão do Preste João das Índias... ai menina! Dizem que no regresso lutou com os gigantes de um só olho e com a dextra alçando a cruz da espada fez frente aos enleios da feiticeira circe... o infante, minha dona, não é criatura deste mundo ... Tu ouvias, calado, a cismar, pensavas já, talvez, que um dia haverias de enviar teus embaixadores a esse rei cristão das terras distantes... mas a tua tia Filipa ali estava a falar vestida de negro, cabelo negro, o poço dos olhos negrume de água salobra fetos e salamandras... saíra à mãe, ao sangue de Urgel... sua irmã Isabel, a tua mãe, dizia ela que era branca, esguia, loira, tu não chegaste a conhecê-la...

Era verdade, senhor meu pai? Ele sorria entre sisudo que sempre se mostrava. Não, não era verdade, invenções de simples e crédulos, de servos e gente do povo, de algum jogral cego a cantar fadários nos arcos da rua Nova, com seu espantado respeito e maravilhamento, como se estivessem a imaginar seres fabulosos, cosiam lá entre si ao que ouviam e iam passando de boca a orelha acrescentamentos e remendos de fantasia. Não, saíra do reino por fins de Junho de vinte e cinco, depois de ter ido à corte tomar a bênção do rei seu pai e despedir-se do irmão Duarte, que ajudava já nas canseiras da governação, entrara em Castela por alfaiates e ao fim de três jornadas atingia Ciudad Rodrigo, subira até Valladolid, corte de poetas, a ver em seu paço o rei João primo co-irmão, longas caminhadas de paladinos...

Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras não dizidoiras, a brejeirice dos trovadores, ouvidas aos cavaleiros sem a presença feminina... fungavam risotas ao pronunciá-las, eu até gostava... porque é que a aia as queria esconder dos meus ouvidos? Não as declaravam diante das damas nos serões reais?..., com seus quarenta cavaleiros e homens de pé, a carriagem bem aparelhada, seguia o infante pelas sendas do vento e da água, por florestas cerradas, vales descobertos, desfiladeiros cortados no cerne de montanhas de lobo, urso e javali, descansando no desconforto de albergues ermos, em catraias de portelas onde sob o cascalho esfarelado e nas frinchas das penhas o tojo rasteiro, a urze, a carqueja, o espinheiro, enregelados da nortada ou queimados do Suão, sugam a última lentura da terra. Não, não se tratava de peregrinação de cavaleiros da Távola Redonda em demanda do Santo Graal nem desafio de magriços e seus companheiros para desagravo de damas... pelo caminho iam conversando: Quando chegares a Inglaterra, infante, receberás a garroteia, estou em crer... Cala-te, Álvaro Vaz, também terás a tua, como teu pai». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

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