sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

31 com Poesia. Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Fomes, país. O riso solto. A dentadura etérea, bola. Miséria»

Cortesia de wikipedia e jdact

Alcoólicas
[…] III
«Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estiola galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotómicas líricas, e a gaicagem
Se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado quotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é liquida».

IV
«E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
Meu casaco rosso tecido de acuçena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena».

V
«Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo

Fomes
País
O riso solto
A dentadura etérea
Bola

Miséria.
Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Ama-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT

Por Amor a uma Mulher. No 31. Domingos Amaral. «Homem novo, mas com prematura sabedoria, o Trava parecia já esperar aquela reacção e declarou de pronto que o irmão era um frouxo…»

jdact

Coimbra, Julho de 1117
«(…) O Trava sorriu. Nu e deitado de costas na cama, com as pernas abertas e o sexo grande, os braços musculados e as mãos atrás da cabeça, era um macho forte e declarou, orgulhoso: com o meu irmão Bermudo é que não foi. Maldoso, executou um golpe certeiro não só no ausente, mas também na rainha, que sentiu uma estocada no amor-próprio. Aflita, escondeu a cara na axila dele e murmurou: está sempre murcho. Dona Teresa revoltou-se então contra as circunstâncias desagradáveis da sua existência, sentando-se com um ar zangado. O que posso fazer?, perguntou. Mandar o Bermudo de volta para a Galiza, desfazendo o casamento? O seu companheiro encolheu os ombros: basta a vossa palavra. Mas não desejo humilhar o meu irmão, temos de lhe dar algo em troca. Espantada, dona Teresa interrogou-se: o quê? O governo de Coimbra? A seu lado, o nobre galego franziu a testa. Isso é de mais.
Devia querer a cidade para si, mas nada adiantou sobre esse oculto desejo. Entusiasmada, a rainha propôs que dessem Viseu a Bermudo, o que obteve a concordância do amante, que acrescentou: temos também de lhe arranjar uma esposa legítima. Dona Têresa agitou-se de imediato, nervosa. Uma esposa? Quem? Fernão Peres pareceu enfadado e explicou-se com forçada paciência: alguém que para ele seja uma honra desposar. E mais nova, para o Bermudo se espevitar e lhe fazer uns filhos. Com um toque de acidez na fala, a rainha protestou: insinuais que ele murcha porque me acha velha?
Homem novo, mas com prematura sabedoria, o Trava parecia já esperar aquela reacção e declarou de pronto que o irmão era um frouxo. Dona Teresa logo amansou e ele prosseguiu, era evidente que planeara os argumentos com antecedência. Uma mulher mais nova é um bom engodo para o Bermudo.
Dona Teresa, que o nobre galego parecia ter a arte de convencer com rapidez, desatou logo a enumerar possíveis candidatas: pode ser da família da Maia, ou da família Sousa. São gente cá do Condado e têm filhas em idade de casar! Contudo, Fernão Peres torceu o nariz, insatisfeito. Os Trava não eram estimados pelos nobres de Entre Douro e Minho, seria difícil alguma dessas famílias aprovar tal casamento. Além disso, acrescentou, devia ser alguém de sangue real. Como se tivesse ouvido um disparate, dona Teresa insurgiu-se: de sangue real só existem as minhas filhas! Para surpresa dela, Fernão sorriu-lhe. Dona Teresa, ao dar-se conta do plano, pareceu momentaneamente chocada com a perversidade da solução. O Bermudo, meu marido, casar com uma filha minha? O arcebispo de Braga ainda me excomunga!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

No 31. Tópicos para a História da Civilização. Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «Quantas coisas digo que não faço quantas voltas sem me decidir a pôr meu pé em terra»

jdact

Poetas Santões e Filósofos do Ocidente do Ocidente
«(…) Um dia, Ibn al-Arabi entrou em sua casa perturbado com o espectáculo das gentes, empenhadas em contradizer a lei de Deus. Al-Uryani disse-lhe: preocupa-te com Deus. Al-Arabi seguiu depois para casa de outro mestre, Abu Imran de Mértola que lhe disse: preocupa-te contigo mesmo! Perplexo, Al-Arabi respondeu: Al-Uryani quer que eu me preocupe com Deus e tu dizes para me preocupar comigo mesmo. O Mertolense replicou: o que disse Al-Uryani é a verdade. O que sucede é que cada um de nós te indica o que o seu próprio estado místico exige. Al-Arabi voltou a casa do Louletano e contou-lhe o sucedido. Abu Imran disse bem porque ele te indicou o caminho da perfeição enquanto que eu te indiquei qual é o companheiro da viagem.
Al-Mertuli, Abu Ymran Musa. Poeta e sufi. Antes da batalha de Alarcos, o califa almóada Yacub visitou-o em sua casa. Mais tarde enviou-lhe um mensageiro com uma certa quantia: o teu senhor tem mais necessidade desse dinheiro do que eu. Toma cem dinares de proveniência lícita. Diz-lhe que, para a sua manutenção pessoal, gaste só deste dinheiro e obterá a vitória. É dele o poema:

Quantas coisas digo que não faço
Quantas voltas sem me decidir a pôr meu pé
em terra.
Critico os meus olhos e não se convencem
aconselho minha alma não aceita
os meus conselhos.
Ai quantas coisas se desculpam dizem
talvez mais tarde. Quantas se demoram.

Outros sufis de nomeada, no século XII, foram Abu Abd Allah b. al-As al-Bayy, alfaqui de Beja, e Abu Abd Allah b. Zayd al Yeburi, de Évora. Este último explicou o Corão e ensinou gramática na mesquita al-Udays de Sevilha. Uma noite, lia uma obra em que se refutava al-Gazalli e cegou de repente. De joelhos, jurou que não voltaria a ler o contestário de al-Gazalli. Então Deus devolveu-lhe a vista. Ibn al-Sid (Silves 1052-Valencia 1127). Ficou conhecido como o de Badajoz mas al-Makkari dá-o como natural de Silves. Amigo de Umar al-Mutawakkil, senhor de Évora e depois último rei berbere de Badajoz. Viveu em Albarracin, Toledo, Saragoça e Valência. Polemizou com Ibn Bayya.
Matemático e poeta, escreveu livros de temas filológicos, de crítica literária, de gramática. De Aristóteles conhece a Lógica, a Metafísica e também o Timeu de Platão. Introduz Al-Farabí no Andaluz. Fala em Tales e Zenão.
Obras principais:

Livro do Aviso Equânime acerca das Causas
que engendram as Discrepâncias de Opinião no Islão (Kitab alinsaf…),
o Livro das Questões (Kitab al-Masail) e principalmente o Livro dos Círculos (Kitab al hadaiq).

In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

Cortesia de ICamões/JDACT

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

A Guerra dos Tronos George RR Martin. «Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá, todas as velhas histórias lhe tinham acorrido ao cérebro…»

Cortesia de wikipedia e jdact

As Crónicas de Gelo e Fogo
«Deveríamos regressar, insistiu Gared quando os bosques começaram a escurecer ao redor do grupo. Os selvagens estão mortos. Os mortos o assustam?, perguntou Sor Waymar Royce com não mais do que uma sugestão de sorriso no rosto. Gared não mordeu a isca. Era um homem velho, com mais de cinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir. Um morto é um morto, respondeu. Nada temos a tratar com os mortos. Mas estão mortos?, perguntou Royce com suavidade. Que prova temos disso? Will os viu, disse Gared. Se ele diz que estão mortos, é prova suficiente para mim. Will já sabia que o arrastariam para a disputa mais cedo ou mais tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde. Minha mãe disse-me que os mortos não cantam, contou Will. Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will, respondeu Royce. Nunca acredite em nada do que ouvir junto à mama de uma mulher. Há coisas a aprender mesmo com os mortos, sua voz gerou ecos, alta demais na penumbra da floresta.
Temos perante nós uma longa cavalgada, salientou Gared. Oito dias, talvez nove. E a noite está para cair. Sor Waymar Royce olhou o céu de relance, com desinteresse. Isso acontece todos os dias por esta hora. Você perde a virilidade com o escuro, Gared? Will via o aperto em torno da boca de Gared, a ira só a custo reprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuz negro de seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulha da Noite, em homem e em rapaz, e não estava acostumado a ser desvalorizado. Mas era mais do que isso. Will conseguia detectar no homem mais velho algo mais sob o orgulho ferido. Era possível sentir-lhe o gosto: uma tensão nervosa que se aproximava perigosamente do medo.
Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia quatro anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá, todas as velhas histórias lhe tinham acorrido ao cérebro, e suas entranhas se tinham feito em água. Era agora um veterano de cem patrulhas, e a escura e infinita terra selvagem a que os sulistas chamavam floresta assombrada já não tinha terrores para si. Até aquela noite. Algo era diferente então. Havia naquela escuridão algo de cortante que lhe fazia eriçar os pelos da nuca. Cavalgavam havia nove dias, para norte e noroeste, e depois de novo para norte, cada vez para mais longe da Muralha, seguindo sem desvios a trilha de um bando de salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o anterior. Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava do norte e fazia as árvores sussurrarem como coisas vivas. Durante todo o dia Will tivera uma sensação que era como se alguma coisa o estivesse observando, algo frio e implacável que não gostava dele. Gared também sentira. Will nada desejava com tanta força como cavalgar a toda a pressa de volta à segurança da Muralha, mas este não era um sentimento que se pudesse partilhar com um comandante.
Especialmente com um comandante como aquele. Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antiga com demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado de dezoito anos, de olhos cinzentos, elegante e esbelto como uma faca. Montando no seu enorme corcel de batalha negro, o cavaleiro elevava-se bem acima de Will e Gared, montados nos seus garranos de menores dimensões». In George RR Martin, A Guerra dos Tronos, 2007, Saída de Emergência, LeYa, 2010, ISBN 978-989-637-010-7.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT

Assim foi Auschwitz Primo Levi. «… ora descarregando carvão ou sacos de cimento ou outras coisas ainda, todas extremamente pesadas; trabalhos que, naturalmente, eram executados ao ar livre…»

jdact

«(…) Raramente encontrávamos lá dentro alguma fibra de carne. Como bebida, de manhã e à noite era distribuído meio litro de uma infusão de substituto de café, sem açúcar; só aos domingos vinha adoçado com sacarina. Em Monowitz havia falta de água potável; a água que havia nos lavatórios servia só para uso externo, sendo de origem fluvial e chegando ao Campo sem ser filtrada, tornando-se, por isso, altamente suspeita: tinha um aspecto límpido, mas, vista numa camada espessa, parecia amarelada; tinha um gosto entre o metal e o enxofre. Os prisioneiros eram obrigados a tomar duche duas ou três vezes por semana. Esses banhos, porém, não eram suficientes para manter a higiene pessoal, pois a quantidade de sabão que nos era dada era parcimoniosa: era distribuído apenas uma vez por mês, sob a forma de um sabonete de 50 gr. de péssima qualidade. Tratava-se de um pedaço rectangular, muito duro, desprovido de substâncias gordas, mas rico em areia, que não fazia espuma e se despedaçava com extrema facilidade, de modo que após um ou dois banhos estava totalmente consumido. Depois do banho, não havia possibilidade de secar o corpo ou de o enxugar, pois não havia toalhas; e, quando saíam do banho, os prisioneiros tinham de correr nus, independentemente da estação do ano, fossem quais fossem as condições atmosféricas e meteorológicas e a temperatura, até aos seus blocos, onde eram guardadas as roupas.
Os trabalhos atribuídos à grande maioria dos prisioneiros eram manuais e todos muito cansativos, inadequados às condições físicas e a capacidade dos condenados; poucos eram aqueles que ficavam empregados em trabalhos que tivessem alguma afinidade com a profissão ou ofício que exerciam na sua vida civil. Assim, nenhum dos dois autores deste relatório pôde alguma vez trabalhar no Hospital ou no laboratório químico da Buna-Werke, foram ambos obrigados a partilhar a sorte dos seus companheiros e tiveram de se submeter a esforços superiores às suas forças, ora cavando com pá e picareta, ora descarregando carvão ou sacos de cimento ou outras coisas ainda, todas extremamente pesadas; trabalhos que, naturalmente, eram executados ao ar livre, no Inverno e no Verão, sob neve, chuva, sol e vento, sem indumentária suficiente para se protegerem das intempéries e das baixas temperaturas. Esses trabalhos, além disso, tinham de ser efectuados a um ritmo acelerado, sem qualquer pausa, à excepção do intervalo de uma hora, do meio-dia à uma, para a refeição do almoço; ai de quem fosse surpreendido parado ou em atitude de descanso durante as horas de trabalho.

A partir desta nossa rápida descrição das modalidades de vida no Campo de concentração de Monowitz, é possível deduzir-se facilmente quais eram as doenças mais frequentes que atingiam os prisioneiros e as suas respectivas causas. A classificação pode ser feita nos seguintes grupos:

1) doenças distróficas;
2) doenças do sistema gastrointestinal;
3) doenças devidas ao frio;
4) doenças infecciosas gerais e cutâneas;
5) doenças cirúrgicas;
6) doenças de trabalho.

Doenças distróficas. Se do ponto de vista quantitativo a alimentação ficava muito aquém do necessário, do ponto de vista qualitativo era desprovida de dois importantes factores: as gorduras e, principalmente, as proteínas animais, salvo os míseros vinte ou 25 gramas de salame que eram fornecidos duas ou três vezes por semana. Ademais, faltavam vitaminas. Assim se explica como essas e outras tantas carências alimentares eram o ponto de partida daquelas distrofias que atingiam quase todos os prisioneiros, desde as primeiras semanas da sua estada». In Primo Levi, Assim foi Auschwitz, 2015, Penguin Randon House Grupo Editorial, Objectiva, 2015, ISBN 978-989-877-569-6.

Cortesia de Objectiva/JDACT

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

A Chave de Salomão. José Rodrigues dos Santos. «O campo magnético foi criado e está a tornar-se mais forte à medida que os protões aceleram. Não há problemas neste sector»

jdact

«(…) Bellamy, movimento! apresentou-se o velho do olhar gelado, a voz baixa e rouca dos que estão habituados a comandar e a ser obedecidos com um estalar de dedos. Frank Bellamy. O segurança suíço observava o cartão, embasbacado. O senhor é da..., é da..., CIA, confirmou Bellamy num tom ácido. Parabéns, rapaz, parece que sabe ler. É um fucking génio. Um burburinho nervoso enchia a grande sala de controlo do CERN. Engenheiros, técnicos informáticos e físicos acotovelavam-se no salão, os primeiros com a atenção presa nos monitores, os últimos em silêncio ou a trocarem observações num sussurro nervoso e expectante. A tensão tornara-se tão espessa que parecia palpável. Não era de admirar. O trabalho que tinham em mãos envolvia grande responsabilidade, pois permitia responder às questões mais fundamentais da nossa existência. Como foi o momento da criação do universo? Quantas dimensões existem? Há um anti-universo? O zumbido da electrónica a computar e o murmúrio dos aparelhos de ar condicionado a funcionarem no máximo enchia a sala de controlo. O rumor permanente era rompido apenas pela voz seca do director a coordenar a operação e pelas respostas sincopadas dos técnicos a quem ia dirigindo as perguntas à vez, como um maestro a harmonizar uma orquestra. O Booster?, quis saber o director, a mão agarrada a um mug de café com o logotipo do CERN. Já está a funcionar a toda a força?
Negativo, foi a resposta do técnico que monitorizava o Booster. Ainda se encontra em aceleração. Qual o valor? Energia, setenta megaelectrões-volt e a crescer. A próxima injecção será no anel um, segmento um, dois pacotes. Cbeck. O director calou-se. Setenta megaelectrões-volt era uma energia relativamente baixa, mas o facto é que as micropartículas tinham acabado de sair do Liriac 2 a cinquenta megaelectrões-volt e era normal que o Booster levasse algum tempo a chegar aos um vírgula quatro gigaelectrões-volt necessários para os protões serem encaminhados para o mais velho acelerador de parculas do CERN, o Proton Synchroton. Bebericou um trago de café, enquanto seguia a informação no seu monitor. Paul, como estão os magnetos?, perguntou. Em linha com o ritmo de aceleração dos protões? Afirmativo, confirmou Paul, responsável pela monitorização do funcionamento dos magnetos de nióbio e titânio. O campo magnético foi criado e está a tornar-se mais forte à medida que os protões aceleram. Não há problemas neste sector.
Os olhos castanhos do director não largavam o ecrã, onde se sucediam números a um ritmo que parecia crescente. Max, o hélio?, questionou, dirigindo-se a um terceiro técnico. Permanece estável? Afirmativo. Os olhos colados ao monitor ficaram presos numa coluna e o que viu manifestamente não lhe agradou. Fez uma careta acompanhada por um grunhido, pousou o mug de café junto ao ecrã e voltou-se para o outro lado da sala. Como vai o PS, Heinrich?, perguntou, impaciente, referindo-se ao Proton Synchroton no jargão coloquial do CERN. Já está a postos para receber os protões? Negativo, Herr Direktor. Falta algum tempo para chegar aos um vírgula quatro gigaelectrões-volt. Qual o valor agora? Energia, noventa megaelectrões-volt e a crescer. Porra, Heinrich, isso está atrasado!, protestou, consciente de que o timing era crucial para o sucesso da operação; a passagem do Booster para a fase seguinte não podia sofrer demoras. Despacha-te com isso! Quero o PS em movimento quando os protões atingirem o valor de um gigaelectrões-volt, ouviste? Ja wol, Herr Direktor.
A impressão de que estava a ser seguido tornara-se muito forte nos últimos minutos e levou Frank Bellamy a deter-se junto de uma esquina do corredor e a lançar um longo e cuidadoso olhar para trás. Examinou o espaço vazio em busca de movimentos reveladores ou de sombras incriminatórias, mas nada detectou de anormal. Susteve a respiração e permaneceu trinta segundos em silêncio absoluto, atento ao mais pequeno som estranho que ali se pudesse escutar. A verdade, porém, é que o crescente rumor do acelerador de partículas em plena operação tornava difícil destrinçar qualquer ruído suspeito, o que inutilizava aquele exercício. Se alguém de facto o seguia, percebeu, não seria assim que o descobriria.
Respirou fundo. Be damned!, praguejou entre dentes. Ou estou a ficar senil e já vejo fantasmas por toda a parte ou então o gajo que me anda a seguir é muito bom... Dobrou a esquina e seguiu em frente, ainda atento aos espectros que pressentia a assombrarem os corredores. Sabia que a intuição raramente o enganava nessas coisas; se tinha a impressão de que estava a ser seguido era porque de facto isso sucedia. Já sentira coisas assim em Berlim Oriental e em Adis Abeba, nos saudosos tempos da Guerra Fria, e na altura constatara que tinha razão e conseguira liquidar os seus perseguidores num beco escondido. Quem lhe garantia que o mesmo não se estava a passar nesse momento? Mesmo assim, reconsiderou. O lugar onde se encontrava não era normal e talvez isso lhe estivesse a nublar a intuição e o raciocínio. Quem sabe se na origem do problema não estaria o poderoso campo criado pelos grandes magnetos que operavam nessa altura? Tinha perfeita consciência de que, a partir de determinado limiar, o magnetismo pode interferir nos processos cognitivos dos seres vivos, e talvez uma coisa dessas lhe estivesse a suceder». In José Rodrigues dos Santos, A Chave de Salomão, 2014, Gradiva, 2014, ISBN 978-989-616-602-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT

A Trégua. Primo Levi. «… pois diante da liberdade nos sentíamos confusos, esvaziados, atrofiados, inadaptados. Mas veio a noite: os companheiros adoentados adormeceram, adormeceram também Charles e Arthur com o sono da inocência…»

jdact e wikipedia

O Degelo
«(…) Tais coisas, mal diferenciadas então, e percebidas pela maioria somente como uma repentina onda de fadiga mortal, acompanharam a nossa alegria pela libertação. Por isso, poucos dentre nós correram ao encontro dos salvadores, poucos caíram em oração. Charles e eu permanecíamos de pé, junto à fossa, com os membros lívidos, enquanto outros punham abaixo o arame farpado; depois tornamos a entrar com a padiola vazia, levando a notícia aos companheiros. durante todo o resto do dia nada ocorreu, coisa que não nos surpreendera, uma vez que estávamos fazia tempo acostumados com isso. No quarto, o beliche do falecido Somógyi foi de pronto ocupado pelo velho Thylle, com visível nojo dos meus dois companheiros franceses. Thylle, pelo que eu sabia então, era um triângulo vermelho, um prisioneiro político alemão, e era um dos velhos do Lager; como tal, pertencera de direito à aristocracia do campo: não fizera trabalhos braçais (pelo menos nos últimos anos) e recebera alimentos e roupas da sua casa. Por essas mesmas razões, os políticos alemães eram raramente hóspedes da enfermaria, onde desfrutavam de diversos privilégios: primeiramente, o de fugir das seleções. Pois, no momento da libertação, ele era o único, fora nomeado pelos SS que fugiam para o cargo de chefe do barracão do Bloco 20, de que faziam parte, além do nosso círculo de doentes altamente infectados, a Secção TBC e a Secção Disenteria. Sendo alemão, levara muito a sério essa precária nomeação. Durante os dez dias que separaram a saída dos SS da chegada dos russos, enquanto todos combatiam a última batalha contra a fome, o gelo e a doença, Thylle fizera diligentes inspecções no seu novíssimo feudo, verificando o estado do chão e das tigelas e o número das cobertas (uma para cada hóspede, vivo ou morto). Numa das suas visitas ao nosso quarto, elogiara Arthur, em virtude da ordem e da limpeza que soubera manter. Arthur, que não compreendia o alemão, e muito menos o dialecto saxão de Thylle, respondera-lhe vieux dégoûtant e putain de boche; apesar disso Thylle, daquele dia em diante, com evidente abuso de autoridade, adquirira o hábito de vir todas as noites ao nosso quarto para se servir da confortável privada: era a única, em todo o campo, com a qual tomávamos regularmente todos os cuidados, e a única situada nas proximidades de um aquecedor.
Até aquele dia, o velho Thylle fora um estranho para mim e, portanto, um inimigo; além disso, alguém do poder, e, portanto, um inimigo perigoso. Para as pessoas como eu, vale dizer, para a generalidade do Lager, outras nuances não havia: durante todo o longuíssimo ano transcorrido no Lager, eu jamais tivera a curiosidade ou a oportunidade de indagar a respeito das complexas estruturas da hierarquia do campo. O tenebroso edifício de potências terríveis continuava totalmente acima de nós, e o nosso olhar se dirigia para o solo. Entretanto, foi esse mesmo Thylle, velho militar endurecido por cem lutas pelo seu partido, e dentro do seu partido, e petrificado pelos dez anos de vida feroz e ambígua no Lager, o companheiro e o confidente de minha primeira noite de liberdade.
Durante todo o dia, tivemos muito que fazer para encontrar tempo de comentar o acontecimento, que sentíamos realmente marcar o ponto crucial de toda a nossa existência; e talvez, inconscientemente, inventávamos o que fazer, justamente com o objectivo de não ter tempo, pois diante da liberdade nos sentíamos confusos, esvaziados, atrofiados, inadaptados. Mas veio a noite: os companheiros adoentados adormeceram, adormeceram também Charles e Arthur com o sono da inocência, pois estavam no Lager havia um mês, e ainda não tinham sorvido o veneno: eu, sozinho, embora exausto, não encontrava o sono, por causa do esgotamento da doença. Doíam-me todos os membros, o sangue pulsava convulsivamente no crânio, e eu me sentia invadir pela febre. Mas não era apenas isso: como se um dique houvesse desmoronado, logo quando as ameaças pareciam desaparecer, quando a esperança de voltar à vida deixava de ser considerada absurda, eu me encontrava subjugado por uma dor nova e mais vasta, antes sepultada e relegada às fronteiras da consciência, por outras dores mais urgentes: a dor do exílio, da casa distante, da solidão, dos amigos perdidos, da juventude perdida, e da multidão de cadáveres nas proximidades». In Primo Levi, A Trégua, 1963, Editorial Teorema, colecção Diário de Viagem, 2010, ISBN: 978-972-695-937-3.

Cortesia de ETeorema/JDACT

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A Chave de Salomão. José Rodrigues dos Santos. « O desconhecido rezingou qualquer coisa imperceptivel e Jean-Claude, indiferente e compenetrado na sua tarefa, retomou a revista com o scanner de metais»

jdact

«O velho de olhar glacial atravessou o átrio em passo firme e aproximou-se do dispositivo de controlo de acesso ao complexo do CERN. Não se recordava de ver todo aquele aparato de segurança quando ali escrevera da úl􀆟ma vez, mas umas bandeirinhas tricolores ao canto lembraram-lhe que o presidente francês deveria visitar as instalações na semana seguinte. Fucking Frenchies..., rosnou entre dentes. Rabujando de desagrado, ignorou o tapete rolante onde deveria depositar os objectos metálicos que trazia no bolso para a inspecção de segurança por raios X. Em vez disso dirigiu-se directamente aos torniquetes de passagem e só se deteve diante do detector de metais. Ficou então imóvel, quase uma estátua, apenas o movimento impaciente dos dedos e dos olhos azuis frios e perscrutadores a darem sinal de vida. Um segurança suíço fez-lhe um gesto para avançar. O visitante deu dois passos em frente e, atento ao nome Jean-Claude Bloch que o segurança trazia no crachá pregado ao peito, cruzou o detector. Soou nesse momento um sinal de alarme e acendeu-se uma luz vermelha sobre a máquina. O recém-chegado trazia metais. Com um scanner na mão, Jean-Claude aproximou-se do homem de olhos azuis. Levante os braços, por favor. O idoso obedeceu e o segurança colou-lhe o scanner às ancas. De imediato o engenho emitiu um zumbido. O visitante meteu as mãos ao bolso e, com um sorriso sem humor, como uma criança apanhada a roubar chocolates da despensa, extraiu os objectos metálicos que ali trazia. São apenas as chaves, umas moedas e o telemóvel, murmurou. Nada de especial, como vê. Jean-Claude olhou-o reprovadoramente e, com uma ponta de irritação a trepar-lhe no tom de voz, indicou o tapete rolante da máquina de raios X. Da próxima vez que cá vier ponha os metais ali, se não se importa. Isso facilitar-nos-ia a tarefa.
O desconhecido rezingou qualquer coisa imperceptivel e Jean-Claude, indiferente e compenetrado na sua tarefa, retomou a revista com o scanner de metais. Verificou as pernas, mandou o recém-chegado tirar os sapatos e inspeccionou-os também. Depois colou-lhe o engenho aos ombros e aos braços. Quando chegou ao peito o scanner voltou a emitir um zumbido. Damn!, praguejou o velho, contrariado. Esqueci-me da minha fucking amiguinha. Meteu a mão por baixo do casaco e retirou um objecto metálico colado à camisa. Os olhos do segurança arregalaram-se de susto ao reconhecer o objecto na mão do visitante. Uma pistola. Jean-Claude deu um salto para trás, o alarme estampado no rosto e na postura do corpo, e com um movimento rápido extraiu do coldre a sua própria arma. Freeze!, gritou, agarrando com as duas mãos uma Glock que apontou ao idoso. Não se mexa! Alertados pela reacção do colega, os restantes seguranças sacaram também as suas armas e viraram-nas para o visitante. A sirene de alerta começou entretanto a soar por todo o átrio, um uivo ondulado e urgente, e gerou-se a confusão. Algumas pessoas gritavam de pânico e outras corriam para sair dali. Parecia ter-se desencadeado subitamente um pandemónio; num instante estava tudo tranquilo, logo a seguir o caos generalizara-se.
Vamos lá, rapazes, não exagerem, protestou o idoso, ainda de pistola na mão e com várias armas apontadas para ele. É apenas o meu velho Colt, que diabo! Um cidadão honesto já não pode andar protegido neste mundo tão violento? Quieto!, insistiu Jean-Claude, a Glock de serviço apontada ao alvo. Baixe-se muito devagar e pouse a pistola no chão. Brandiu a sua arma, a sublinhar o aviso. Muito devagar, ouviu? Se fizer qualquer movimento repentino, terei de disparar. Está bem, está bem, assentou o visitante, aparentemente pouco impressionado com toda a perturbação que se gerara em volta dele. Conheço os procedimentos, não se preocupem. O velho baixou-se devagar e pousou o Colt no chão. Depois voltou a erguer-se, os braços no ar, até fitar de novo os homens que lhe apontavam as armas. Com um movimento rápido, o segurança diante dele pontapeou a pistola para longe. Depois, já mais tranquilo, fez com a arma um sinal a indicar o chão. Deite-se. Ponha as mãos atrás da nuca! O desconhecido revirou os olhos de enfado. Oiça, não acha que está a exagerar? O que se passou foi simplesmente um pequeno... Deite-se!
O visitante permaneceu um longo instante em pé, os olhos gelados e inquisiti-vos a medirem os seguranças que lhe apontavam as armas e a avaliarem friamente a situação, a mente a fazer cálculos sobre a melhor maneira de proceder. Por fim suspirou, a decisão tomada, e baixou devagar os braços. Todos esperavam que se deitasse no chão, como lhe fora ordenado, mas manteve-se de pé, um ancião de fato azul-escuro e gravata vermelha rodeado por seguranças que lhe apontavam armas. Não ouviu o que eu disse?, insistiu Jean-Claude, brandindo a sua pistola. Deite-se imediatamente! Sempre com gestos lentos e precisos, os olhos sem largarem os homens que o cercavam, o desconhecido meteu de novo a mão no interior do casaco. Quieto!, gritou o segurança, outra vez muito alarmado, receando que o visitante tirasse do casaco uma segunda arma. Quieto ou disparo! Nem mais um movimento! Mas o idoso voltou a ignorar a advertência. Inseriu os dedos no bolso interior do casaco e, sempre sem pressas, extraiu o objecto que procurava e virou-o na direcção do segurança que o ameaçava. Um cartão.
Apesar do nervosismo, Jean-Claude desviou fugazmente os olhos e espreitou o cartão, primeiro a medo, depois tão intrigado que o estudou com maior atenção. O pequeno rectângulo plastificado tinha uma fotografia a cores do lado esquerdo a exibir um rosto, que o segurança comparou com o do seu portador; as íris azuis frias e calculistas eram as mesmas, tal como as rugas que lhe rasgavam os cantos dos olhos, o rosto longo e seco, o queixo quadrado e os cabelos tão brancos que pareciam farrapos de neve. Não havia dúvida, tratava-se do visitante. Analisou o resto do cartão. À direita estava um círculo azul com a cabeça de uma águia no meio e em baixo um longo código de barras. Entre a fotografia e o círculo encontravam-se os dados a identificar o titular do cartão. No topo a informação Employee ID 1123-XO, no meio a indicação Status: Directorate of Science and Technology, Director, e em baixo o nome e a referência ao nível cinco de acesso de segurança». In José Rodrigues dos Santos, A Chave de Salomão, 2014, Gradiva, 2014, ISBN 978-989-616-602-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

O Símbolo Perdido. Dan Brown. «O recinto parecia um santuário sagrado do mundo antigo. A verdade, porém, era ainda mais estranha. Estou a poucos quarteirões da Casa Branca»

jdact

Casa do Templo. 20h 33m
«O segredo é saber como morrer.
Desde o início dos tempos, o segredo sempre foi saber como morrer. O iniciado de 34 anos baixou os olhos para o crânio humano que segurava com as duas mãos. O crânio era oco feito uma tigela e estava cheio de vinho cor de sangue. Beba, disse ele a si mesmo. Você não tem nada a temer. Como rezava a tradição, ele havia começado aquela jornada vestido com os trajes ritualísticos de um herege medieval a caminho da forca, com a camisa frouxa deixando entrever o peito pálido, a perna esquerda da calça arregaçada até ao joelho e a manga direita enrolada até ao cotovelo. Do seu pescoço pendia um pesado nó feito de corda, uma atadura, como diziam os irmãos. Nessa noite, porém, assim como os companheiros que assistiam à cerimónia, ele estava vestido de mestre. O grupo que o rodeava estava todo paramentado com aventais de pele de cordeiro, faixas na cintura e luvas brancas. Em volta do pescoço usavam joias cerimoniais que cintilavam à luz mortiça como olhos espectrais. Muitos daqueles homens ocupavam cargos de poder lá fora, mas o iniciado sabia que as suas posições mundanas nada significavam entre aquelas paredes. Ali todos eram iguais, irmãos unidos pelo juramento compartilhando um elo místico. Correndo os olhos pelo impressionante grupo, o iniciado se perguntou quem, no mundo exterior, seria capaz de acreditar que todos aqueles homens pudessem se reunir num mesmo lugar…, principalmente naquele lugar. O recinto parecia um santuário sagrado do mundo antigo. A verdade, porém, era ainda mais estranha.
Estou a poucos quarteirões da Casa Branca. Aquele edifício colossal, situado no número 1.733 da Rua 16 Noroeste, em Washington, D.C., era a réplica de um templo pré-cristão, o Templo do Rei Mausolo, o primeiro mausoléu..., um lugar para onde se era levado após a morte. Diante da entrada principal, duas esfinges de 17 toneladas montavam guarda ao lado das portas de bronze. O interior era um labirinto de câmaras ritualísticas, corredores, alcovas secretas, bibliotecas e até mesmo um compartimento contendo os restos mortais de dois corpos humanos. O iniciado havia aprendido que cada cómodo daquele edifício guardava um segredo, mas sabia que nenhum deles ocultava mistérios mais profundos do que a câmara colossal na qual se encontrava agora, ajoelhado, segurando um crânio nas mãos. A Sala do Templo. A sua forma era a de um quadrado perfeito. E o ambiente era sombrio e grandioso. O tecto altíssimo se erguia a surpreendentes 30 metros, sustentado por colunas monolíticas de granito verde. Ao redor da sala, fileiras de cadeiras russas de nogueira escura, estofadas com couro de porco trabalhado à mão, estavam dispostas em níveis. Um trono de 10 metros de altura dominava a parede oeste, e um órgão escondido ocupava o lado oposto. As paredes eram um caleidoscópio de símbolos antigos..., egípcios, hebraicos, astronómicos, alquímicos e outros ainda desconhecidos.
Nessa noite, a Sala do Templo estava iluminada por uma série de velas minuciosamente posicionadas. O seu brilho fraco era complementado apenas por um facho de luar que entrava pela ampla clarabóia do tecto jogando luz sobre o elemento mais surpreendente da sala, um imenso altar feito de um bloco maciço de mármore belga preto polido, situado bem no meio do recinto quadrado. O segredo é saber como morrer, lembrou o iniciado a si mesmo. Chegou a hora, sussurrou uma voz. O iniciado deixou o seu olhar subir até ao rosto do distinto personagem vestido de branco à sua frente. O Venerável Mestre Supremo. O homem, de quase 60 anos, era um ícone norte-americano, estimado, robusto e dono de uma fortuna incalculável. Seus cabelos outrora escuros estavam ficando grisalhos, e o semblante conhecido reflectia uma vida inteira de poder e um vigoroso intelecto. Preste o juramento, disse o Venerável Mestre, com uma voz suave feito a frio. Complete a sua jornada. A jornada do iniciado, assim como todas as daquele tipo, havia começado no grau 1. Naquela noite, num ritual parecido com este de agora, o Venerável Mestre o vendara com uma faixa de veludo e pressionara uma adaga cerimonial contra seu peito nu, indagando: você declara seriamente, pela sua honra, sem influência de motivações mercenárias ou quaisquer outras considerações indignas, candidatar-se de forma livre e espontânea aos mistérios e privilégios desta irmandade? Sim, havia mentido o iniciado. Então que isso seja um estímulo à sua consciência, alertara o mestre, bem como a morte instantânea caso algum dia você venha a trair os segredos que lhe serão revelados». In Dan Brown, O Símbolo Perdido, 2009, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-252-014-0.

Cortesia de BertrandE/JDACT

Mulheres. Charles Bukowski. «Desculpa, respondeu. Eu compreendo. Lisa levantou os olhos para mim, as lágrimas corriam. A Lisa não deixa que aconteça nada de mau à sua mamã, disse Lydia»

jdact e wikipedia

«(…) Lydia sentou-se silenciosa e pôs-se a trabalhar no barro. Depois pousou o instrumento. Dirigiu-se para o canto da cozinha, ao pé da porta das traseiras. Vi-a inclinar-se para tirar os sapatos. Depois tirou os jeans e as cuequinhas. A sua co… estava ali e olhava para mim. Está bem, meu sacana, disse. Vou mostrar-te como estás enganado.
Tirei os sapatos, as calças e as cuecas. Ajoelhei-me sobre o chão de linóleo, e deitei-me em cima dela. Comecei a beijá-la. Entesei-me rapidamente e senti que a penetrava. Comecei a f…, um, dois, três... Alguém bateu à porta da entrada. Era um bater de criança de pequenos punhos, enérgicos e persistentes. Lydia empurrou-me imediatamente. É Lisa! Ela hoje não foi à escola! Estava em... Lydia pôs-se em pé e começou a vestir-se. Veste-te!, disse-me. Vesti-me o mais rápido possível. Lydia dirigiu-se para a porta e a sua filha de cinco anos lá estava: mamã! Mamã! Mamã! Cortei-me no dedo! Eu passeava-me na sala da frente. Lydia sentou Lisa sobre os seus joelhos. Oooo, deixa a mamã ver. Oooo, deixa a mamã beijar o dedo. A mamã vai pô-lo bom! Mamã, ele dói! Eu olhei para o golpe. Era quase invisível. Olha, dirigi-me por fim a Lydia, vejo-te amanhã. Desculpa, respondeu. Eu compreendo. Lisa levantou os olhos para mim, as lágrimas corriam. A Lisa não deixa que aconteça nada de mau à sua mamã, disse Lydia.
Abri a porta, fechei-a e encaminhei-me para o meu Mercury Comet de 1962. Por essa altura eu editava uma pequena revista, The Laxative Approach. Tinha dois co-editores e havia a sensação de estarmos a publicar os melhores poetas do nosso tempo. Mas também alguns menos bons. Um dos editores, Keneth Mulloch (preto), tinha desistido do liceu, media um metro e oitenta e cinco, e era sustentado pela mãe e pela irmã. O outro editor era Sammy Levinson (judeu), vinte e sete anos, que vivia com os seus pais e era sustentado por eles.

Já estava tudo impresso. Agora, faltava colar e grampear as folhas nas capas. O que você tem que fazer, disse Sammy, é dar uma Festa da Colagem. Você entra com as bebidas e umas merd…, p’ra comer e eles fazem o trabalho. Detesto festa, disse eu. Eu encarrego-me dos convites, falou Sammy. Tudo bem, disse eu. E convidei Lydia. Na noite da festa, Sammy apareceu com as folhas já coladas. Ele era do tipo nervoso, tinha um tique de cabeça; não foi capaz de esperar p’ra ver os seus poemas impressos. Colou sozinho a Abordagem Laxativa e depois grampeou as capas. Ninguém achou Kenneth Mulloch, provavelmente estava na prisão ou sendo procurado. O pessoal chegou. Eu não conhecia quase ninguém. Fui até ao apartamento da senhoria nos fundos do condomínio. Ela me atendeu na porta. Estou dando uma grande festa, senhora O’Keefe. Gostaria que a senhora e seu marido viessem. Tem muita cerveja e salgadinhos. Deus do céu, não é possível! Que foi? Eu vi esse grupo entrando aí. Aquelas barbas e aqueles cabelões e aquelas roupas remendadas! Pulseiras e colares..., parecem um bando de comunistas! Como é que aguenta aquela gente? Eu também não aguento aquela gente, senhora O’Keefe. Só estamos bebendo cerveja e conversando. Nada mais. Fique de olho neles. Essa corja é capaz até de roubar o encanamento. E fechou a porta.
Lydia chegou tarde. Passou pela porta como uma actriz. A primeira coisa que eu reparei foi o seu chapelão de cowboy com uma pluma de alfazema espetada do lado. Não falou comigo. Foi logo se sentar ao lado de um rapaz empregado da livraria, e começou a conversar animadamente com ele. Eu comecei a beber mais e o meu papo perdeu um pouco de pique e humor. O empregado da livraria era um tipo bem-apanhado que pretendia virar escritor». In Charles Bukowski, Mulheres, 1978, 1985, Editora dom Quixote, 2001, ISBN 978-972-202-006-0.
                                                   
Cortesia de EdomQuixote/JDACT

Nas Asas do Tempo. Diana Gabaldon. «Não seria extraordinário se..., quero dizer, todos sabem que médicos e enfermeiras ficam sob um terrível stress durante as emergências e..., bem, eu..., é apenas que..., bem, eu compreenderia…»

jdact

«(…) Tivemos um, na verdade um sujeito muito rabugento, um gaiteiro dos Seaforth, que não suportava injecção, especialmente nas nádegas. Passava horas no mais terrível desconforto antes de deixar que alguém se aproximasse dele com uma seringa e, mesmo assim, tentava nos fazer dar-lhe a injecção no braço, embora fosse intramuscular. Ri diante da lembrança do cabo Chisholm. Ele me disse: se vou ficar deitado de barriga para baixo, com as minhas nádegas de fora, quero que a garota fique por baixo de mim, não atrás de mim com uma agulha! Frank sorriu, mas pareceu um pouco apreensivo, como sempre acontecia com as minhas histórias de guerra menos delicadas. Não se preocupe, assegurei-lhe, percebendo a sua expressão, não vou contar essa na hora do chá na sala dos professores. O sorriso arrefeceu e ele aproximou-se, parando atrás de mim, sentada à penteadeira. Beijou o topo de minha cabeça. Não se preocupe, disse. Os professores vão adorá-la, quaisquer que sejam as histórias que contar. Hum. Seus cabelos estão com um perfume delicioso. Gosta? Em resposta, as suas mãos deslizaram para a frente por cima dos meus ombros, segurando meus seios na camisola fina. Eu podia ver seu rosto acima do meu no espelho, o queixo descansando sobre minha cabeça. Gosto de tudo em você, disse com a voz rouca. Fica linda à luz de velas. Seus olhos são como xerez no cristal e a sua pele brilha como marfim. Uma feiticeira à luz de velas, é o que você é. Talvez eu devesse desligar as lâmpadas permanentemente. Fica difícil ler na cama, eu disse, o coração começando a acelerar. Posso pensar em coisas melhores para fazer na cama, murmurou. Pode mesmo?, disse, levantando-me e virando-me para passar os braços em volta de seu pescoço. Como o quê, por exemplo? Algum tempo depois, aconchegados por trás das persianas trancadas, ergui minha cabeça dos seus ombros e disse: porque me perguntou aquilo? Se eu tive contacto com escoceses, quero dizer, deve saber que tive, há todo tipo de homens nesses hospitais. Ele se mexeu e deslizou a mão pelas minhas costas. Hum. Ah, por nada, na verdade. É que, quando vi aquele sujeito lá fora, ocorreu-me que pudesse ser, hesitou, apertando-me mais um pouco nos seus braços, hã, sabe, que pudesse ser alguém de quem você cuidou, talvez..., talvez, tivesse ouvido falar que estava aqui e veio ver..., algo assim. Nesse caso, disse, de modo prático, porque ele não entraria e pediria para me ver? Bem, a voz de Frank pareceu muito descontraída, talvez ele não quisesse dar de caras comigo.
Ergui-me sobre um dos cotovelos, fitando-o. Havíamos deixado uma vela acesa e eu podia vê-lo bastante bem. Virara a cabeça e olhava distraidamente para a cromolitografia do príncipe Carlos Eduardo com a qual a sra. Baird achara apropriado decorar a nossa parede. Agarrei o seu queixo e virei o seu rosto para mim. Ele arregalou os olhos, simulando surpresa. Está querendo dizer, indaguei, que o homem que viu lá fora era alguma espécie de, de..., hesitei, em busca da palavra certa. Ligação?, sugeriu, solícito. Amorosa de minha parte?, concluí. Não, não, claro que não, afirmou de maneira pouco convincente. Retirou as minhas mãos do seu rosto e tentou beijar-me, mas agora foi a minha vez de virar o rosto. Contentou-se em puxar-me de volta para me deitar a seu lado na cama. É que..., começou. Bem, sabe, Claire, foram seis anos. E nos vimos apenas três vezes e apenas por um dia na última vez. Não seria extraordinário se..., quero dizer, todos sabem que médicos e enfermeiras ficam sob um terrível stress durante as emergências e..., bem, eu..., é apenas que..., bem, eu compreenderia, sabe, se alguma coisa, hã, de natureza espontânea... Interrompi aquela lengalenga desvencilhando-me do seu abraço e saltando para fora da cama. Acha que lhe fui infiel?, indaguei. Acha? Porque se acha, pode sair deste quarto agora mesmo. Ir embora desta casa! Como ousa insinuar tal coisa? Eu estava furiosa e Frank, sentando-se na cama, estendeu os braços tentando acalmar-me. Não toque em mim!, retruquei. Apenas me diga: acha, diante do facto de um estranho estar olhando para a minha janela, que eu tenha tido algum caso amoroso com um dos meus pacientes? Frank levantou-se da cama e envolveu-me nos seus braços. Permaneci petrificada como a mulher de Lot, mas ele insistiu, acariciando os meus cabelos e esfregando os meus ombros da maneira que sabia que eu gostava. Não, eu não acho nada disso, disse com firmeza. Puxou-me para mais junto dele e eu relaxei um pouco, embora não o suficiente para abraçá-lo». In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, 1991, Casa das Letras, LeYa, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.

Cortesia das CdasLetras/JDACT

domingo, 26 de janeiro de 2020

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Pedra d’água, abismo, pedra-ferro como te chamas? Para que eu possa ao menos Soletrar teu nome, grudada à tua fundura»

Cortesia de wikipedia e jdact

Via Vazia
[…] VII
«Tu sabes que serram cavalos vivos
Para que fiquem macias
As sacolas dos ricos?
Tu gozas ou defecas
Diante do acto sem nome
O rubro dessa orgia?

VIII
Descansa.
O Homem já se fez
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.

IX
Uma mulher suspensa entre as linhas e os dentes.
Antiquíssima ave, marionete de penas
As asas que pensou lhe foram arrancadas.
Lavado de luzes, um deus me movimenta.
Indiferente. Bufo.

X
Pedra d’água, abismo, pedra-ferro
Como te chamas? Para que eu possa ao menos
Soletrar teu nome, grudada à tua fundura.

XI
Nos pauis, no pau-de-lacre,
Aquele de nervuras e de folhas brilhantes, transitas.
No pau-de-virar-tripa, só neste último, Pai
Eu sei que te demoras, meditando minha víscera.

XII
Águas de grande sombra, água de espinhos:
O Tempo não roerá o verso da minha boca.
Águas manchadas de um torpor de vinhos:
Hei de tragá-las todas. E lúbrico, descontínuo
O tempo não viverá se tocar a minha boca».

Alcoólicas
I
«É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha púmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT