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Córdova. Fevereiro de 1133
«(…) Se aquele monumento estava
de pé, ornamentado e mobilado como se lá morassem deuses e não pessoas, à
família Benu Ummeya se devia, concluiu Zhakaria. Mas, como era possível que
quem tão bem governara o califado de Córdova trezentos anos, quem construíra centenas
de mesquitas pela cidade, quem a tornara um local de fé v'isitado por milhões
de muçulmanos, tivesse caído em desgraça? O que acontecera de tão profundo e
corrupto para que as gentes se revoltassem contra aqueles a quem tanto deviam?
Os livros antigos
responsabilizavam os próprios Benu Ummeya, a degradação inexorável do seu
sangue, embora houvesse quem atribuísse mais culpas ao hajibe Al-Mansor,
o todo-poderoso ministro e usurpador dos poderes da família, que pedira ajuda
aos berberes africanos para combater os cristãos e, de caminho, remetera um jovem
califa a uma posição secundária, condenando-o a vaguear pelos jardins do
Azzahrat como um tonto impotente. Pouco importava agora: Hixam III, avô das
princesas, fora o último monarca que ali vivera, antes de ter renunciado ao
trono, por se considerar incapaz de pacificar a Andaluzia. Cem anos tinham passado
e nada de bom se aproveitava. O poder muçulmano fragmentara-se, o califado
cordovês estilhaçara-se em pequenos reinos, as primeiras taifas, permitindo aos
cristãos avançarem para sul, conquistando Toledo, Coimbra e outras cidades. E
anos depois, os almorávidas tinham assentado arraiais, substituindo o califado
de Córdova pelo de Marraquexe, primeiramente liderado por Yusuf, pai do actual
califa, Ali Yusuf, que Zhakaria odiava.
Matava-o se pudesse...
Estaria prestes a dar-se a queda
de Marraquexe, questionou-se Zhakaria? A criada de Hisn afirmara que a
instabilidade grassava na Andaluzia, mas a ele afigurava-se-lhe impensável que o
domínio de Ali Yusuf estivesse em risco. O maldito berbere, que, por temer a
concorrência dos descendentes dos Benu Ummeya, condenara à morte Taxfin e Zulmira,
além de ter colocado a prémio a cabeça das princesas Zaida e Fátima, era um homem
poderoso, escudado nos seus implacáveis guerreiros dos desertos africanos, cuja
brutalidade assustava os mais suaves árabes andaluzes.
Ismar,
apesar de ser governador nomeado pelo califa, não era um almorávida, nem um
berbere, era descendente de sírios. Zhakaria examinou aquele homem alto e
entroncado, de traços perfeitos, com uma barba meticulosamente desenhada, uma
fina tira que acompanhava os contornos do maxilar e do queixo. Era bonito, com
uns olhos negros brilhantes e um encanto físico que seduzia, e Zhakaria
rapidamente notou que ele era dotado de um carisma invulgar, pois falava com uma
segurança e uma calma imperiais, às quais acrescentava um sentido de humor
sofisticado, que usou para explicar a sua correspondência com a velha criada de
Hisn, feita através dos corvos negros». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A
Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT