quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A Vida Secreta das Princesas Árabes. Jean Sasson. «Os primeiros AISaud eram homens cujos sonhos não os levaram além da conquista de terras desérticas circunstantes e da aventura que eram os ataques nocturnos a tribos vizinhas»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Sou princesa numa terra onde os reis ainda governam. Devem conhecer-me apenas por Sultana. Não posso revelar o meu nome verdadeiro, pois receio que possa acontecer algo de mal a mim e à minha família pelo que vos irei contar. Sou uma princesa saudita, membro da família real da Casa de AISaud, os actuais governantes do Reino da Arábia Saudita. A minha qualidade de mulher num país governado por homens não me permite falar-vos directamente. Pedi a uma amiga e escritora americana, Jean Sasson, que me ouvisse e, posteriormente, contasse a minha história. Nasci livre, no entanto hoje estou presa por grilhões. Invisíveis, mantiveram-se lassos e passaram despercebidos até a idade da razão reduzir a minha vida a um estreito segmento de medo. Não me restam recordações dos primeiros quatro anos. Imagino que tenha rido e brincado como todas as outras crianças pequenas, abençoadamente alheia ao facto de o meu valor, dada a ausência de um órgão reprodutor masculino, não ser significativo na minha terra natal. Para compreenderem a minha vida, é necessário conhecerem aqueles que vieram antes de mim. Nós, os AISaud do presente, somos a sexta geração que descende dos primeiros emirados do Nadj, as terras beduínas que hoje fazem parte do Reino da Arábia Saudita. Os primeiros AISaud eram homens cujos sonhos não os levaram além da conquista de terras desérticas circunstantes e da aventura que eram os ataques nocturnos a tribos vizinhas. Em 1891, a calamidade abateu-se sobre o clã AISaud quando este foi derrotado em batalha e se viu obrigado a abandonar o Nadj. Abdul Aziz, que um dia seria meu avô, era uma criança na altura. Foi com dificuldade que sobreviveu às agruras daquela fuga pelo deserto. Mais tarde, recordaria a profunda vergonha que sentira quando o pai lhe ordenara que se enfiasse num alforge grande que depois foi pendurado na sela do seu camelo. Nura, sua irmã, ia encolhida num alforge pendurado no outro lado do camelo que transportava seu pai. Amargurado por ser demasiado jovem para combater e ajudar, assim, a salvar o seu lar, o jovem espreitou, irado, pela abertura do saco, enquanto ia balançando ao ritmo das passadas do animal. Humilhado pela derrota sofrida pela família, ao ver desaparecer de vista a beleza assombrosa da sua terra natal, contaria, mais tarde, que aquele momento representara um ponto de viragem na sua jovem vida. Após dois meses de travessia nómada do deserto, a família dos AISaud encontrou refúgio no país do Kuwait. A vida de um refugiado era tão detestável para Abdul Aziz que este jurou, ainda muito novo, reconquistar as areias do deserto que outrora haviam sido o seu lar.
Assim, em Setembro de 1901, Abdul Aziz, então com vinte e cinco anos, regressou à nossa terra. A 16 de Janeiro de 1902, depois de meses de grandes provações, ele e os seus homens derrotaram estrondosamente os Rashid, seus inimigos. Nos anos que se seguiram, a necessidade de consolidar a lealdade das tribos do deserto levou Abdul Aziz a desposar mais de trezentas mulheres, as quais, a seu tempo, deram à luz mais de cinquenta filhos varões e oitenta filhas. Os filhos das esposas favoritas foram honrosamente distinguidos; esses filhos, agora adultos, constituem o próprio centro do poder na nossa terra. A mais amada de todas as esposas de Abdul Aziz foi Hassa Sudairi. Os filhos de Hassa estão hoje à cabeça das forças combinadas dos AISaud e governam o reino formado pelo pai. Fahd, um desses filhos, é hoje o nosso rei. Muitos filhos e filhas desposaram primos dos ramos proeminentes da nossa família, tal como os AITurki, os Jiluwi e os AIKabir. Os príncipes que resultaram destas uniões e chegaram aos nossos dias encontram-se entre o número dos AISaud mais influentes.
Presentemente, corre o ano de 1991, a nossa numerosa família é formada por cerca de vinte e um mil membros. Deste número, aproximadamente mil são príncipes e princesas que descendem directamente do nosso grande líder, o rei Abdul Aziz. Eu, Sultana, sou uma dessas descendentes directas. A minha primeira recordação nítida é de violência. Tinha eu quatro anos de idade quando fui esbofeteada no rosto pela minha mãe, uma mulher que, normalmente, era meiga. Porquê? Porque imitara o meu pai nas suas orações. Em vez de orar a Meca, filo ao meu irmão de seis anos, Ali. Tomei-o por um deus. Como poderia imaginar que não era? Já lá vão trinta e um anos e não esqueci ainda a dor pungente que aquela bofetada me provocou e o início das dúvidas na minha cabeça: se o meu irmão não era um deus, porque o tratavam como tal?
Numa família de dez filhas e um filho, o medo imperava na nossa casa: medo de que a morte levasse o único varão vivo; medo de que não viessem mais filhos varões; medo de que Deus tivesse amaldiçoado a nossa família com filhas. A minha mãe vivia cada gravidez aterrorizada, rezando por um filho macho, receando que viesse uma filha. Estas foram nascendo, umas atrás das outras, até perfazerem dez. O maior receio da minha mãe tornou-se realidade quando o meu pai procurou uma esposa mais jovem com a finalidade de esta lhe dar mais filhos preciosos. A nova esposa presenteou-o com três rapazes que nasceram mortos, antes de ele se divorciar dela. Finalmente, no entanto, a quarta esposa ofereceu a meu pai uma abundância de varões. O meu irmão mais velho, porém, seria sempre o primogénito e, como tal, o chefe supremo. Eu, à semelhança das minhas irmãs, fingia venerá-lo, mas a verdade é que o odiava como só os oprimidos sabem fazer». In Jean Sasson, A Vida Secreta das Princesas Árabes, 2012, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-674-1.

Cortesia de EASA/JDACT