Cortesia
de wikipedia e jdact
«Sou
princesa numa terra onde os reis ainda governam. Devem conhecer-me apenas por
Sultana. Não posso revelar o meu nome verdadeiro, pois receio que possa
acontecer algo de mal a mim e à minha família pelo que vos irei contar. Sou uma
princesa saudita, membro da família real da Casa de AISaud, os actuais
governantes do Reino da Arábia Saudita. A minha qualidade de mulher num país
governado por homens não me permite falar-vos directamente. Pedi a uma amiga e
escritora americana, Jean Sasson, que me ouvisse e, posteriormente, contasse a
minha história. Nasci livre, no entanto hoje estou presa por grilhões. Invisíveis,
mantiveram-se lassos e passaram despercebidos até a idade da razão reduzir a
minha vida a um estreito segmento de medo. Não me restam recordações dos
primeiros quatro anos. Imagino que tenha rido e brincado como todas as outras
crianças pequenas, abençoadamente alheia ao facto de o meu valor, dada a ausência
de um órgão reprodutor masculino, não ser significativo na minha terra natal. Para
compreenderem a minha vida, é necessário conhecerem aqueles que vieram antes de
mim. Nós, os AISaud do presente, somos a sexta geração que descende dos
primeiros emirados do Nadj, as terras beduínas que hoje fazem parte do Reino da
Arábia Saudita. Os primeiros AISaud eram homens cujos sonhos não os levaram além
da conquista de terras desérticas circunstantes e da aventura que eram os
ataques nocturnos a tribos vizinhas. Em 1891, a calamidade abateu-se sobre o clã
AISaud quando este foi derrotado em batalha e se viu obrigado a abandonar o
Nadj. Abdul Aziz, que um dia seria meu avô, era uma criança na altura. Foi com
dificuldade que sobreviveu às agruras daquela fuga pelo deserto. Mais tarde,
recordaria a profunda vergonha que sentira quando o pai lhe ordenara que se enfiasse
num alforge grande que depois foi pendurado na sela do seu camelo. Nura, sua
irmã, ia encolhida num alforge pendurado no outro lado do camelo que transportava
seu pai. Amargurado por ser demasiado jovem para combater e ajudar, assim, a salvar
o seu lar, o jovem espreitou, irado, pela abertura do saco, enquanto ia balançando
ao ritmo das passadas do animal. Humilhado pela derrota sofrida pela família,
ao ver desaparecer de vista a beleza assombrosa da sua terra natal, contaria,
mais tarde, que aquele momento representara um ponto de viragem na sua jovem
vida. Após dois meses de travessia nómada do deserto, a família dos AISaud
encontrou refúgio no país do Kuwait. A vida de um refugiado era tão detestável
para Abdul Aziz que este jurou, ainda muito novo, reconquistar as areias do
deserto que outrora haviam sido o seu lar.
Assim, em Setembro de 1901, Abdul
Aziz, então com vinte e cinco anos, regressou à nossa terra. A 16 de Janeiro de
1902, depois de meses de grandes provações, ele e os seus homens derrotaram
estrondosamente os Rashid, seus inimigos. Nos anos que se seguiram, a necessidade
de consolidar a lealdade das tribos do deserto levou Abdul Aziz a desposar mais
de trezentas mulheres, as quais, a seu tempo, deram à luz mais de cinquenta
filhos varões e oitenta filhas. Os filhos das esposas favoritas foram
honrosamente distinguidos; esses filhos, agora adultos, constituem o próprio
centro do poder na nossa terra. A mais amada de todas as esposas de Abdul Aziz
foi Hassa Sudairi. Os filhos de Hassa estão hoje à cabeça das forças combinadas
dos AISaud e governam o reino formado pelo pai. Fahd, um desses filhos, é hoje
o nosso rei. Muitos filhos e filhas desposaram primos dos ramos proeminentes da
nossa família, tal como os AITurki, os Jiluwi e os AIKabir. Os príncipes que
resultaram destas uniões e chegaram aos nossos dias encontram-se entre o número
dos AISaud mais influentes.
Presentemente, corre o ano de
1991, a nossa numerosa família é formada por cerca de vinte e um mil membros.
Deste número, aproximadamente mil são príncipes e princesas que descendem
directamente do nosso grande líder, o rei Abdul Aziz. Eu, Sultana, sou uma
dessas descendentes directas. A minha primeira recordação nítida é de violência.
Tinha eu quatro anos de idade quando fui esbofeteada no rosto pela minha mãe,
uma mulher que, normalmente, era meiga. Porquê? Porque imitara o meu pai nas
suas orações. Em vez de orar a Meca, filo ao meu irmão de seis anos, Ali. Tomei-o
por um deus. Como poderia imaginar que não era? Já lá vão trinta e um anos e não
esqueci ainda a dor pungente que aquela bofetada me provocou e o início das dúvidas
na minha cabeça: se o meu irmão não era um deus, porque o tratavam como tal?
Numa família de dez filhas e um
filho, o medo imperava na nossa casa: medo de que a morte levasse o único varão
vivo; medo de que não viessem mais filhos varões; medo de que Deus tivesse
amaldiçoado a nossa família com filhas. A minha mãe vivia cada gravidez
aterrorizada, rezando por um filho macho, receando que viesse uma filha. Estas
foram nascendo, umas atrás das outras, até perfazerem dez. O maior receio da
minha mãe tornou-se realidade quando o meu pai procurou uma esposa mais jovem
com a finalidade de esta lhe dar mais filhos preciosos. A nova esposa presenteou-o
com três rapazes que nasceram mortos, antes de ele se divorciar dela.
Finalmente, no entanto, a quarta esposa ofereceu a meu pai uma abundância de
varões. O meu irmão mais velho, porém, seria sempre o primogénito e, como tal,
o chefe supremo. Eu, à semelhança das minhas irmãs, fingia venerá-lo, mas a
verdade é que o odiava como só os oprimidos sabem fazer». In Jean Sasson, A Vida
Secreta das Princesas Árabes, 2012, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-674-1.
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