quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Bala Santa. Luís Miguel Rocha. «Devotamente, depositou pires e chávena na mão dele, que lhe pegou, quase inconscientemente, sem dispensar um olhar à mulher, que só então foi preparar o mesmo para o visitante»

Cortesia de wikipedia e jdact

Jerusalém
«(…) Senta-te, ordenou o dono da casa, apontando na direcção de um cadeirão idêntico ao seu. O estrangeiro, mais uma vez, voltou a acatar a ordem, quase sem raciocinar, obedecendo à ordem ou pedido sem saber se por sua própria vontade ou não. Pousou a mala sobre o colo. Queres juntar a tua presença à de Abu Rashid, disse o velho. Sim, respondeu o estrangeiro, apesar de não ter sido proferida nenhuma pergunta. Sabe onde mora?, deu por si a perguntar como uma criança que pede um rebuçado. Ele anda sempre por aí, limitou-se a dizer. Qual é o teu assunto com ele?, perguntou sem cerimónia. O estrangeiro decidiu não fazer segredo das suas intenções, apesar da devida reserva atrás da qual se deveria proteger. Porém, subia por si acima um sentimento cognitivo de que se mentisse o velho saberia. Sou o emissário de Roma, informou num tom grave, evidenciando o profissionalismo e competência que se exigem a um homem do seu calibre. Vim investigar as alegadas visões de Abu Rashid. Alegadas? O velho inclinou-se para a frente, agarrando-se aos braços do cadeirão com uma expressão inquisitiva e desconfiada. Por acaso Roma pensa que é uma lenda? Em Roma ainda não se pensa nada. Por isso me enviaram, explicou o estrangeiro, sentado na beira do cadeirão, tentando manter as costas erectas. Existem várias versões acerca dos feitos e visões de Abu Rashid. Estou aqui para avaliar o caso e sancionar a abertura de uma comissão de investigação, se vier a ser necessário. O silêncio interpôs-se com a entrada não anunciada da jovem esposa, que segurava um tabuleiro, em que o vapor da água, misturado com as folhas de menta, inundavam o ambiente, já de si repleto de odores almiscarados. Não se tinha esquecido do lenço sobre a cabeça, pois ainda havia visitas. Pousou o tabuleiro em cima de uma pequena mesa escura e redonda, encostada a uma parede e desceu a boca do bule fumegante primeiro sobre a chávena do esposo, verteu o líquido esverdeado e deitou seis colheres de açúcar.
Devotamente, depositou pires e chávena na mão dele, que lhe pegou, quase inconscientemente, sem dispensar um olhar à mulher, que só então foi preparar o mesmo para o visitante. O velho sorveu um pouco do chá fervido, sem esboçar nenhum incómodo pela temperatura elevada e sem tirar os olhos do estrangeiro, que recebeu da dedicada esposa a porcelana com conteúdo idêntico, que agradeceu. E consideras necessário sancionar essa comissão?, inquiriu o velho, logo após a esposa sair da sala. Ainda não sei. Cheguei há poucas horas e é a primeira paragem que faço, esclareceu. Compreendo. Mas com certeza fizeste o teu próprio juízo de valor acerca do que já ouviste sobre Abu Rashid, prosseguiu o muçulmano. Achas necessário? Havia uma certa boçalidade no dono da casa que incomodava o estrangeiro, aliada à maneira como o olhava e ao inquérito descarado de que era alvo. Contudo, por incrível que pudesse parecer, a aura de mistério cativante continuava a rodeá-lo, invisível, poderosa. Quem é este homem?, lembra-se de ter pensado na altura. Decidiu responder.
É certo que os relatos parecem um pouco fantasiosos, estamos a falar de alguém que, ao que parece, tem o dom de curar o, cientificamente, incurável. Parece que salvou trinta pessoas, depois de elas se terem afogado. E que ele próprio se afogou e ressuscitou. Mas existem inúmeros exemplos na História de pessoas que possuíam o dom da cura, uns mais credíveis do que outros… Portanto, até que veja e avalie, não posso admitir qualquer juízo de valor da minha parte, terminou com uma sorvedela muito ligeira para não queimar a língua. Era um chá muito forte e excessivamente açucarado. O outro deixou que a atenção do estrangeiro recaísse sobre si. Esperava nova pergunta, certamente, mas não acederia à previsibilidade, particularidade alheia ao seu feitio.
Sei muito bem quem é Abu Rashid, começou, por fim, o velho, desviando o olhar para as suas reminiscências. Um homem santo, capaz de curar os vivos… E os mortos. Os mortos?, perguntou o estrangeiro, agitando-se, desconfortavelmente, no cadeirão. Isso não me parece muito verosímil, arriscou-se a confessar. Ah, mas é verdade, asseverou, olhando o vazio. A mais pura verdade. O timbre da voz do muçulmano alterou-se sobremaneira. Os modos racionais e inquiridores foram arredados por outros mais introspectivos, revivalistas, demonstradores de respeito e até alguma veneração, letárgicos também, de alguém que olha outro mundo, reclinado no cadeirão de braços. Terei de confirmar, contrapôs o estrangeiro evasivamente». In Luís Miguel Rocha, Bala Santa, Cavalo de Ferro Editores, Paralelo 40, Lisboa, 2007, ISBN 978-989-813-400-4.      

Cortesia de CFerro/JDACT