sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

A Vitória do Imperador. Domingos Amaral. «Desta vez, o orgulho fez Elvira empertigar as costas quando proclamou que os homens eram uns tontos. O Trava, por pensar que ela cedia com facilidade aos seus cantos de sedução»

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Lanhoso. Dezembro de 1130
«(…) Conhecedora da forte paixão de Afonso Henriques pela galega, Elvira sempre o aconselhara a tratá-la melhor: e criticou-o por a ter expulso com desdém de Guimarães, mesmo estando ela prenhe de outro. Que descaramento!, indignou-se o príncipe. Venho ter convosco a Lanhoso e dizeis-me que perdoe a Chamoa? Com a bonomia que existia no seu coração, Elvira limitou-se a sorrir. Aquela humilde e dedicada mulher adorava-o e repetiu-o mais uma vez, mas nunca se iludia sobre a sua insignificância nos destinos conturbados do Condado Portucalense. Não tendes ciúme de outra mulher?, perguntou Afonso Henriques, confundido com o despreendimento da moça. Mais uma vez, Elvira sorriu com suavidade e respondeu: a outra sou eu, depois, acrescentou, dando-lhe a mão com ternura: vinde ver vossas irmãs, estão muito crescidas.
Entraram enlaçados na torre de menagem de Lanhoso e, quando chegaram à sala, o príncipe viu as suas duas pequenas irmãs sentadas no chão, a brincarem com bonecas de trapos. Elvira mandou-as levantar e elas vieram beijar a mão do irmão, educadas mas tímidas, agarrando-se logo às pernas da sua guardiã. Por momentos, a má vontade que o príncipe nutria para com Peres Trava, pai das meninas, bem como a querela nunca sarada com a sua defunta mãe, pareceu impedir Afonso Henriques de mostrar ternura.
Elvira, vendo-o assim rígido, murmurou: príncipe, amar é dar e receber. Quem não dá... O meu amigo venceu finalmente a relutância e perguntou-lhes o nome das bonecas e pouco tempo depois já as sentara nos seus joelhos. Quando a noite chegou, Elvira foi deitar as pequenas, regressando depois para junto do seu amado. Elas perguntam pela minha mãe?, questionou o meu amigo. Elvira suspirou, com pena das meninas.
No último ano, antes de falecer, dona Teresa só cá veio uma vez. O príncipe conhecia os hábitos desleixados de sua mãe, que nunca ligara muito aos filhos, e adiantou: será a vós que vão amar. Elvira mostrou-se ligeiramente preocupada e desviou o olhar. O pai delas esteve cá há duas semanas... Afonso Henriques enervou-se: Fernão Peres Trava tinha-lhe prometido uma guerra e agora tivera o descaramento de entrar à socapa no Condado Portucalense, dirigindo-se até Lanhoso? São filhas dele, tem direitos, recordou Elvira. Esta afirmação ainda irritou mais o príncipe, que logo perguntou: estais do lado dele? A normanda fingiu não o ter ouvido e prosseguiu: deixei-o entrar e falar com elas, mas não levá-las, pois não eram essas as ordens que tinha. Depois, preocupada, acrescentou: a Sanchinha tem medo do pai, assustou-se quando ele disse que iriam para Tui. E a Teresa escondeu-se atrás de mim... Pobrezinhas.
Sem olhar para o príncipe, prosseguiu: o Trava queria que eu fosse também. Diz que sei lidar com elas, inspirou fundo e o seu peito cheio cresceu, mas lamentou-se: homens... Franzindo a testa, Afonso Henriques quis saber o que desejara o Trava e Elvira revelou que o galego lhe prometera casa e honrarias. Bem sei o que queria, rematou, com um leve sorriso. Um breve erremesso de fúria apoderou-se do meu melhor amigo, que desatou a barafustar contra o descaramento do Trava. Haveis-vos dado a ele?, insistiu, desconfiado.
Desta vez, o orgulho fez Elvira empertigar as costas quando proclamou que os homens eram uns tontos. O Trava, por pensar que ela cedia com facilidade aos seus cantos de sedução; e o príncipe por admitir que ela o trairia com tanta pressa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT