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(…) Ou então, Dalla Piccola e eu
somos a mesma pessoa. Visto que encontrei o hábito no meu quarto, depois do dia
da missa (21) eu poderia ter voltado ao impasse Maubert, disfarçado de Dalla
Piccola (se deveria ir a uma missa, era mais crível que fosse como abade), para
depois me livrar do hábito e da peruca e, mais tarde, dormir no apartamento do
abade (esquecendo ter deixado o hábito na casa de Simonini). Na manhã seguinte,
terça-feira 22 de Março, acordando como Dalla Piccola, não só me veria
desmemoriado como também sequer encontraria o hábito aos pés da cama. Na pele
de Dalla Piccola, desmemoriado, teria encontrado um hábito sobressalente no
corredor e teria tido todo o tempo para fugir na mesma data para Auteuil, excepto
se mudasse de ideia no final do dia, criasse coragem e retornasse a Paris, para
o apartamento do impasse Maubert, deixando o hábito no cabide do quarto e acordando,
novamente desmemoriado, mas como Simonini, na quarta-feira, acreditando que
ainda era terça-feira.
Então, eu dizia, Dalla Piccola
esquece o 22 de Março, e permanece esquecido um dia inteiro, para depois se
reencontrar no dia 23 como um Simonini desmemoriado. Nada de excepcional,
depois daquilo que eu soube por... Como se chama aquele doutor da clínica de
Vincennes? Salvo por um pequeno problema. Eu havia relido as minhas anotações:
se as coisas tivessem assim, na manhã de 23 Simonini deveria encontrar no
quarto não um, mas dois hábitos, aquele que ele deixara na noite de 21 e aquele
que havia deixado na noite de 22. No entanto, havia somente um. Mas, não, que
idiota. Dalla Piccola voltara de Auteuil na noite do dia 22 para a rue Maître
Albert, deixara ali o seu hábito, depois passara ao apartamento do impasse
Maubert e fora dormir, acordando na manhã seguinte (dia 23) como Simonini e
encontrando no cabide um único hábito. É verdade que, se as coisas houvessem
ocorrido assim, na manhã do dia 23, quando entrara no apartamento de Dalla Piccola,
eu deveria ter encontrado no quarto dele o hábito que havia deixado ali na
noite de 22 de Março. Mas poderia tê-lo pendurado no corredor onde o achara. Bastava
conferir.
Percorri o corredor com a lamparina
acesa e algum temor. Se Dalla Piccola não fosse eu, dizia-me, poderia me aparecer,
pela outra extremidade daquela passagem, também ele com uma luz acesa diante de
si... Por sorte, isso não aconteceu. E no fundo do corredor encontrei o hábito pendurado.
No entanto, no entanto... Se Dalla Piccola tivesse retornado de Auteuil e,
tendo despido o hábito, percorrido todo o corredor até ao meu apartamento e se
deitado sem hesitações na minha cama, era porque àquela altura se lembrara de
mim e sabia que podia dormir junto de mim como junto de si mesmo, visto que
éramos a mesma pessoa. Por conseguinte, Dalla Piccola fora para a cama sabendo
ser Simonini, ao passo que, na manhã seguinte, Simonini acordara sem saber ser
Dalla Piccola. Ou seja, primeiro Dalla Piccola perde a memória, depois a
recupera, vai dormir e transfere a Simonini seu desmemoriamento.
Desmemoriamento... Essa palavra, que significa a não lembrança, abriu-me uma
espécie de brecha na névoa do tempo que esqueci. Eu falava de desmemoriados no
Magny, mais de dez anos atrás. Era lá que falava deles com Bourru e Burot, com
Du Maurier e com o doutor austríaco.
25
de Março de 1897, ao amanhecer
Chez Magny... Sei que sou um
amante da boa cozinha e, pelo que recordo, naquele restaurante da rue de la Contrescarpe-Dauphine
não se pagava mais de dez francos por cabeça, e a qualidade correspondia ao preço.
Mas não se pode ir todo dia ao Foyot. Muitos, nos anos passados, iam ao Magny
para admirar à distância escritores já célebres como Gautier ou Flaubert, e
antes ainda aquele pianistazinho polonês tísico, sustentado por uma degenerada
que vestia calças. Eu tinha dado uma olhada neles certa noite, e saído logo. Os
artistas, mesmo de longe, são insuportáveis, ficam observando ao redor para
conferir se nós os reconhecemos. Depois, os grandes abandonaram o Magny e
emigraram para o Brébant-Vachette, no boulevard Poissonnière, onde se comia
melhor e o preço era maior, mas vê-se que carmina dant panem. E quando o
Magny, por assim dizer, purificou-se, algumas vezes experimentei visitá-lo,
desde o início dos anos 1880.
Eu tinha reparado que o lugar era
frequentado por homens de ciência, por exemplo químicos ilustres como Berthelot
e muitos médicos da Salpêtrière. O hospital não fica exactamente a dois passos,
mas talvez aqueles clínicos gostassem de dar um breve passeio pelo Quartier Latin
em vez de comerem nas imundas gargotes aonde vão os parentes dos enfermos. As
conversas dos médicos são interessantes porque sempre se referem às debilidades
de algum outro, e no Magny, para se sobrepor ao ruído, todos falam em voz alta,
de modo que um ouvido adestrado sempre pode captar algo de interessante. Estar
atento não significa procurar saber algo preciso. Tudo, até o irrelevante, pode
ser útil um dia. O importante é saber aquilo que os outros não sabem que você sabe».
In
Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução
de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.
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