segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Sei que sou um amante da boa cozinha e, pelo que recordo, naquele restaurante da rue de la Contrescarpe-Dauphine não se pagava mais de dez francos por cabeça, e a qualidade correspondia ao preço»

jdact e wikipedia

(…) Ou então, Dalla Piccola e eu somos a mesma pessoa. Visto que encontrei o hábito no meu quarto, depois do dia da missa (21) eu poderia ter voltado ao impasse Maubert, disfarçado de Dalla Piccola (se deveria ir a uma missa, era mais crível que fosse como abade), para depois me livrar do hábito e da peruca e, mais tarde, dormir no apartamento do abade (esquecendo ter deixado o hábito na casa de Simonini). Na manhã seguinte, terça-feira 22 de Março, acordando como Dalla Piccola, não só me veria desmemoriado como também sequer encontraria o hábito aos pés da cama. Na pele de Dalla Piccola, desmemoriado, teria encontrado um hábito sobressalente no corredor e teria tido todo o tempo para fugir na mesma data para Auteuil, excepto se mudasse de ideia no final do dia, criasse coragem e retornasse a Paris, para o apartamento do impasse Maubert, deixando o hábito no cabide do quarto e acordando, novamente desmemoriado, mas como Simonini, na quarta-feira, acreditando que ainda era terça-feira.
Então, eu dizia, Dalla Piccola esquece o 22 de Março, e permanece esquecido um dia inteiro, para depois se reencontrar no dia 23 como um Simonini desmemoriado. Nada de excepcional, depois daquilo que eu soube por... Como se chama aquele doutor da clínica de Vincennes? Salvo por um pequeno problema. Eu havia relido as minhas anotações: se as coisas tivessem assim, na manhã de 23 Simonini deveria encontrar no quarto não um, mas dois hábitos, aquele que ele deixara na noite de 21 e aquele que havia deixado na noite de 22. No entanto, havia somente um. Mas, não, que idiota. Dalla Piccola voltara de Auteuil na noite do dia 22 para a rue Maître Albert, deixara ali o seu hábito, depois passara ao apartamento do impasse Maubert e fora dormir, acordando na manhã seguinte (dia 23) como Simonini e encontrando no cabide um único hábito. É verdade que, se as coisas houvessem ocorrido assim, na manhã do dia 23, quando entrara no apartamento de Dalla Piccola, eu deveria ter encontrado no quarto dele o hábito que havia deixado ali na noite de 22 de Março. Mas poderia tê-lo pendurado no corredor onde o achara. Bastava conferir.
Percorri o corredor com a lamparina acesa e algum temor. Se Dalla Piccola não fosse eu, dizia-me, poderia me aparecer, pela outra extremidade daquela passagem, também ele com uma luz acesa diante de si... Por sorte, isso não aconteceu. E no fundo do corredor encontrei o hábito pendurado. No entanto, no entanto... Se Dalla Piccola tivesse retornado de Auteuil e, tendo despido o hábito, percorrido todo o corredor até ao meu apartamento e se deitado sem hesitações na minha cama, era porque àquela altura se lembrara de mim e sabia que podia dormir junto de mim como junto de si mesmo, visto que éramos a mesma pessoa. Por conseguinte, Dalla Piccola fora para a cama sabendo ser Simonini, ao passo que, na manhã seguinte, Simonini acordara sem saber ser Dalla Piccola. Ou seja, primeiro Dalla Piccola perde a memória, depois a recupera, vai dormir e transfere a Simonini seu desmemoriamento. Desmemoriamento... Essa palavra, que significa a não lembrança, abriu-me uma espécie de brecha na névoa do tempo que esqueci. Eu falava de desmemoriados no Magny, mais de dez anos atrás. Era lá que falava deles com Bourru e Burot, com Du Maurier e com o doutor austríaco.

25 de Março de 1897, ao amanhecer
Chez Magny... Sei que sou um amante da boa cozinha e, pelo que recordo, naquele restaurante da rue de la Contrescarpe-Dauphine não se pagava mais de dez francos por cabeça, e a qualidade correspondia ao preço. Mas não se pode ir todo dia ao Foyot. Muitos, nos anos passados, iam ao Magny para admirar à distância escritores já célebres como Gautier ou Flaubert, e antes ainda aquele pianistazinho polonês tísico, sustentado por uma degenerada que vestia calças. Eu tinha dado uma olhada neles certa noite, e saído logo. Os artistas, mesmo de longe, são insuportáveis, ficam observando ao redor para conferir se nós os reconhecemos. Depois, os grandes abandonaram o Magny e emigraram para o Brébant-Vachette, no boulevard Poissonnière, onde se comia melhor e o preço era maior, mas vê-se que carmina dant panem. E quando o Magny, por assim dizer, purificou-se, algumas vezes experimentei visitá-lo, desde o início dos anos 1880.
Eu tinha reparado que o lugar era frequentado por homens de ciência, por exemplo químicos ilustres como Berthelot e muitos médicos da Salpêtrière. O hospital não fica exactamente a dois passos, mas talvez aqueles clínicos gostassem de dar um breve passeio pelo Quartier Latin em vez de comerem nas imundas gargotes aonde vão os parentes dos enfermos. As conversas dos médicos são interessantes porque sempre se referem às debilidades de algum outro, e no Magny, para se sobrepor ao ruído, todos falam em voz alta, de modo que um ouvido adestrado sempre pode captar algo de interessante. Estar atento não significa procurar saber algo preciso. Tudo, até o irrelevante, pode ser útil um dia. O importante é saber aquilo que os outros não sabem que você sabe». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT