sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Eu sou Medo. Estertor. tu, meu Deus, um cavalo de ferro colado à futilidade das alturas»

Cortesia de wikipedia e jdact

Via Espessa
[…] XVII
«Minha sombra à minha frente desdobrada
Sombra de sua própria sombra? Sim. Em sonhos via.
Prateado de guizos
O louco sussurava um refrão erudito:
Ipseidade, Samsara. Ipseidade, senhora.

E enfeixando energia, cintilando
Fez de nós dois um único indivíduo».

Via Vazia
I
«Eu sou Medo. Estertor.
Tu, meu Deus, um cavalo de ferro
Colado à futilidade das alturas.

II
Movo-me no charco. Entre o junco e o lagarto.
E Tu, como Petrarca, deves cantar tua Laura:

Le Stelle, il cielo, caldi sospiri
E nem há lua esta noite. Nascidas deste canto
Das palavras, só há borbulhas n’água.

III
Rato d’água, círculo no remoinho da busca.
Que sou teu filho, Pai, me dizem. Farejo.
Com a focinhez que me foi dada
encontro alguns dejectos. Depois, estendido
Na pedra (que dizem ser teu peito) , busco um sinal.
E de novo farejo. Há quanto tempo. Há quanto tempo.

IV
À carnem aos pêlos, à garganta, à língua
A tudo isso te assemelhas?
Mas e o depois da morte, Pai?
As centelhas que nascem da carne sob a terra
O estar ali cintilando de treva.
À treva te assemelhas?

V
Dá-me a via do excesso. O estupor.
Amputado de gestos, dá-me a eloquência do Nada
Os ossos cintilando
Na orvalhada friez do teu deserto.

VI
Que vertigem, Pai.
Pueril e devasso
No furor da tua víscera
Trituras a cada dia
Meu exíguo espaço».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT