sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Inferno. Dan Brown. «Lá em baixo estende-se a cidade abençoada que tornei meu santuário contra aqueles que me exilaram. As vozes me chamam, aproximando-se por trás. O que fez é uma loucura! Loucura gera loucura»

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«Eu sou a sombra. Pela cidade atormentada, eu fujo. Pela eterna desolação, corro para escapar. Pelas margens do rio Arno, sigo desabalado, ofegante... Viro à esquerda na Via dei Castellani e sigo em direcção ao norte, abrigando-me nas sombras da Galleria degli Uffizi. Mesmo assim eles continuam a me perseguir. Então, à medida que me caçam com uma determinação implacável, o som dos seus passos vai ficando cada vez mais alto. Há anos que sou perseguido por eles. Sua persistência me manteve na clandestinidade e forçou-me a viver no Purgatório, agindo por baixo da terra qual um monstro residindo nas cavidades da terra. Eu sou a Sombra. Aqui, na superfície, ergo o olhar para o norte, mas não consigo encontrar um caminho directo para a salvação, pois os montes Apeninos bloqueiam os primeiros raios de sol da alvorada. Passo atrás do palazzo, com sua torre ornada de ameias e o seu relógio de um ponteiro só... Em zigue-zague, avanço por entre os comerciantes madrugadores na Piazza di San Firenze. Quando falam com as suas vozes roucas, sinto seu hálito, que recende a lampredotto e azeitonas assadas. Atravessando em frente ao Bargello, dobro novamente à esquerda em direcção à torre da Badia e me jogo com força contra o portão de ferro ao pé da escada. Aqui, toda e qualquer hesitação deve ser abandonada.
Giro a maçaneta e entro no corredor. Sei que não haverá volta. Instigo minhas pernas pesadas como chumbo a galgarem a escadaria estreita, com os seus degraus de mármore esburacados e gastos subindo em espiral rumo ao céu. As vozes ecoam lá de baixo. Suplicantes. Eles estão atrás de mim, irredutíveis, cada vez mais perto. Não entendem o que está por vir... tampouco o que fiz por eles! Terra ingrata! Enquanto subo, as visões me vêm com toda a força..., os corpos libidinosos se contorcendo sob a chuva de fogo, as almas dos glutões flutuando em excremento, os traidores infames congelados nas garras gélidas de Satanás. Venço os últimos degraus e chego ao topo cambaleando, à beira da morte; saio para o ar húmido da manhã. Corro até ao muro que se ergue à altura da minha cabeça e espio pelas frestas. Lá em baixo estende-se a cidade abençoada que tornei meu santuário contra aqueles que me exilaram. As vozes me chamam, aproximando-se por trás. O que fez é uma loucura! Loucura gera loucura.
Pelo amor de Deus, gritam eles, diga-nos onde a escondeu! É exactamente pelo amor de Deus que não direi. Aqui estou, encurralado, as costas contra a pedra fria. Eles olham no fundo dos meus olhos verdes e límpidos, e seus rostos ficam carregados: a sua expressão, antes persuasiva, agora é ameaçadora. Sabe que temos os nossos métodos. Podemos forçá-lo a nos contar onde está. Por isso subi metade do caminho até ao Céu. Sem aviso, viro-me e ergo os braços, agarrando o parapeito alto com os dedos, içando o meu corpo, ajoelhando-me às pressas em cima do muro. Depois me ponho de pé..., oscilo à beira do precipício. Seja o meu guia, caro Virgílio, enquanto atravesso o vazio. Eles disparam à frente, incrédulos, querendo agarrar os meus pés, mas temendo que eu perca o equilíbrio e caia. Com um desespero contido, começam a implorar, mas eu já lhes dei as costas. Sei o que devo fazer. Lá em baixo, a uma distância vertiginosa, telhas vermelhas se espalham como um mar de fogo pelo campo..., iluminando a bela terra um dia povoada por gigantes... Giotto, Donatello, Brunelleschi, Michelangelo, Botticelli. Aproximo os dedos dos pés da beirada. Desça!, gritam eles. Ainda há tempo!
Ó, ignorantes obstinados! Por acaso não conseguem ver o futuro? Não conseguem entender o esplendor da minha criação? Como ela é necessária? É com prazer que faço este derradeiro sacrifício..., e com ele extinguirei as suas últimas esperanças de encontrar o que buscam. Jamais conseguirão localizá-la a tempo. Centenas de metros lá em baixo, a piazza de paralelepípedos me chama como um oásis de serenidade. Como eu gostaria de ter mais tempo... Porém esse é o único bem que nem mesmo a minha enorme fortuna pode comprar. Nestes últimos segundos, baixo os olhos em direcção à piazza e vislumbro algo que me deixa perplexo. Vejo o seu rosto. Em meio às sombras, tem os olhos erguidos para mim. Estão pesarosos, mas neles também percebo reverência pelo que fui capaz de fazer. Você entende que não tenho escolha. Por amor à humanidade, devo proteger aminha obra-prima.
Neste exacto momento, ela cresce..., à espera..., fervilhando sob as águas rubras de sangue da lagoa que não reflecte as estrelas. Então tiro meus olhos dos seus e contemplo o horizonte. Muito acima deste mundo oprimido, faço minha última súplica. Queridíssimo Deus, rogo-lhe que o mundo se lembre do meu nome não como um pecador monstruoso, mas como o salvador glorioso que o Senhor sabe que na verdade sou. Rogo que a humanidade entenda o presente que deixo. Meu presente é o futuro. Meu presente é a salvação. Meu presente é o Inferno. Com essas palavras, sussurro amém..., e dou o último passo para mergulhar no abismo». In Dan Brown, Inferno, 2013, Bertrand Editora, 2013, ISBN 978-972-252-644-9.

Cortesia de BertrandE/JDACT