sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Na tentativa de escapar aos blocos de pedra, às traves que estalam e caem, às telhas que na queda se desfazem a seus pés, elas desviam-se e recuam aturdidas, afastam-se o melhor que podem…»

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1754-1758
«(…) De mais longe chega já o brado que sai de entre os escombros, por onde uma imensa onda galgará mais tarde, maremoto a arrebanhar os restos do pouco que ainda restar. Sempre que a terra parece imobilizar-se, as duas correm esperançadas, sem cuidar de evitar as rachas abertas no solo de onde brota uma lama fervente, imunda e fétida. Logo, porém, os abalos regressam, a derrubar, a acabar com o que ficara suspenso, e no seu descuido elas tombam, erguem-se, magoam-se. Reparando nos soluços emudecidos de Maria, Leonor toma-a pelos ombros frágeis a empurrá-la, a puxá-la em direcção a casa que julga antever à sua frente percorrida por um intenso arrepio, que a leva a tremer de alto-a-baixo parecendo contorcer-se e arquear-se, mas então é o mirante do lado norte da quinta que de súbito desaba numa espécie de suspiro reprimido, enquanto nas grossas paredes das várias fachadas do edifício serpenteiam veios que logo se tornam frinchas enegrecidas, num grande fragor de alvenaria a fender-se, a esboroar-se.
Na tentativa de escapar aos blocos de pedra, às traves que estalam e caem, às telhas que na queda se desfazem a seus pés, elas desviam-se e recuam aturdidas, afastam-se o melhor que podem tolhidas por um terror visceral, a fingirem ignorar a vertigem e a náusea que as acomete, cambaleando entre o pátio e os jardins que se encheram com a família, os criados, com os vizinhos, todos aqueles que ali procuram refúgio vindos de maiores perigos, do inferno em que as ruas da cidade se tornaram. De mãos dadas, encolhidas uma na outra, Maria e Leonor não conseguem evitar os picos dos cardos, os cacos dos vidros, lutam para conseguir respirar o ar pesado e grosso; param um pouco a tentarem engolir a saliva encorpada e áspera com travo a salitre e amargor. Sabor do ar entretecido pelas nuvens de fumo, de cinza e poeira a fazê-las chorar à medida que avançam, pernas e braços lacerados. Passo incerto na teima de se firmar naquela espécie de ondulação obscura, vestidos esfarrapados pelos espinhos de roseiras improváveis. A magoarem-se nas árvores arrancadas pelas raízes que ficam como farpas viradas para o alto, a ferirem-se nas ferrarias espalhadas a esmo, a arranharem-se nas silvas que parecem brotar de súbito por entre as fendas que o solo abre, escaldando debaixo dos pés. Caracóis desfeitos e colados às faces humedecidas pelo suor, pelo ranho e pelas lágrimas que correm sem que dêem por isso, as meninas tentam agarrar-se onde podem, em risco de serem derrubadas por quem corre enlouquecido a tropeçar, a vacilar, a oscilar antes de cair de joelhos, mãos postas numa súplica muda ao Altíssimo. Vamos morrer, soluça Maria num fio de queixa inaudível que leva Leonor, num derradeiro esforço, a tentar distinguir por entre o caos que as rodeia um meio de as pôr no trilho de casa. E é mais por instinto do que por discernimento que se defende e à irmã dos cavalos fugidos, a correrem às cegas relinchando, espezinhando tudo à sua passagem, por entre o negrume que se abatera sobre a manhã ainda há pouco transparente e radiosa.
Escuridade feita de rolos de pó a desprenderem-se da caliça, do estuque, do entulho e também dos fumos dos incêndios ateados pelas velas acesas que, sacudidas dos candelabros e palmatórias, tombam das mesas dos quartos interiores e das bibliotecas, dos oratórios e dos altares, a rolarem pelos soalhos de madeira velha e vulnerável de igrejas, capelas e conventos. Pelos tapetes persas e de Arraiolos dos palácios, flamejando com gosto os cortinados de veludo por onde trepam, lambendo as franjas douradas, os panos de arrás, no devorar dos quadros e das tapeçarias. Chamas num rastejar silvante, um pouco por todo o lado, com preferência pelos cetins, as sedas puras e as rendas de bilros, os livros e os damascos de revestir as paredes, demorando-se em seguida nas imagens antigas dos santos de devoção, e por fim nos móveis: multiplicando-se nos toucadores, nas escrivaninhas, nas camas, nas cómodas de ébano, nos contadores com embutidos, encarniçando-se com afinco no estilhaçar dos espelhos, das louças e dos vidros.
Aterrada, Leonor empurra a irmã para trás no instante preciso em que a terra se imobiliza mais uma vez, curtos segundos em que as duas se sentem colhidas pela cintura, braços fortes a erguê-las à altura do peito do pai, a apertá-las num abraço de susto, quase sem darem conta da voz trémula da mãe, numa mescla de reza entoada, ladainha e palavras de premonição, num imbricado de português e latim: litania que o ruído sombrio das asas e dos gritos estridentes das gaivotas aflitas quase apaga». In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT