terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Madame Bovary. Gustave Flaubert. «Viam-se, pelas portas abertas da estrebaria, enormes cavalos de tração que comiam tranquilamente em manjedouras novas»

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«(…) Essa carta, selada com um lacre de cera azul, suplicava ao sr. Bovary que viesse imediatamente à fazenda Bertaux para pôr no lugar uma perna quebrada. Ora, de Tostes a Bertaux, há pelo menos duas léguas a percorrer, passando por Longueville e Saint-Victor. A noite estava escura. A sra. Bovary temia que o seu marido tivesse um acidente. Então ficou decidido que o criado da estrebaria iria na frente. Charles sairia três horas depois, ao nascer da lua. Mandariam um rapaz na sua direcção para indicar-lhe o caminho da fazenda e abrir os portões para ele. Por volta das quatro da manhã, Charles, bem abrigado no seu casaco, pôs-se a caminho de Bertaux. Ainda envolvido no calor do sono, deixou-se embalar pelo trote pacífico do seu animal. Quando esse parou sozinho diante de buracos cercados de espinho cavados à beira dos campos, Charles acordou de sobressalto, lembrou-se imediatamente da perna quebrada e tratou de recordar todos os tipos de fracturas que conhecia. Havia parado de chover; o dia estava nascendo e, nos galhos das macieiras sem folhas, os pássaros mantinham-se imóveis, eriçando suas pluminhas ao vento frio da manhã. A planície estendia-se a perder de vista, e os arvoredos em torno das fazendas formavam, a grandes intervalos, manchas de um violeta escuro sobre essa larga superfície cinza, que se perdia no horizonte, no tom morno do céu. Charles, de tempos em tempos, abria os olhos; depois, seu espírito cansava-se e o sono vinha, logo ele caía em uma espécie de sonolência em que as suas sensações recentes confundiam-se com as suas lembranças, fazendo com que ele próprio se visse duplicado, como estudante e como marido, deitado na sua cama, como estivera até há pouco, e atravessando uma sala de recuperação, como em outros tempos. O odor quente dos cataplasmas misturava-se na sua cabeça ao cheiro de orvalho fresco; ouvia os anéis de ferro rolarem sobre os trilhos da cama e sua mulher ressonando... Ao passar por Vassonville, viu, à beira de um fosso, um menino sentado à relva.
O senhor é o médico?, perguntou a criança. E, depois da resposta de Charles, pegou nos seus tamancos e pôs-se a correr na frente dele. O agente de saúde, durante o caminho, compreendeu pelo discurso do seu guia que o sr. Rouault devia ser um cultivador dos mais abastados. Quebrara a perna na noite anterior, ao voltar da festa dos Reis Magos na casa de um vizinho. Sua mulher morrera há dois anos. Apenas sua filha, que o ajudava a manter a casa, vivia com ele. Os sulcos das rodas tornaram-se mais profundos. Estavam quase chegando a Bertaux. O rapazote desapareceu, enfiando-se num buraco da cerca, e apareceu logo a seguir no fundo de um pátio para abrir o portão. O cavalo deslizava na relva molhada; Charles abaixava-se para passar através dos galhos.
Os cães de guarda, nas suas casotas, latiam puxando a corrente. Quando entrou em Bertaux, o cavalo ficou com medo e recuou assustado. Era uma fazenda de boa aparência. Viam-se, pelas portas abertas da estrebaria, enormes cavalos de tração que comiam tranquilamente em manjedouras novas. Ao longo das edificações, estendia-se uma grande estrumeira fumegante, e, entre as galinhas e os perus do galinheiro, bicavam aqui e ali cinco ou seis pavões, grande luxo dos galinheiros de Caux. O curral era comprido, e a granja, alta, com muros lisos como a palma da mão. Sob o abrigo, havia duas grandes carroças e duas charruas, com seus chicotes, seus cabrestos, seus equipamentos completos, entre os quais havia tosões de lã azul que se sujavam com a poeira fina que caía dos celeiros. O pátio ficava numa subida; era coberto de árvores simetricamente espaçadas, e o barulho alegre de um bando de gansos retumbava perto do charco.
Uma jovem, com um vestido de merino azul enfeitado com três babados, veio à soleira da porta para receber o sr. Bovary e fez com que ele entrasse na cozinha, onde estava aceso um bom fogo. Em torno dele, a refeição dos trabalhadores ardia em pequenos recipientes de tamanhos irregulares. Roupas húmidas secavam na lareira. A pá, as pinças e bico do fole, todos eles de proporções colossais, brilhavam como aço polido, e, ao longo das paredes, estendiam-se utensílios de cozinha, nos quais se reflectia de maneira desigual a chama clara do fogão, assim como os primeiros raios de sol que penetravam pelas vidraças». In Gustave Flaubert, Madame Bovary, 1856, Relógio D’Água, 2011, ISBN 978-989-641-177-0.

Cortesia de RelógioD’Água/JDACT