domingo, 12 de janeiro de 2020

Os Cus de Judas. António Lobo Antunes. «De tempos a tempos chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais do Estado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava, quinquagenárias sul-africanas que beijavam os doentes…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Se você soubesse o que é acordar com vontade de urinar a meio da noite numa noite sem lua, vir cá fora mijar e nada existir em torno, nenhuma luz, nenhuma caserna, nenhum vulto, só o ruído do seu chichi invisível e as estrelas congeladas na meia laranja do céu, afastadas demais, pequenas demais, inacessíveis demais, prestes a desaparecer porque a manhã surge de repente e é dia adulto, acordar a meio da noite e sentir na quietude e no silêncio, percebe?, o sono inumerável de África, e nós ali de pernas afastadas, em camisa e cuecas, minúsculos, vulneráveis, ridículos, estranhos, sem passado nem futuro, a flutuar na estreiteza assustada do presente, coçando a flor-do-congo dos testículos. Já nessa altura certamente você acostara neste bar, com o mesmo cigarro na mão esquerda, o mesmo copo na mão direita e a mesma absoluta indiferença nos olhos, inalteravelmente imóvel, pássaro de pálpebras pintadas pousado no ramo do banco a tilintar as pulseiras indianas na música precisa dos seus gestos. Gosto dos seus gestos, assim automáticos e lentos como os das figuras dos relógios prosseguindo o seu trajectozinho obstinado, acabava-se de urinar e as bolhas ferviam na terra como se a bexiga, sabe como é, fosse uma chaleira a arder, voltava para dentro, e estendia-me na cama esmaltada de branco da enfermaria até o primeiro clarim me extrair em sobressalto dos meus vapores difusos.
De tempos a tempos chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais do Estado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava, quinquagenárias sul-africanas que beijavam os doentes em arroubos de cio da menopausa, duas actrizes de revista a agitarem a descompasso as pernas gordas num palco de mesas, acompanhadas por um acordeão exausto; jantaram na messe ao lado do comandante reluzente de orgulho, cuja timidez se embrulhava nos sorrisos de um adolescente em falta, enquanto o tenente da criada lhes cirandava em torno, farejando os decotes num êxtase mudo. O capelão, contrito, descia as pálpebras virgens sobre o breviário da sopa.
Quarenta anos a acumular esperma, calculava o capitão idoso a medi-lo de longe. Se aquele gajo se vier afoga-nos a todos na água benta dos tomates. As actrizes acabaram por dormi no posto da PIDE, vigiadas por agentes biliosos cujas sobrancelhas se franziam de ameaças indecifráveis. Dizia-se que a mulher do inspector, espanhola magra com aspecto de contorcionista decadente que se exprimia aos gritos numa linguagem de circo, torturava ela mesma os prisioneiros inventando martírios sem subtiliza de Lucrécia Bórgia das Portas de Santo Antão. Mais tarde, na Baixa do Cassanje, ouvi falar do enforcamento de um ginga para edificação da sanzala, e dos negros que cavavam um buraco na mata, desciam para dentro, e aguardavam pacientemente que lhes rebentassem a cabeça a tiro e os cobrissem de areia, puxando um cobertor de terra por sobre o sangue dos cadáveres. Filhos da pu…, filhos da pu…, filhos da pu…, repetia o tenente, siderado. O branco veio com um chicote, cantava o milícia na viola, e bateu no soba e no povo.

Já reparou que a esta hora da noite e a este nível do álcool o corpo se começa a emancipar de nós, a recusar-se a acender o cigarro, a segurar o copo numa incerteza tacteante, a vaguear dentro da roupa oscilações de gelatina? O encanto dos bares, não é?, consiste em, a partir das duas da manhã, não ser a alma a libertar-se do seu invólucro terreste e a seguir verticalmente para o céu no esvoaçar místico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do espírito, e inicia uma dança pastosa de estátua de cera que se funde até terminar nas lágrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz oblíqua nos revela, com implacabilidade radioscópica, o triste esqueleto da solidão sem remédio». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.

Cortesia DomQuixote/JDACT