domingo, 19 de janeiro de 2020

O Amante de lady Chatterley. D. H. Lawrence. «O intruso! O intruso! E chamavam-lhe pretensioso! Clifford parecia muito mais pretensioso e convencido! E muito mais estúpido»

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«(…) Mas não, nunca acabariam. De certo modo fazia os possíveis por ser maltratado, porque se imiscuía num meio a que não pertencia: a alta sociedade inglesa. E divertia-se com os pontapés que lhe dava. E ele odiava-a. Mesmo assim viajava com o criado e num bom carro, esse vadio de Dublim. Havia qualquer coisa nele que Connie apreciava. Não se fazia importante, não tinha ilusões sobre si próprio. Conversava com Clifford de maneira delicada, breve, prática sobre tudo que este queria saber. Não se expandia nem se deixava entusiasmar. Sabia que tinha sido convidado para Wragby para ser usado, e, como um velho homem de negócios, esperto e indiferente, como um importante homem de negócios, permitia que o interrogassem e respondia sem que os seus sentimentos interferissem. Dinheiro! O dinheiro é uma espécie de instinto, uma das características da natureza humana é fazer dinheiro. Não tem nada a ver com o que uma pessoa faça, nem é um jogo. É uma espécie de acidente permanente da nossa própria natureza. Quando se começa, faz-se dinheiro e não se pára mais, até um determinado ponto, é claro.
Mas é preciso começar, respondeu Clifford. Oh, absolutamente, é preciso entrar na roda, quando se está de fora não se consegue nada. Tem de se lutar para entrar, e uma vez que o tenha conseguido, é inevitável. Mas poderia ter ganho dinheiro sem as peças? Oh, provavelmente não! Posso ser bom ou mau, mas sou escritor, um escritor teatral, e não podia ser outra coisa. Disso não tenho a menor dúvida. E acha que tem de ser um autor de peças para o grande público?, perguntou Connie. É esse exactamente o ponto!, respondeu Michaelis, voltando-se para ela, num impulso súbito. Tudo isso não significa nada. A popularidade não significa nada, nem o grande público, se quiser. Realmente não há nada nas minhas peças que as torne populares, não é isso. São apenas como o tempo... São como têm de ser, pelo menos por agora. Olhou para Connie e os seus olhos um pouco rasgados e a expressão lenta eram de quem se tivesse afogado numa desilusão abismal. Ela sentiu um estremecimento. Parecia muito velho, infinitamente velho, formado por camadas de desilusão, afundando-se dentro dele geração após geração, como os estratos geológicos. E, ao mesmo tempo, estava perdido como uma criança. Um proscrito, de certo modo, mas com a coragem desesperada de uma existência de ratazana. Pelo menos é extraordinário o que você já fez, com a sua idade, disse Clifford, pensativo. Tenho trinta anos, sim, trinta!, respondeu Michaelis, de maneira ríspida e brusca, com um riso estranho, ao mesmo tempo profundo, triunfantemente amargo. E está só?, perguntou Connie. Que é que quer dizer? Se vivo só? Tenho o meu criado, é grego, ele assim o afirma, e é bastante incompetente. Mas conservo-o. E vou casar. Ah, sim, tenho de casar.
Parece que está a falar de uma operação às amígdalas, disse Connie, a rir-se. Tem de fazer esforço? Ele olhou para ela com admiração. Bem, lady Chatterley, de certo modo tenho. Acho... ,desculpe..., acho que não me poderia casar com uma inglesa, nem mesmo com uma irlandesa. Experimente com uma americana!, disse Clifford. Oh, as americanas!, respondeu, com um grande sorriso. Não, pedi ao meu criado que me encontrasse uma turca, ou coisa assim..., mais oriental. Connie estava realmente impressionada com este curioso e melancólico espécime, com um êxito extraordinário. Dizia-se que, só da América, tinha um rendimento de cinquenta mil dólares. Por vezes era atraente, outras, quando olhava de lado ou para baixo, e a luz incidia nele, tinha uma beleza silenciosa e persistente, como uma máscara de um negro esculpida em marfim, com os seus olhos muito rasgados, as sobrancelhas pronunciadas, curiosamente arqueadas, a boca imóvel e contraída. Aquela imobilidade momentânea, mas expressa, aquela imobilidade e intemporalidade a que o Buda aspira e que os negros possuem por vezes, sem querer. Qualquer coisa de velho, de velho e aquiescente, própria da raça. Séculos de aquiescência como destino de raça, em vez da nossa resistência individual. E depois uma travessia a nado como fazem os ratos num rio escuro. Connie sentiu uma súbita e estranha simpatia por ele, feita de compaixão, e com uma tonalidade de repulsa, quase amor. O intruso! O intruso! E chamavam-lhe pretensioso! Clifford parecia muito mais pretensioso e convencido! E muito mais estúpido. Michaelis percebeu imediatamente que a tinha impressionado. Olhava-a com os seus olhos rasgados, cor de avelã, ligeiramente salientes, com uma expressão de pura indiferença. Estava a avaliá-la e a avaliar a impressão que despertara. Com ingleses ele nunca podia deixar de ser o eterno intruso, mesmo tratando-se de amor. No entanto, algumas vezes, as mulheres cediam, e as inglesas também». In D. H. Lawrence, O Amante de lady Chatterley, 1928, Relógio D’Água Editores, Ficções, 2011, ISBN 978-972-708-848-1.
                  
Cortesia de RD’ÁguaE/JDACT