terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Obra Poética Reunida (1950-1996). Hilda Hilst. «Telhas, calhas cordas de luz que se fizeram palavra alguém sonha a carne da minha alma»

Cortesia de wikipedia e jdact

Via Espessa
[…] XIII
« Querer voar, Samsara? Queres trocar o moroso das pernas
Pela magia das penas. e planar coruscante
Acima da demência? Porque te vejo às tardes desejosa
De ser uma das aves retardatárias do pomar.
Aquela ali talvez, rumo ao poente.

Pois pode ser, lhe disse. Santos e lobos
Devem ter tido o meu mesmo pensar. Olhos no céu
Orando, uivando aos corvos.

Então aproximou-se rente ao meu pescoço:
Esquece texto e sabença: as cadeias do gozo.
E labaredas do intenso te farão o voo».

XIV
«Telhas, calhas
Cordas de luz que se fizeram palavra
Alguém sonha a carne da minha alma.

Ecos, poço
O esquecimento perseguindo um corpo
Aqui me tens entre a vigília e o encanto

Cativa da loucura
Perseguindo o louco».

XV
«Eram azuis as paredes do prostíbulo
Ela estendeu-se nua entre os arcos da sala
E matou-se devassada de ternura.
Que azul insuportável, antes gritou.
Como se adulta um berço me habitasse

Foi esta a canção de Natal cantada pelo louco
Quando me deu a Hilde: a porca que levava sobre o dorso».

XVI
«Não percebes, Samsara, que Aquele que se esconde
E que tu sonhas homem, quer ouvir teu grito?
Que há uma luz que nasce da blasfémia
E amortece na pena? Que é a cinza a cor do teu queixume
E o grito tem a cor do sangue Daquele que se esconde?

Vive o carmim, Samsara. A ferida.
E terás um vestígio do Homem na tua estrada».
[…]

Hilda Hilst, Obra Poética Reunida (1950-1996), 1998, organização Costa Duarte, Literatura brasileira século XX, Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/JDACT