quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

A Chave de Salomão. José Rodrigues dos Santos. «O campo magnético foi criado e está a tornar-se mais forte à medida que os protões aceleram. Não há problemas neste sector»

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«(…) Bellamy, movimento! apresentou-se o velho do olhar gelado, a voz baixa e rouca dos que estão habituados a comandar e a ser obedecidos com um estalar de dedos. Frank Bellamy. O segurança suíço observava o cartão, embasbacado. O senhor é da..., é da..., CIA, confirmou Bellamy num tom ácido. Parabéns, rapaz, parece que sabe ler. É um fucking génio. Um burburinho nervoso enchia a grande sala de controlo do CERN. Engenheiros, técnicos informáticos e físicos acotovelavam-se no salão, os primeiros com a atenção presa nos monitores, os últimos em silêncio ou a trocarem observações num sussurro nervoso e expectante. A tensão tornara-se tão espessa que parecia palpável. Não era de admirar. O trabalho que tinham em mãos envolvia grande responsabilidade, pois permitia responder às questões mais fundamentais da nossa existência. Como foi o momento da criação do universo? Quantas dimensões existem? Há um anti-universo? O zumbido da electrónica a computar e o murmúrio dos aparelhos de ar condicionado a funcionarem no máximo enchia a sala de controlo. O rumor permanente era rompido apenas pela voz seca do director a coordenar a operação e pelas respostas sincopadas dos técnicos a quem ia dirigindo as perguntas à vez, como um maestro a harmonizar uma orquestra. O Booster?, quis saber o director, a mão agarrada a um mug de café com o logotipo do CERN. Já está a funcionar a toda a força?
Negativo, foi a resposta do técnico que monitorizava o Booster. Ainda se encontra em aceleração. Qual o valor? Energia, setenta megaelectrões-volt e a crescer. A próxima injecção será no anel um, segmento um, dois pacotes. Cbeck. O director calou-se. Setenta megaelectrões-volt era uma energia relativamente baixa, mas o facto é que as micropartículas tinham acabado de sair do Liriac 2 a cinquenta megaelectrões-volt e era normal que o Booster levasse algum tempo a chegar aos um vírgula quatro gigaelectrões-volt necessários para os protões serem encaminhados para o mais velho acelerador de parculas do CERN, o Proton Synchroton. Bebericou um trago de café, enquanto seguia a informação no seu monitor. Paul, como estão os magnetos?, perguntou. Em linha com o ritmo de aceleração dos protões? Afirmativo, confirmou Paul, responsável pela monitorização do funcionamento dos magnetos de nióbio e titânio. O campo magnético foi criado e está a tornar-se mais forte à medida que os protões aceleram. Não há problemas neste sector.
Os olhos castanhos do director não largavam o ecrã, onde se sucediam números a um ritmo que parecia crescente. Max, o hélio?, questionou, dirigindo-se a um terceiro técnico. Permanece estável? Afirmativo. Os olhos colados ao monitor ficaram presos numa coluna e o que viu manifestamente não lhe agradou. Fez uma careta acompanhada por um grunhido, pousou o mug de café junto ao ecrã e voltou-se para o outro lado da sala. Como vai o PS, Heinrich?, perguntou, impaciente, referindo-se ao Proton Synchroton no jargão coloquial do CERN. Já está a postos para receber os protões? Negativo, Herr Direktor. Falta algum tempo para chegar aos um vírgula quatro gigaelectrões-volt. Qual o valor agora? Energia, noventa megaelectrões-volt e a crescer. Porra, Heinrich, isso está atrasado!, protestou, consciente de que o timing era crucial para o sucesso da operação; a passagem do Booster para a fase seguinte não podia sofrer demoras. Despacha-te com isso! Quero o PS em movimento quando os protões atingirem o valor de um gigaelectrões-volt, ouviste? Ja wol, Herr Direktor.
A impressão de que estava a ser seguido tornara-se muito forte nos últimos minutos e levou Frank Bellamy a deter-se junto de uma esquina do corredor e a lançar um longo e cuidadoso olhar para trás. Examinou o espaço vazio em busca de movimentos reveladores ou de sombras incriminatórias, mas nada detectou de anormal. Susteve a respiração e permaneceu trinta segundos em silêncio absoluto, atento ao mais pequeno som estranho que ali se pudesse escutar. A verdade, porém, é que o crescente rumor do acelerador de partículas em plena operação tornava difícil destrinçar qualquer ruído suspeito, o que inutilizava aquele exercício. Se alguém de facto o seguia, percebeu, não seria assim que o descobriria.
Respirou fundo. Be damned!, praguejou entre dentes. Ou estou a ficar senil e já vejo fantasmas por toda a parte ou então o gajo que me anda a seguir é muito bom... Dobrou a esquina e seguiu em frente, ainda atento aos espectros que pressentia a assombrarem os corredores. Sabia que a intuição raramente o enganava nessas coisas; se tinha a impressão de que estava a ser seguido era porque de facto isso sucedia. Já sentira coisas assim em Berlim Oriental e em Adis Abeba, nos saudosos tempos da Guerra Fria, e na altura constatara que tinha razão e conseguira liquidar os seus perseguidores num beco escondido. Quem lhe garantia que o mesmo não se estava a passar nesse momento? Mesmo assim, reconsiderou. O lugar onde se encontrava não era normal e talvez isso lhe estivesse a nublar a intuição e o raciocínio. Quem sabe se na origem do problema não estaria o poderoso campo criado pelos grandes magnetos que operavam nessa altura? Tinha perfeita consciência de que, a partir de determinado limiar, o magnetismo pode interferir nos processos cognitivos dos seres vivos, e talvez uma coisa dessas lhe estivesse a suceder». In José Rodrigues dos Santos, A Chave de Salomão, 2014, Gradiva, 2014, ISBN 978-989-616-602-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT