sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Os Filipes. António Borges Coelho. «Antes de entrar na cidade, o monarca mandou degolar o doutor Pedro Alpoim, lente da Universidade de Coimbra, preso na abortada fuga de dom António»

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Cortes de Tomar
«(…) O primeiro orador, o filipino António Pinheiro, bispo de Leiria, pediu um perdão geral para todos os que, enganados, tomaram o partido de dom António. Falou seguidamente o doutor Damião de Aguiar, novamente vereador de Lisboa e agora do Conselho do Rei e seu desembargador do Paço. A 18 de Abril era afixado, na portaria do convento de Tomar, o édito de perdão às pessoas que tinham tomado partido pelo rei dom António. Do perdão exceptuavam-se, expressamente, além do Prior do Crato, trinta e dois nobres e fidalgos, entre eles o conde de Vimioso e seu tio, bispo da Guarda, os Meneses, Duarte Lemos, senhor da Trofa, Febo Moniz, ex-vereador da câmara de Lisboa, António Gonçalves Câmara, e dezasseis clérigos, designadamente cinco dominicanos e o frade jerónimo frei Heitor Pinto. Houve muitos mais excluídos, pelo menos 18 em Chaves e 24 em Bragança.
As Cortes de 1581 consagraram o chamado Estatuto de Tomar. Filipe I manteria os foros, as liberdades e os privilégios de Portugal. As Cortes, a assembleia magna dos três Estados de Portugal, deveriam realizar-se no reino. Os cargos civis, militares, eclesiásticos, as comendas deveriam ser usufruídas por portugueses, mas não admitisse nos ofícios da justiça e da fazenda os cristãos-novos. A direcção das fortalezas de África, da Índia e do Brasil ficariam nas mãos de nacionais e também a sua navegação. A língua seria a portuguesa, as moedas de ouro e prata seriam lavradas em Portugal e com as suas armas. Filipe deveria retirar as guarnições militares espanholas das praças e fortalezas do reino. O senhorio de vilas e cidades permaneceria só em mãos portuguesas. Em Lisboa deveria residir o rei ou um membro da família real. Se nomeasse Governadores, escolheria portugueses. Criasse um Conselho de Portugal, constituído só por portugueses, para o acompanharem na direcção dos negócios do reino.
Para atrair, de imediato, as boas graças dos novos governados, Filipe I abriu os portos secos, isto é, aboliu as alfândegas das vilas fronteiriças, incrementando o comércio entre Portugal e Castela; e tomou medidas imediatas para o abastecimento de Lisboa e do país. O Estatuto de Tomar representou o triunfo dos políticos, dos portugueses dispostos a retirar o maior benefício possível da união, e dos castelhanos, convencidos de que o reino se seguraria mais facilmente pela negociação que pela força. Nas paredes do salão do convento de Cristo em Tomar estava a inscrição: aqui está, Hispânia, o descanso certo de teus trabalhos, aqui ambos os reinos dão as mãos em paz. Os negociadores portugueses e castelhanos encontravam-se do mesmo lado, o da legitimidade jurídica e política de Filipe I. E o acordo permitia aos primeiros a defesa das leis e da língua nacional e também limpar a honra e desarmar a resistência do povo. As cortes correram bem mas a tensão que lavrava no reino não poupou a própria vila de Tomar. A 30 de Abril, presentes ainda na vila Filipe I e a sua Corte, rebentou uma desordem provocada por quatro soldados castelhanos. Cem negros, com pedras e lanças, enfrentaram os soldados.

Filipe I (II) em Lisboa
Antes de entrar na cidade, o monarca mandou degolar o doutor Pedro Alpoim, lente da Universidade de Coimbra, preso na abortada fuga de dom António. A morte do professor provocou grande escândalo e foi chorada por todo o povo. A 1 de Junho Filipe saiu de Tomar. Veio festejado, mais por força que por vontade. Passou pela quinta da Cardiga, magnífica propriedade da Ordem de Cristo, por Santarém, Almeirim, Vila Franca, Alhandra. Vinha na galé real, seguida por 11 galés, bergantins e barcas. Os remadores tiraram as camisas e ficaram apenas com uns calções de pano..., são cerca de trezentos, todos de barba e cabelo rapado, escrevia o monarca à filha Isabel Clara Eugénia. Ao passar defronte do Chafariz dos Cavalos, a artilharia dos navios começou a disparar. A galé real continuou até à Ribeira e só parou na Boavista. Como as obras do Paço não estavam prontas, foi dormir a Almada. De todas as janelas [do castelo de Almada] vê-se o rio e Lisboa e as naus e, muitas vezes, galeras. Num quarto alto, onde escrevo, vê-se, de uma janela, Lisboa inteira, e de outra janela, vê-se Belém e muito mais abaixo e todos os navios que entram e saem por ele.
A 29 de Junho, dia de S. Pedro e da entrada oficial, o rei embarcou em Almada na galé real, conduzida pelo marquês de Santa Cruz. O casco, os mastros, as enxárcias e os remos estavam pintados de verde e a galé decorada com as armas de Castela que abraçam como cabeça os demais reinos. Dispararam os arcabuzes, a artilharia do mar e a do castelo». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT

Os Filipes. António Borges Coelho. «Lido pelo Estatuto de Tomar, o país parecia disposto a virar a página de anos de perturbações e conflitos. No entanto, se os representantes dos povos…»

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Entrada de Filipe II de Castela
«(…) A 5 de Dezembro de 1580, quase um ano depois da morte do cardeal Henrique, Filipe II de Castela, o filho da portuguesa, enfraquecido por grave doença e pela morte da sua quarta mulher, a sobrinha Ana de Áustria, deixou Badajoz e entrou em Elvas. Elvas hesitou, mas não opôs resistência. Campo Maior, Estremoz e Vila Viçosa também se entregaram. O duque de Bragança foi a Elvas prestar obediência. Filipe convocou as Cortes do Reino de Portugal. Recomendava às vilas e cidades que se não receba voto para procuradores..., em pessoa que nas alterações passadas seguisse o Prior do Crato dom António. A 11 de Fevereiro de 1581, o núncio apostólico Alexandre Riario, em nossa Corte (Elvas), ameaçava de excomunhão os muitos religiosos, frades e clérigos, assim seculares como regulares, que sem temor de Deus e em grande dano e perigo de suas almas e escândalo de muitos deste reino de Portugal e dos Algarves, saindo de seus mosteiros e igrejas, tomaram armas, e muitos deles, com deixar seu hábito regular, assistiram nas guerras e perturbações deste reino em favor de dom António, Prior do Crato. E ainda agora andam vagabundos. E alguns, estando nos seus conventos, assistem e acompanham ao dito dom António, dando-lhe ajuda e favor com que as ditas guerras podem perseverar e ir por diante. Daqui em diante, nas pregações e nas confissões, não falem do estado do reino de Portugal, salvo aquilo que pertencer à paz e quietação dele, para maior serviço de Deus.
A 27 de Fevereiro o rei espanhol arrancou a caminho de Tomar. Acompanhavam-no os Grandes da Corte e a sua guarda a cavalo. Tomou o caminho de Vila Boim para visitar a duquesa Catarina de Bragança, sua prima, que lhe disputara a herança do reino. O duque veio ao encontro do monarca. Filipe vinha no seu coche, falou-lhe da janela e mandou-o entrar. As três casas do castelo de Vila Boim estavam ornamentadas com riquíssimas tapeçarias de Arras e cadeiras de brocado e veludo. A duquesa pôs um joelho em terra mas Filipe levantou-a fugindo-lhe com a mão. Falaram a sós. Cristóvão Moura segurava a porta. A duquesa mandou servir, em mesas dispostas ao ar livre, muitos pratos de peixe frito, pescada seca, bacalhau, azeitonas e muitos odres de bom vinho. A fruta era melhor do que em Castela.
A 1 de Abril, o monarca entrou em Tomar. Demorara-se em Portalegre, no Crato, em Ponte de Sor e em Abrantes. Em Tomar juntaram-se os arcebispos de Lisboa, Braga e Évora, os bispos de Coimbra, Leiria, Portalegre, Porto, Lamego, Viseu, Miranda e Elvas, menos o da Guarda que seguia dom António, e o do Algarve, Jerónimo Osório, que falecera. A alta nobreza estava em peso: os duques de Bragança, Barcelos e Aveiro; o marquês de Vila Real e o barão de Alvito; os condes de Tentúgal, Castanheira, Portalegre, Vidigueira, Linhares; os membros do Conselho de Estado; o chanceler-mor, os desembargadores e os escrivães da Câmara; e os procuradores de noventa e quatro cidades e vilas.

Cortes de Tomar
Lido pelo Estatuto de Tomar, o país parecia disposto a virar a página de anos de perturbações e conflitos. No entanto, se os representantes dos povos, admitidos pelo novo poder, aceitavam o meio português Filipe I como rei de Portugal, não queriam perder a sua identidade como nação, isto é, não queriam perder a sua língua, as suas instituições, as suas leis, o seu governo, o seu império e, se possível, ganhar mais privilégios. Em Tomar, todos pareciam filipinos mas o grosso da população das cidades e das vilas, enquadrado pelos frades e pelos clérigos, chorava por dom António. E em Lisboa e nas fortalezas das principais cidades e vilas onde estacionavam guarnições militares castelhanas, estalavam motins com feridos e mortos. O conquistador general Sancho Ávila escrevia ao rei Filipe: o Prior é tão querido como o foi o príncipe de Orange em Flandres. Os trabalhos do parlamento iniciaram-se a 16 de Abril de 1581». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Não sei quando o Príncipe teve tempo de a encontrar de novo, mas não a esquecera. Não conheço, igualmente, o que pensou a mulher do Príncipe, dona Leonor, jovem também…»

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A morte de Lancelot
«(…) Mas Carlos é meu primo! É uma questão de família! Vou falar com ele e servir de embaixador, de mediador entre Borgonha e a França! E lá foi, em Agosto, cheio de esperança, depois de abraçar a família, os amigos, a mulher-criança e entregar o Governo, mais uma vez, ao Príncipe herdeiro. Era a derradeira etapa da sua desilusão, o fim do sonho do Lancelot de Portugal.

Dona Ana Mendonça veio no séquito da jovem Rainha para Portugal. Não sei quando o Príncipe teve tempo de a encontrar de novo, mas não a esquecera. Não conheço, igualmente, o que pensou a mulher do Príncipe, dona Leonor, jovem também, e apaixonada pelo marido. Ou não? Ao longo de toda a vida sei que o Rei esteve sempre ligado à mulher, à Rainha. Conheço até a sua dor se ela adoecia e a dor que ambos partilharam quando o destino lhes foi adverso, mas duvido que ela o tenha amado. Eu experimentei essa espécie de união e a outra não precisa de leis, normas, regras, a que marca definitivamente uma vida e, se o não faz até à morte, porque nada é eterno, deixa a sua marca funda em nós durante grande parte da nossa existência.
Não sei o que dona Leonor sentia pelo marido, no início, mas talvez fosse amor. No fim das suas vidas conheci melhor os seus sentimentos e sei que o ódio foi mais forte e o ódio é muitas vezes, também, a outra face de um grande amor. Dona Ana e João devem ter-se visto entre o regresso de Castela e o Outono de 1480, quando decidiram viver os dois a sua terna aventura em Cernache do Bonjardim, mas tudo se estabeleceu no silêncio do segredo, na discrição e na etiqueta da Corte que rodeava dona Joana. Nada transpirava. De resto, eram os admiráveis anos de aprendizagem do Príncipe. Quatro anos de admirável estudo e aprendizagem. Em França, o pai talhava com a sua proverbial imperícia o seu infeliz destino e o filho, por cá, governava o Reino e meditava, como o viu, mais velho, centenas de vezes, o bom do Resende (sempre gordo e reboludo, aquele simpático servidor de toda a gente, dos Reis, quero eu dizer, sejam eles quais forem), como o viu, ao Homem, pensativo, às vezes até triste pelas decisões que era obrigado a tomar, a organizar a vida dele, a do Reino, a do mundo, em frente do seu tabuleiro de xadrez, já longe dos amores, da paixão arrebatadora da carne, dos sentidos, na missão sagrada que o poder confere e que se não pode trair ou falhar.
A partida do Rei, que desceu no porto de Collioure, pressupunha o governo do Príncipe sem obstáculos, mas o jovem percebeu que ficavam no Reino, e disso deviam ter convencido o Monarca, Jorge Costa e o Bragança. É evidente que se devem ter prontificado a auxiliar o Regente enquanto o pai tratava da sua espinhosa missão... O cardeal, homem inteligente, deve ter percebido logo que a viagem do filho do eloquente Duarte I de santa memória seria infrutífera. O Bragança, não sei. Era demasiado terra a terra nas suas concepções políticas, de estado, para atingir um tal discernimento. Homem de terras, senhor de grande poder, homem do século devoluto como o pai e o avô, criado na velha tradição. Ao Príncipe, se não disse nada, não agradaram aquelas duas fastidiosas presenças. Compreendeu perfeitamente que apenas lhe serviam de censores, embora disfarçados, pois apenas queriam controlar as acções de alguém que adivinhavam adverso à sua causa.
Antes de Novembro, em Tours, o Rei Afonso de Portugal, que nunca estivera em local tão frígido, num Inverno, não teve esperanças de se encontrar face a face com o seu colega francês! Vira parte da bela França, os seus castelos, as cidades, e observara, com a devota atenção de um estudioso, os livros iluminados de Lanzarote e de Tristão. Finalmente, ricamente vestido, com o fausto comum à Corte portuguesa, Afonso lá se achou no vasto salão de recepção onde certamente ficou espantado com a ridícula e enfezada figura daquele rei literalmente atabafado em roupas, pálido mas com duas rodelas nas flácidas e magras bochechas, como os bêbedos, de nariz comprido e fonte grossa e arredondada e com chapéu sob o qual ainda usava dois capuchos e um barrete. Afonso não era um belo homem, estava prematuramente envelhecido, mas perante aquele ser de aparência mesquinha, era imponente. Tudo no outro era vulgar, ordinário, de má qualidade, menos a inteligência, a sagacidade de raposa, a sua astúcia.
O pobre Afonso de Portugal apenas recebeu promessas e esqueceu-se que só se negoceia em condições idênticas, senão um é o pedinte e o outro, o que regateia tudo, até a vida do que solicita, se for preciso. A fama do Rei de França chegou até nós, a toda a Europa. Afonso de Portugal perdeu mais essa batalha. Quantas mais crises e divisões na Península tanto melhor para o cristianíssimo Rei Luís... Divide et Impera já o escrevera Júlio César». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «… Carlos, que até também era português, diziam seus amigos, no feitio temerário e na cor dos cabelos, da tez, na compleição... Afonso não aprendera»

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A morte de Lancelot
«(…) Afonso protegeu o castelo e preparava-se para a batalha final. Formou três corpos com os seus homens: à esquerda estavam as tropas do arcebispo de Toledo, do duque de Guimarães e do conde de Vila Real, no centro, os homens chefiados pelo próprio Monarca; à direita, com a tropa mais adestrada, o Príncipe João. A batalha não foi ganha por ninguém, a não ser pela ala do Príncipe. Depois de uma renhida chacina de parte a parte, apenas o corpo de exército do Príncipe foi vencedor e desbaratou o inimigo. O rei Afonso deu ordem de recuo e, aterrorizado perante a extensão do que julgava ser o fim das ilusões e do conflito militar, fugiu para Castro Nuño. Os castelhanos debandaram também, mas clamando vitória que, aliás, entre eles e Afonso fora impossível, porque empatavam no mútuo desastre. Só o Príncipe ficou em campo, sereno, e preparou-se para os três dias da praxe, tomando o espólio, usufruindo do saque mais os seus homens. A verdade é que Fernando de Aragão assistira, impotente e indefeso, ao recuo da sua vanguarda perante o futuro Rei de Portugal e, por isso, abandonou também o campo, os seus homens, e regressou a Zamora.
A chuva caía numa densa cortina, mas o Príncipe continuou no campo, juntando os seus homens. Acendeu fogueiras e mandou tocar a festejar a vitória. Os tambores ecoavam pela planura como um canto vindo das profundezas da terra. O arcebispo de Toledo aconselhou-o a não permanecer tanto tempo. Não três dias. Bastavam três horas. Ele ficou parte da noite. Não o denotava, mas estava preocupado. Que acontecera ao pai? Gonçalo Pires entregou-lhe a bandeira real que Duarte Almeida, de coutos ensanguentados, ainda agarrava nos dentes, tendo ficado prisioneiro. Em Toro não se achava o Rei. Todos se lamentavam. E foi então que o conde de Guimarães, futuro duque de Bragança, pois o pai só morreu dois anos mais tarde, o increpou violentamente: podiam eles chamar-se cavaleiros? Vós que abandonastes vosso Rei e Senhor? João não reagiu. Ficou a olhá-lo e os olhos negros, que pareciam deitar lume, apenas se raiaram de vermelho. Muito circunspecto, acalmou-o e não respondeu directamente ao remoque. Mas não esqueceu. Depois souberam que tudo estava bem e o Rei salvo e de saúde.

O futuro duque fizera mal em atacar o Príncipe, pois fora injusto, mas não era tempo de quezílias. O problema, em rermos políticos, resolvera-se de forma inegavelmente positiva para Aragão e Castela. O Príncipe compreendia que a união das duas Coroas não podia ser consumada pela guerra, mas pela diplomacia e pela ciência política, e custava-lhe ver o pai perder todo o prestígio de uma vida de guerreiro e defensor da Fé que conseguira em África. Do lado de Castela todos lhe viravam as costas... O duque de Arévalo e os outros. As incursões de pirataria em território nacional continuavam e, por outro lado, a rapacidade dos nobres portugueses avolumava-se. O Rei não teria coragem de lhes recusar nada. Por isso lá conseguiu do pai um documento em que este prometia contenção nas doações e autorizava o Príncipe a decidir segundo seu parecer, se caísse em tentação...
João regressa a Portugal. Deve ter deixado o Rei como um pai larga o filho em terra estrangeira. Estava-se na Páscoa e só em Junho Afonso cruzou a fronteira e entrou em terra portuguesa. Isabel de Castela e o marido também tinham compreendido que o grande jogo não se faria já com o infeliz e confiante Afonso, mas com aquele seu filho, o primo reservado, calado, de olhar severo e voz fanhosa. O Monarca, entretanto, enviara cartas para França a pedir auxílio ao astuto Rei Luís, e Álvaro Ataíde regressava da sua missão, felicíssimo. Novamente o pai de João, impante de alegria, preparou-se para viajar até à Corte do raposão que afirmara ao embaixador português que tudo faria logo que as coisas, se resolvessem com o opositor, o duque de Borgonha, aquele determinado e teimoso (saía à mãe portuguesa) Carlos, que até também era português, diziam seus amigos, no feitio temerário e na cor dos cabelos, da tez, na compleição... Afonso não aprendera. Jamais aprenderia. Eterno menino crescido, agora calvo, de barbas sulcadas de fios de prata, não aprenderia nunca que em política nada se resolve com simplicidade». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Os exércitos sabiam que a batalha estava para breve e seria ali, perto do castelo onde se refugiavam o Rei de Portugal, a Rainha, o Príncipe e seus partidários»

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A morte de Lancelot
«(…) Saqueando e violando como bárbaros. O Príncipe, numa noite, com um punhado de bons soldados, teve de tomar de assalto Ouguela, ao pé de Estremoz, que um contingente castelhano conquistara... Afonso escreveu uma carta ao filho, pedindo-lhe auxílio e marcando-lhe um encontro em Zamora. Em Miranda do Douro, o herdeiro da coroa, em vez da escolta prometida pelo pai, tinha à sua espera Vasco Martins Chichorro, capitão da guarda real. Por Deus, não avançasse! Dois alcaides traidores tinham prometido a Fernando e Isabel prendê-lo como refém! A traição fora descoberta pelo Rei em Zamora e este tentara liquidar os dois traidores. Em vão, entrincheirados, junto à ponte, os castelhanos ainda dizimaram mais portugueses! A cidade berrava traição!, todos corriam, discutiam, a paz perdera-se, a histeria instalava-se e o Rei e a Rainha, no meio da confusão geral dos populares em desvario e dos conselheiros, não sabiam o que fazer. Dona Joana olhava, atónita, aquele gordo tio e marido, indeciso, desesperado, impotente como um bebé, perante o descalabro que se avizinhava. Portanto, se a traição imperava, era preferível seguir dali para o castelo de Toro, para redobrada segurança, aconselhou o arcebispo de Toledo. E assim se fez, embora isso provocasse o desalento nas próprias hostes partidárias do lado castelhano, que desejavam manter Afonso em Zamora...
O Príncipe achou que era de mais e não podia consentir em ver o pai numa tal situação pela sua honra e dignidade. Foi à Guarda. Convocou as cortes. Precisava de gente e dinheiro para atravessar a fronteira. Conseguiu-o com empréstimos, inclusive dos eclesiásticos, e a prata das igrejas. Claro que assistiu ao saque que os fidalgos fizeram, aproveitando-se da situação..., mas não era tempo para censuras e dialécticas de tom moral. O tempo urgia. Estava-se a 24 de Janeiro de 1476. Deixou a regência à mulher, dona Leonor. Entretanto, recebia notícia de um primo, Carlos de Borgonha, que começava também, com as suas ambições, a declinar: os franceses preparavam-se para o vencer no duelo de vida e de morte que se estabeleceu entre a sua Liga do Bem Público e a Coroa francesa. No início de Fevereiro chega a Toro. Levava consigo um exército de emergência, mas coeso e disciplinado. Saqueou San Felices, entrou em Ledesma, que se lhe entregou, e reabasteceu-se. Quando chegou junto do pai, a esperança voltou e o Monarca revigorou-se, parecia mais novo, cheio de sonhos como uma criança que alcança o aconchego do lar, no colo protector da mãe. E a verdade é que o filho passara a ser a mãe e o pai do Rei português. Passara a ser tudo. A madrasta, jovem e alegre, abraçou-o como salvador, no meio das suas damas, algumas tão jovens como ela. João olhou uma que o fixou também e que não mais iria esquecer. Era filha de Afonso Furtado Mendonça e, como açafata da Rainha, acompanhara-a a Toro. Descendente de subida linhagem, muito grácil e bonita, agradou ao Príncipe que, pela primeira vez, se sentiu enfeitiçado, experimentando o fulgor de um sentimento que desconhecera até então, mas havia trabalho a fazer. E trabalho inadiável.
O Inverno era duro e, nas tendas, os soldados tiritavam. O rei Afonso tentou reconquistar Zamora, depois de negociações que não se concluíram. Chegou a Toro praticamente seguido pelas tropas de Fernando, que o espiavam. Os soldados não conseguiam manter as tendas secas nem, muitas vezes, de pé, devido à ventania. A chuva caía, insistente, gelada. Os exércitos sabiam que a batalha estava para breve e seria ali, perto do castelo onde se refugiavam o Rei de Portugal, a Rainha, o Príncipe e seus partidários. E assim aconteceu numa terrível tarde de nevoeiro, chuva, frio, onde homens e cavalos se enterravam no lamaçal pegajoso por entre os rasteiros arbustos». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «O grande homem das conquistas africanas veria a sua estrela empalidecer nos ermos agrestes de Castela. Depois, pueril e sempre pusilânime, incapaz de uma decisão pensada…»

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A morte de Lancelot
«(…) Que desejariam eles, nascidos perto do mar, alguns mesmo com o Atlântico a beijar-lhes o corpo crestado do sol, na pesca, ou sobre as tábuas das naus, quando num ou noutro arremedo de aventura, tinham andado pelo mar, senão o chamamento do oceano e dessedentar-se nas soberbas e copiosas planuras verdes, sonhando com ilhas ricas e férteis que os esperavam?... São sempre os sonhos de quem sofre na carne o jugo das opostas realidades nos momentos de sofrimento e desânimo. As orações dos intervenientes na campanha e as de dona Filipa em Odivelas, certamente, por aquele primo Rei que lhe matara o pai mas já estaria perdoado porque não fora a raiz e razão do Mal que o levara, de nada serviram ao Rei. Dona Leonor, a nora, rezava também enquanto se entretinha com o filho que era o enlevo dos seus olhos e dos do pai. Em Aveiro, dona Joana seguia os acontecimentos através de informadores que lhe referiam as novidades dos correios que singravam entre Placência, Toro, Burgos, Samora e Lisboa, rezava também para que o pai levasse a bom termo a guerra, tal como sucedia em todo o reino, mas as coisas complicavam-se. Dona Joana, mirando uma das iluminuras do livro de horas que pertencera ao avô, os olhos fixos na imagem da virgem, lia Ave gratia dominus tecum, e naquela tocante cena da Anunciação devia inspirar-se para uma oração muito especial à Mãe do Salvador por aquele pai adorado, bonacheirão e audaz, tão audaz nos seus ímpetos cavalheirescos, que estava a arrastar-se para uma outra cena no palco difícil e inexorável da política, onde iria em breve descobrir que já não tinha lugar, ou nunca o tivera.
O grande homem das conquistas africanas veria a sua estrela empalidecer nos ermos agrestes de Castela. Depois, pueril e sempre pusilânime, incapaz de uma decisão pensada, meditada, definitiva, deixava-se levar pelas correntes opostas, controversas, dos próprios partidários. Ora o aconselhavam a marchar sobre Madrid, e ele aceitava a ideia, mas recuava sob a chuva de protestos dos nobres portugueses, ora cedia às instâncias destes para ficar quieto em Zamora e no castelo do Toro, cujas torres circulares o protegiam de qualquer ataque inimigo.
Perplexo, sempre em ânsias, no centro de um complexo jogo que o ultrapassava, ia devorando nas etapas de uma guerra sem fim nem quaisquer garantias de uma decisiva vitória, o dinheiro, as possibilidades de alimentar o exército e o manter activo e sem suspeita de desalento. Veio de seguida a doença, com as infecções, as diarreias que o calor provocava, as febres que a ingestão de água contaminada e os frutos verdes activavam. Veio o desânimo. Os alcaides começavam a mudar de planos e a escrever a Isabel de Castela. A simplicidade, a bonomia do Rei português, a sua infantil credulidade tinham-nos decidido a abandoná-lo. Essas deserções podiam ser fatais e, pior do que isso, era o jogo duplo, velhaco, dos nobres castelhanos.
Por cá, a situação era difícil porque o Príncipe governava um país pobre, enfraquecido pela guerra, e começava a compreender, com alguma dor, a nefasta amplitude da deficiente administração paterna. Mas nada disse e fez os impossíveis por se sobrepor a essas dificuldades com uma mestria superior ao que se exigia da sua experiência e idade. Afonso desejava ardentemente que o filho estivesse com ele, conversasse com ele. Nunca, mesmo agora, na companhia de seus amigos, de Fernando de Bragança, de seus nobres que o idolatravam, se sentira tão só. Era essa a solidão total: não poder abrir a sua alma à inteligente compreensão do filho, à sua perspicácia. Adorava aquele rapaz esbelto, de tez branca como a mãe e de olhos negros onde cintilava uma espantosa luminosidade e que Isabel lhe dera meses antes de morrer. Perante aquela rapariguinha, filha da irmã, sua mulher no leito logo que o Papa autorizasse, não sentia um décimo do que sentira outrora pela mulher amada. Nem sentia coisa nenhuma a não ser uma grande piedade e a certeza moral do dever de homem e cavaleiro de a defender. Ela poderia dar-lhe a Coroa de Castela, mas, de repente, embora ainda novo, começava a sentir-se distante, envelhecido. Ainda, por cima, sabia-se, ao fim de meses de campanha, inútil, quase indefeso. Não possuía forças militares suficientes para alicerçar as suas posições nos inevitáveis lugares estratégicos que ocupara e prosseguir, em campo, a guerra. Além disso, o esforço de guerra também tinha de ser mantido ao longo da fronteira, do lado de Portugal, onde os inimigos castelhanos entravam em incursões frequentes, queimando, arrasando aldeias e vilas». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
Cortesia de EPresença/JDACT

Dona Leonor. A Triste Rainha. João Silva Sousa. «… e prazer da Reynha […] nom foy ygualmemente recebydo nos coraçooens de todos, mormente do 8.º Conde de Baercelos a quem parecia, que conclusam…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Conhecem-se várias cartas de nomeação que, já rainha, teria outorgado para o provimento de cargos nas terras da sua Casa. Aquando dos pareceres sobre a vantagem de prosseguir a expansão no Norte de África, a soberana tomou uma atitude desfavorável, opondo-se à participação directa do marido nas campanhas em Tânger, até porque, entre todas as razões que possamos supor, ele era um homem instável e, à altura, doente. Não fora o Infante Henrique que fez seu sobrinho e afilhado, o Infante Fernando, o filho varão mais novo do casal, seu herdeiro universal, a rainha dificilmente mudaria de opinião. O facto é que passou a tomar uma atitude favorável e, ao colocar-se ao lado do Navegador, intercedeu junto do rei para que a dita expedição tomasse lugar, mas sem a sua intervenção directa. O Cronista, em duas palavras, faz-nos novas revelações:

vendo-se estrangeira e sentindo quanto el-rei era afeiçoado aos infantes seus irmãos e em especial ao infante Pedro, entre o qual e ela já havia dúvidas de suas boas vontades, estimou, por muito seu interesse e segurança haver para si o coração do Infante Henrique a que, para isso, respondia igualmente com obras e virtuosos sinais de amor.

A soberana achou o requerimento do infante Henrique justo, honesto e sancto e contribuiu, sem, dúvida, para que o marido requeresse do papa a bula de cruzada. Não oferece, aliás, dúvidas o afecto que unia o monarca à esposa, a quem dedicou o Leal Conselheiro, num prefácio em que justifica a feitura do seu texto pelo requerimento da muito excelente Reinha Dona Leonor, sua molher:

vós me requerestes que juntamente vos mandasse screver alguas cousas que havia scriptas per boo regimento de nossas conciencias e voontades.

Pelo testamento do rei, que somente se conhece pela versão de Rui Pina, a regência do Reino fora confiada a dona Leonor, começando esta a usar do governo sem alguma publica contradição e assinando sempre os actos régios com a expressão a triste Raynha. Só Rui Pina alude ao testamento na Crónica que temos vindo a examinar. Esse período vai durar até 1439.
Até então, muita água vai correr por debaixo da ponte. Fala-se do casamento da filha do Infante Pedro, o tio legítimo mais velho, com o herdeiro da Coroa, Afonso, cujo consentimento e prazer da Reynha […] nom foy ygualmemente recebydo nos coraçooens de todos, mormente do 8.º Conde de Baercelos a quem parecia, que conclusam e outorga deste casamento pesava muito (o conde procurava, então, em segredo, por meio do arcebispo Pedro de Lisboa, a quem a raynha pedia conselho, dizendo que não tinha muita fé, e nom tynha booa vontade ao Yfante Dom Pedro, como do que acerca deste casamento lhe tynha permetydo, levando a desdizer-se e a prometer casar o herdeiro do trono com a neta do conde de Barcelos, filha mais velha do Infante João).
Logo após a deposição do corpo do rei Duarte na Batalha, antes do início das Cortes de Torres Novas (1438), Vasco Fernandes Coutinho, marechal, que veio a ser 1.º conde de Marialva, ligou-se por juramento a muitos dos grandes do Reino e todos apoiaram o testamento do rei em favor da rainha, que nom saysse do poder da Raynha; o que elles devyam requerer, e procurar que se compryse […] que nam vyesse em maneira alguma ao Yfante Dom Pedro, de cujos rigores, e mostranças suas falsas, que fazia ao Povo, de justo e saã consciência nom podiam receber, se nom o contrayro. Apostavam estes e outros da fina-flor  da nobreza que a força do infante Pedro seria aquela que lhe adviria o Povo, e gente meuda que sem cabeceiras nem teryam forças, nem daryam ajuda. Os que juraram tiveram de dar um passo atrás, pois todos os mais se desdisseram e acostaram à banda do Infante Pedro e dos outros Infantes, Duques e Condes que ficaram com ele (a rainha, porque crendo, que nestes pêra seus feytos averia a firmeza, que juráram, e lhe prometeram, nom se contentou no princípio destes movimentos d’alguns meos boõs, e onestos, que lhe foram apontados; do que a ella pollos nom aceitar se seguio muyto mal, e ao Reyno, e a muytos delle pouco bem, como se dirá)». In João Silva Sousa, Dona Leonor, A Triste Rainha, FCSHUN de Lisboa,Wikipédia.

Cortesia de Wikipedia/FCSHUNLisboa/JDACT

Dona Leonor. A Triste Rainha. João Silva Sousa. «Filha de Fernando I, rei de Aragão, e da Sicília, chamado o de Antequera, nasceu em data que se desconhece e veio a tornar-se rainha de Portugal por enlace com o Eloquente»

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«(…) O Leal Conselheiro é, inclusivamente, um conjunto de curtos trabalhos de agenda que o monarca ia confidenciando a seus papelinhos, entre eles: o conselho que deu ao Infante Henrique quando foi com a armada sobre Tânger; coisas de que foi requerido nas primeiras cortes que fez em Santarém (1433-1434); lembrança acerca dos prémios devidos a certas classes dos seus homens de criação; tratado do bom governo da Justiça e de oficiais dela, escritos em latim; regimento para aprender a jogar as armas; um tratado sobre as valias do pão, conforme o preço do trigo…
Na reunião dos seus conselhos e avisos (livro da Cartuxa), há matérias mais abrangentes, prosaicas, sublinhadas por João José Alves Dias, na sua edição referida acima, como a da História social e História económico-financeira, a da organização feudal, nomeadamente no que diz respeito às relações senhores-súbditos, o que se colhe em capítulos diversos. O 21.º é um dos preciosos documentos sobre como organizar uma expedição guerreira. Quanto à cultura, esta mostra-se também extensa, na parte que está consagrada a traduções do Latim e seus critérios; regras para ler convenientemente um livro: ainda a estilística, a língua e a ortografia. O capítulo 54 indica a composição da biblioteca do soberano, já estudada por Teófilo Braga. Também a música, com abundância de pormenores, é referida num estudo erudito.
Seguem-se aspectos da vida quotidiana, também muito interessantes. Rui Pina diz-nos que o rei mandava registar os conselhos e as coisas que louvava e de que gostava em um seu livro, que consigo sempre trazia, de cousas familiares e especiais. Ao lermos o Leal Conselheiro, ficamos com a noção exacta que um livro como este, sem um plano pré-concebido, foi redigido com tempo, em consecutivas e demoradas análises introspectivas, profundas meditações sobre a vida, pensando, durante muitos anos, nos assuntos da própria obra e nesta mesma, acima de tudo. Foi também o consequente resultado de apontamentos, que ia mostrando e lendo à sua Rainha. Terá sido ela a mola impulsionadora para a publicação do texto, de maneira a tentar fazê-lo curar-se do humor menencorico e da maneira que fui doente, como ele dizia:

da maneira como se devem amar os casados; ou por que os amores fazem mais sentimento no coraçom que outra benquerença, da prudencia, justiça, temperança, fortaleza e as condições que perteencem a boo conselheiro; das virtudes que se requerem a uu boo julgador; dos pecados do coraçom; dos pecados da omissom; da guarda da lealdade em que faz fim todo este trautado.
Começa-se o trautado que se chama Leal Conselheiro […] a requerimento da muito excelente Rainha Dona Leonor: senhora vós me requerestes que juntamente vos mandasse screver alguas cousas que havia scriptas por boo regimento de nossas conciencias e voontades […] ca scripto é.

O Autor fala das virtudes teológicas, da fé, esperança e caridade e das cardeais, prudência, justiça, fortaleza e temperança. A propósito da virtude da fé, defende acaloradamente a Imaculada Conceição de Nossa Senhora por Imagem de sua mãe e a presença de sua mulher.

Filha de Fernando I, rei de Aragão, e da Sicília, chamado o de Antequera, nasceu em data que se desconhece e veio a tornar-se rainha de Portugal por enlace com o Eloquente. Foi seu irmão, Afonso V de Aragão, o Magnânimo, que tratou do contrato, ávido de estabelecer uma sólida aliança entre as casas de Aragão e Navarra e Portugal. O convénio tomou lugar em 1427, na aldeia aragonesa de Olhos Negros, nas proximidades Daroca, sendo o Infante representado por Pedro, arcebispo de Lisboa, Foi recebedora do Príncipe português, como arras, da quantia de 30 000 florins de ouro aragoneses, assegurados em rendas da vila de Santarém; além das terras e rendimentos respectivos que tinham sido pertença de Filipa de Lencastre, morta em 1415, a saber: Alenquer, Sintra, Óbidos, Alvaiázere, Torres Vedras e Torres Novas. E eram famosos os seus vestidos e mantos compridos de arminho, ouro e prata.
Da parte do rei Fernando I teria o dote de 200 000 florins e o mantimento que sempre fora dado às infantas castelhanas que se tinham vindo casar ao País vizinho, mandando transportar burras de ourivesaria rara e de rica pedraria, e escarlatas e sedas, dados os interesses aragoneses na Itália. Em Abril de 1428, partiu dona Leonor de Valência a caminho de Valladolid e de Portugal, celebrando-se a cerimónia, em Coimbra, a 22 de Setembro». In João Silva Sousa, Dona Leonor, A Triste Rainha, FCSHUN de Lisboa,Wikipédia.

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Dona Leonor. A Triste Rainha. João Silva Sousa. «… o rei revelar-se-ia, durante o seu período efectivo de governo e substituto do pai, um homem de gabinete»

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«(…) No Livro da Ensinança, podemos situar-nos nos problemas da nobreza do País que começam agora a agudizar-se com a sua menor frequência de ocupação profissional. Por outro lado, como o nobre da sétima idade era quase todo proveniente da burguesia, não tinha conhecimentos nem prática da cavalaria na devida conta!(diz o rei; mas esto faço por ensynar os que nom souberem, e trazer em renembrança aos que mais sabem as cousas que lhes bem parecerem, e nas fallecidas enmendando no que screvo a outros poderem avysar) A ausência de conflitos armados, o panorama da paz que, então, podia desfrutar-se, criaram um ambiente propício para o esquecimento de tão nobre desporto e arte, que convinha manter para que as pessoas se achassem sempre aptas a responder a uma eventualidade.
Por outro lado, os fidalgos começavam a interessar-se pelas suas Cortes da Aldeia, para descanso e refazimento de agitações anteriores constantes, e a interessar-se mais pelos serões palacianos, pelo convívio, noutros termos, mais próximo da Família Real e, ao desporto da cavalaria preferiam, como nos refere o soberano, a fala das mulheres, o seu trajar, calçar, jogar à pela, cantar e dançar, porque conhecendo a manha de seer boo cavalgador he hua das principaaes que os senhores cavalleiros e scudeiros devem aver, screvo alguas cousas per que seran ajudados pêra a melhor percalçar os que as leerem com boa vontade e quyserem fazer o que per mym em esto lhes for declarado. É muito justamente considerado o primeiro manual da equitação da Literatura europeia ocidental. Toda a obra é fruto da sua experiência: nom screvo do que ouvi, mas daquela que per grande costumo tenho aprendido (e, neste caso concreto, o rei Duarte chama a atenção dos seus leitores para os avisos que seu pai, João I, já havia enumerado no seu Livro da Montaria; o monarca Duarte I refere-se igualmente no Leal Conselheiro, a esta mesma obra de que possuía um exemplar que corresponde ao n.º 32 do Catálogo da sua Livraria). O livro trata da equitação desportiva e lúdica e da equitação bélica. Ensinando a montar para jogos e distracções, não esquece a luta a cavalo. O livro divide-se em sete partes:

a primeira, acerca do poder do corpo e da fazenda: ser forte;
a segunda, do sseer sem receo;
a terceira, da segurança;
a quarta de seer assessegado, i.e., estar em sossego;
a quinta de seer solto;
a sexta da Enssynança de bem feryr das sporas, e quejandas devem seer; e
como com paao ou vara alguas vezes as bestas se devem governar;
a sétima, por fim dalgua Enssynança pera os periigos e cajoões que a cavallo
acontecem nos podermos com a graça de Deus guardar.

De resto, o que nos diz Oliveira Martins, quase em constante contradição com Rui Pina e Duarte Nunes Leão, é absolutamente insustentável depois de um estudo atento à psicologia de quem era um espírito equilibrado e sensato e que se, alguma vez, hesitou, este homem voluntarioso só conheceu uma vontade superior à sua: a de Deus (Cf. Álvaro Júlio Costa Pimpão, História da Literatura Portuguesa. Idade Média, Coimbra, 1959; disse Duarte I, Nosso Senhor Deus em gran mercê teria se de minha vida, feitos e dictos muitos filhassem proveitosa ensinança e nunca o contrairo; ca scripto he: aquel que faz o pecador em seu viver de maau caminho tornar, guança sua alma e ser-lhe-am cobertos e relevados gram multidam de pecados).
Se nos é possível, neste ponto, acrescentar duas palavras, o rei Duarte I, conheceu também duas mulheres voluntariosas, fortes e orientadoras nos momentos de maior hesitação. Ambas estrangeiras e de superior educação, renovadoras da nossa Sociedade, uma autêntica lufada de ar fresco:

a mãe, dona Filipa de Lencastre;
e a mulher, dona Leonor de Aragão.

Assim se compreenderá como era instruído, possuindo uma esplêndida Livraria e como adorava a leitura. Apesar de ser o autor do Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela e do Leal Conselheiro, o rei revelar-se-ia, durante o seu período efectivo de governo e substituto do pai, um homem de gabinete». In João Silva Sousa, Dona Leonor, A Triste Rainha, FCSHUN de Lisboa,Wikipédia.

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quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Dona Leonor. A Triste Rainha. João Silva Sousa. «Uma depressão, uma forte crise de nervos, a ideia de suicídio…, abateram sobre ele muito novo. Não era fácil carregar sobre os ombros uma missão…»

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«Portugal teve esplêndidas rainhas que souberam ajudar os seus maridos na governação do reino, através de conselhos adequados e na educação dos filhos. Nunca é demais dizer-se que, por detrás de um bom rei, há sempre uma grande rainha. E exemplos disso bem nossos conhecidos estão Filipa de Lencastre, Leonor de Aragão, de quem vamos falar hoje, e uma Infanta que, por acaso, nunca chegou a rainha mas que valeu por dois ou três do seu marido: dona Beatriz, mãe de João, Diogo e do rei Manuel I. À morte do Infante Fernando, dona Beatriz foi tutora e curadora dos filhos e dos bens destes, e uma das mais exímias administradoras dos bens da Família, tendo-se preocupado, inclusivamente, com a gestão das ilhas dos Açores e da Madeira. Dona Leonor ou a triste Rainha encarregou-se de ajudar a curar a doença do marido, da educação dos filhos cuja missão acabou por lhe ser retirada, passando-se para Castela, por razões de Estado e rivalidades entre partidos políticos, encabeçados por importantes senhores feudais no reino, entre 1433 e 1445». In Resumo
                
«Não interessa aqui referir as conjunturas políticas e económicas que o Reino atravessava desde os finais do governo de Fernando I. São por demais sabidas, pois muitos autores têm-se referido a elas. Mas foi, em grande parte, neste ambiente de constante desequilíbrio que nasceu Duarte I, o terceiro filho do rei João, o primeiro, entre os vivos, e lhe veio suceder no trono, em 1433 (João I teve de dona Filipa de Lencastre dona Branca, nascida em Santarém, a 30 de Julho de 1388, vindo a falecer em Março de 1389; acha-se sepultada na capela-mor da Sé de Lisboa; ainda, antes de Duarte, Afonso, nascido igualmente em Santarém, a 30 de Julho de 1390 e falecido a 22 de Dezembro de 1400; foi sepultado na Sé de Braga; o terceiro, primeiro entre os vivos e sucessor do rei, foi Duarte I, que herdou a Coroa). Parece ter sido associado ao governo do pai por 1411-1412, teria, então, 20 ou 21 anos, o que, de facto, para certos casos, seria o tempo de atingir-se a maioridade (acerca da maioridade, o nosso especialista Martim Albuquerque tem sérias dificuldades em obter um número que corresponda aquela: os catorze e os vinte e cinco anos constituem os dois marcos em que o problema da menoridade do rei se moveu; não conhecemos, de facto, quem defendesse um termo da menoridade inferior aos catorze anos ou superior aos vinte e cinco; entre os dois limites assinalados, todavia, oscilaram os factos e a doutrina).
Oliveira Martins, em Os Filhos de D. João I, traça o retrato do herdeiro, da maneira mais infeliz possível, comparando a sua fragilidade e depressão continuada com a fortaleza de ânimo e de espírito dos demais Príncipes seus irmãos. Com efeito, Duarte I mostrava aquela virtuosa abnegação e a passividade que o matou. O rei tinha na sua virtude o quer que é enfermiço e feminino, a quem faltava a energia e a audácia do pai, baseando-se na doença que o Infante contraiu e a que se refere no Leal Conselheiro. E nas compreensíveis indecisões, antes e após o desastre de Tânger, o biógrafo não hesita em qualificar o rei de homem sem vontade própria, sem energia, e demasiado escrupuloso. Uma depressão, uma forte crise de nervos, a ideia de suicídio…, abateram sobre ele muito novo. Não era fácil carregar sobre os ombros uma missão que herdaria do progenitor, só porque fora o primeiro varão a sobreviver, no elenco dos oito legítimos e dos seis vivos. A situação europeia e as eminentes guerras com Castela travadas por convénios de pazes sucessivos devem ter contribuído para um sério estado de esgotamento (o Infante Pedro, de Bruges, escrevia-lhe, entre muitos outros conselhos que lhe dera que se porventura sentirdes vossa vontade cansada e enfraquecida com o peso dos grandes cargos e não ligeiros de remediar, oferecei-lhe [ao Conselho dos seus ministros] os muitos maiores que el-rei vosso pai e outros príncipes passaram e passam e esforçai-vos no muito siso e virtude que vos Deus deu com que sois abastante para sofrerdes tanto como o quer no mundo mais sofreu). Podia, inclusive, nem reunir as condições necessárias para reinar dado que, à época, era tão-só necessário ser-se o filho mais velho para o fazer. O resultado de Tânger, em 1437, não lhe permitiu enfrentar a realidade e pô-lo num estado de acabamento rápido o que fez surpreender os seus mais ligados. Morreu em 1438.
Entretanto, um tratamento sabiamente prescrito por médicos e confessores tornou-o fictícia e temporariamente num homem alegre e de gracioso recebimento, pouco ou nada tendo a ver com o homem sisudo, porque inteligente e amante das letras que o Cronista refere logo a seguir. Esta dualidade psicológica revelada pelo Infante e Rei está bem patente nas suas duas obras». In João Silva Sousa, Dona Leonor, A Triste Rainha, FCSHUN de Lisboa,Wikipédia.

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O Pinhal de Cabeção. Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante. «… casa o elemento primordial do povoamento, é evidente que o Pinhal esteve, desde muito cedo, ao serviço da política de povoamento em que a Coroa e a Ordem estiveram empenhadas e que perdurou por vários séculos»

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«(…) No tombo antigo da Ordem de Avis, datado de 1504, realizado por Diogo Azambuja, o Pinhal de Cabeção figura na lista dos bens da Ordem. A sua administração pertencia ao almoxarife da mesma que também tinha o encargo de dar em sesmaria as terras incultas. Porém, os pinheiros que existissem nessas terras ficavam sempre propriedade da Ordem e ninguém podia cortá-los sem licença do mestre. Os moradores de Cabeção que precisassem de madeira para construir ou reedificar suas casas só o poderiam fazer com licença do almoxarife que lhes assinalaria o local onde deviam realizar o corte, estando-lhes vedado cortar pinheiros pelo pé.
O tombo de 1556, da responsabilidade do licenciado Jorge Lopes, coincide, no essencial, com o anterior, mas é mais rico em pormenores descritivos. Ficamos a saber que a pena aplicada a quem cortasse um pinheiro sem licença era de 1 000 reais em dinheiro, mais 30 dias de cadeia. Porém, os moradores do lugar estavam obrigados a limpar todos os anos o Pinhal e, a troco deste trabalho, recebiam comida e a possibilidade de cortarem madeira para as suas casas. Acrescente-se uma novidade: Jorge Lencastre, filho bastardo de João II e Mestre da Ordem entre 1492 e 1550, dera o Pinhal ao Convento de Avis, ficando o Prior com o encargo do mesmo, pondo nele um guarda, morador em Cabeção. Era desta mata que o Convento tirava a madeira para as suas obras e alguns pinheiros que vendia para as despesas da sua fábrica.
Note-se, a propósito, que o corte de madeiras autorizado aos moradores de Cabeção se restringe, em ambos os documentos, ao madeiramento de suas habitações (sabemos, todavia, que, na Idade Média, era permitido aos moradores das cabeças das matas da Coroa cortarem a madeira de que precisassem, não só para a construção das suas casas, como também para as suas lavouras). Também neles nada se diz sobre a apanha de lenhas ou de outros produtos da mata, mas lendo um documento de 1574 e que se reporta a um costume antigo, podemos ter como certo que os moradores de Cabeção podiam aí colher pinhas, desde que o fizessem no tempo próprio, isto é, depois do dia de Santa Catarina (25 de Novembro). O que ressalta afinal da leitura dos documentos é que o direito ao corte de madeiras no Pinhal por parte dos moradores da vila tinha como fundamento a construção ou reparação das suas casas. Ora sendo a casa o elemento primordial do povoamento, é evidente que o Pinhal esteve, desde muito cedo, ao serviço da política de povoamento em que a Coroa e a Ordem estiveram empenhadas e que perdurou por vários séculos.
Prova eloquente do que acabamos de afirmar foi a doação que fez o Mestre Jorge Lencastre aos moradores de Cabeção de um chão, que fora ferragial da Ordem, para que nele construíssem casas. Confrontava, a poente, com adro da Igreja (que então se encontrava afastada da povoação) e, dos restantes lados, com ferragiais e hortas. Media de comprimento 160 metros e de largura 130 e constituiu o espaço onde se rasgou a Rua da Igreja (actual Manuel de Arriaga) e onde se traçou a quadrícula da Praça e das ruas adjacentes. Este chão, que foi transformado na povoação de baixo (por oposição à
mais antiga, situada no Castelo), já tinha muitas casas feitas em 1556 e corresponde ao casco urbano da vila que hoje conhecemos.
Podemos pois afirmar que o Pinhal de Cabeção foi matriz das casas mais antigas que se construíram no alto, mas que dele saíram principalmente as traves e as vigas com que se levantaram naquele chão as casas da vila nova. Mas se a mata foi mãe generosa das casas dos homens, não podia deixar de sê-lo das casas de Deus: igrejas e capelas que se erguiam ou reerguiam em terras da Ordem de Avis recorriam habitualmente aos melhores pinheiros que se criavam no Pinhal da Ordem. Exemplos desta última vocação encontramo-los no texto das Visitações da Ordem de Avis, que se realizaram em 1578 às igrejas da Ordem. Na visitação à igreja matriz de Benavila, o visitador constata que o alpendre tem muito ruins madeiramentos e recomenda: Sua Alteza deverá de mandar que do pinhal de Cabeção se desse uma dúzia de pinheiros para isso. Na visitação da capela de S. Domingos de Bembelide (Maranhão), reconhece que a igreja e a própria capela-mor estão em completa ruína, pelo que sugere: Sua Alteza devia mandar que se fizesse outra e podia-se fazer com pouco custo de alvenaria e forrada com madeira de pinho a qual se podia dar da mata de Cabeção e a capela-mor de abóbada em que se ponha um retábulo pintado». In Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante, O Pinhal de Cabeção, Memória Histórica, Edições Colibri, 2009, ISBN 978-972-772-895-4.

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O Pinhal de Cabeção. Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante. «A necessidade premente de homens para a guerra levou este rei a proceder ao arrolamento dos besteiros do conto, nomeadamente os da comarca de Entre Tejo e Guadiana»

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«(…) A pedido do Mestre, e para atrair povoadores. o Rei concede vários privilégios e isenções aos seus moradores presentes e futuros. Não poderiam ser obrigados pelas justiças a levar presos, nem a transportar cargas ou dinheiros, ainda que destinados à corte. Ficavam também isentos de fornecer alimentos e vitualhas (como pão, vinho, carne, galinhas, roupas, bestas e palha) para aposentadorias e abastecimento da mesa dos senhores, sob pena do pagamento de 6 000 soldos ao rei. Estamos perante uma importante carta de privilégios (que alguns erradamente têm confundido com um foral) que punha os moradores da vila a coberto de abusos, a que os povos estavam normalmente sujeitos. Por isso, os moradores de Cabeção guardavam ciosamente o seu treslado dentro de uma caixa de pau, selado com selo de cera pendente.
A avaliar pelos documentos citados, parece fora de dúvida que foi João I (que antes fora Mestre de Avis) o rei que mais contribuiu para o povoamento ou repovoamento da vila e do termo de Cabeção. Os meios por ele utilizados foram a concessão de privilégios e isenções aos seus moradores e a distribuição de terras incultas pelo sistema de sesmaria, prática que deixou marcas na toponímia local (é o caso do topónimo Sesmarias que, em documentos do século XVIII, compreende a Sesmaria do Chiqueiro e a Sesmaria da Palhagueira). Embora não disponhamos, para esta época, de referências concretas ao Pinhal, somos informados, por documentos posteriores, de que João I, ao mandar distribuir as terras incultas aos povoadores, impôs a seguinte condição: todos os pinheiros que nascessem nessas propriedades ficariam reservados à Ordem, sem que os donos das terras pudessem dispor de tais pinheiros.
A necessidade premente de homens para a guerra levou este rei a proceder ao arrolamento dos besteiros do conto, nomeadamente os da comarca de Entre Tejo e Guadiana. Por este rol ficamos a saber que Avis, sede da Ordem, fornecia um contingente de 20 homens e que Montemor-o-Novo proporcionava 32. Cabeção (então associado militarmente a Montargil) contribuía com 12 besteiros para a hoste, facto que denota alguma importância estratégica e demográfica destas povoações.
Como atrás se disse, a primeira referência expressa conhecida ao Pinhal de Cabeção é uma carta de privilégios, passada em Coruche, a 11 de Abril de 1469, pelo rei Afonso V, a favor de Fernão Gonçalves, morador em Cabeção, que se propunha fazer uma estalagem, considerada muito necessária para os caminhantes que transitassem por este lugar (chancelaria de Afonso V. Esta estalagem situava-se no rossio conhecido por Eira do Quarto, à beira da estrada para Montargil, Avis e Galveias; referências à estalagem velha chegaram ao século XIX, para a distinguirem da estalagem nova que, no século XVIII, existia no Terreiro da Estalagem, actual largo da República, junto da estrada para Pavia, 1784): dispensa-o de prestar serviços, como o serviço militar, o exercício de tutorias e a condução de presos e dinheiros. Isenta-o de viários tributos, como peitas, fintas, talhas, pedidos e empréstimos e excusa-o do pagamento de sisa na compra das mercadorias necessárias ao abastecimento da estalagem.
Ficamos a saber que o sustento anual da mesma estava avaliado em: 6 moios de trigo e 3 de cevada; 2 cargas de azeite; 1 carga de pescado seco e 2 de pescado fresco; todas as carnes frescas ou secas que pudesse obter; 4 bestas para serviço da casa; mantas, chumaços (travesseiros) e lençóis; 24 cargas de vinho, vinagre, sal, cebolas, alhos, frutas e pescado do rio. Em contrapartida, o estalajadeiro obrigava-se a ter um par de camas e a manter uma barca para passar a ribeira de Raia. O rei concede-lhe o rendimento da barca e encarrega-o de guardar o Pinhal da Ordem de Avis, que existe neste lugar.
Como vemos, a necessidade de povoar a terra continua a estar presente nas intenções régias, mas os privilégios então dispensados pretendem assegurar a circulação de gentes e produtos. Constatamos ainda que a guarda do Pinhal estava a cargo do estalajadeiro, que era simultaneamente o detentor da barca de passagem, mas não ficamos a saber qual era o tipo de relação que existia entre os moradores da vila e o respectivo Pinhal. Para tanto, teremos de recorrer a documentos posteriores». In Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante, O Pinhal de Cabeção, Memória Histórica, Edições Colibri, 2009, ISBN 978-972-772-895-4.

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O Pinhal de Cabeção. Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante. «… para cobramento da terre e haverem mantimento no dito logo os que per aí forem e vierem e esquivar mortes e roubos e outros males que se em aquela comarca fizeram e faziam»

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«Para lá de tais vicissitudes, este importante património natural tem uma história singular que é indissociável da história da vila de Cabeção e da região onde se situa. Mas a história do Pinhal reveste-se de um extraordinário alcance porque nela se reflecte toda a dinâmica da história de Portugal. Numa primeira fase, desde que Afonso II, em 1211, doou aos freires de Évora o lugar de Avis, para nele edificarem castelo e daí defenderem e povoarem toda a região circundante, o Pinhal de Cabeção pôde contribuir para a realização destes objectivos. Depois, quando a Coroa lançou ombros à empresa gigantesca dos Descobrimentos, esta Mata foi tida como uma reserva de matéria-prima ao serviço das armadas. No período das guerras da Restauração e das do final do Antigo Regime, as madeiras do Pinhal foram canalizadas para a defesa militar das praças fronteiriças. Seria, sem dúvida, a Revolução Liberal que, com a nacionalização dos bens das Ordens, mais havia de marcar a história deste património multicentenar, alterando, de forma dramática, a sua relação com a própria vila de Cabeção.
A abundância de documentos a que tivemos acesso, provenientes da época que decorre entre a queda do Antigo Regime e o triunfo da Revolução Liberal, levou-nos a dar especial enfoque à história do Pinhal, durante o segundo quartel do século XIX. Podemos, assim, constatar que, tratando-se embora de um período de crise e de controvérsia, ele foi, simultaneamente, um período de grandes iniciativas e realizações, que se traduziram numa das épocas mais activas da história desta Mata Nacional. Para tanto, contribuíram a determinação dos governantes, a perseverança e a actividade de alguns administradores e pessoal da Mata, bem como a vigilância laboriosa do povo da vila de Cabeção. Os limites cronológicos deste estudo são, a montante, o final do século XIII e, a jusante, o terceiro quartel do século XIX. Nele procurámos delinear as principais linhas de rumo que modelaram a história do Pinhal de Cabeção e, sempre que possível, identificámos os seus protagonistas. Podemos afirmar que a história inédita deste património multissecular é apaixonante. A sua divulgação contribuirá, segundo cremos, para o conhecimento das raízes da nossa identidade e para a tomada de consciência dos valores que herdámos e devemos preservar.

Na Idade Média e Antigo Regime
O Pinhal sob o domínio da Ordem
O documento mais antigo que conhecemos, contendo referências expressas ao Pinhal de Cabeção, como Pinhal da Ordem, data de 1469, mas é bem provável que a sua ligação à Ordem de Avis seja muito anterior. De facto, em 1279, já a capela de Cabeção, da invocação de Santa Maria, se contava entre as capelas fundadas pela mesma Ordem no termo de Avis (as outras capelas eram as de Cano, Sousel, Benavila e Figueira e, em todas elas, a Ordem de Avis tinha a prerrogativa de nomear os respectivos curas, que eram sempre freires da Ordem). Em 1295, o rei Dinis I doava vitaliciamente a sua filha dona Constança a Quinta de Cabeção e, em data desconhecida, esta propriedade foi doada pela Coroa à Ordem de Avis, senhora de bens e direitos na região. A importância da Quinta era tal que, num tombo de meados do século XVI, a própria vila de Cabeção se identifica como Quinta da Ordem (chancelaria de Dinis I, Direitos, Bens e Propriedades da Ordem e Mestrado de Avis nas suas três vilas de Avis, Benavila e Benavente e seus termos, no ano de 1556).
Podemos afirmar que o povoamento e a defesa da terra foram a razão de ser daquelas doações régias, mas que também a Ordem militar de Avis se distinguiu pela aplicação de regras sistemáticas de povoamento nos territórios que dominava. Durante toda a Idade Média, Coroa e Ordem conjugam-se na prossecução de objectivos comuns, sem esquecer o estabelecimento e segurança dos caminhos.
Foi a1iás, com este fim que o rei Dinis I fundou a póvoa de Mora: para cobramento da terre e haverem mantimento no dito logo os que per aí forem e vierem e esquivar mortes e roubos e outros males que se em aquela comarca fizeram e faziam.
Foi com intuito povoador que João I, a 31 de Janeiro de 1405, estando em Montemor-o-Novo, determinou que os sesmeiros dos lugares de Juromenha e Cabeção, ambos da Ordem de Avis, pudessem mandar apregoar e fazer éditos pelas respectivas comarcas, citando os possuidores de bens nas ditas localidades, que ao tempo estivessem ausentes, para os virem aproveitar, doar, escambar, aforar ou vender, no prazo de quatro meses, sob pena de esses bens serem distribuídos em sesmaria. Dois dias depois, o mesmo rei dá conta que o Mestre de Avis, frei Estêvão Rodrigues, se lhe queixara de que a vila de Cabeção e seu termo, que costumava ser muito bem povoada de gentes e lavradores que lavravam e aproveitavam bem as herdades, estava então muito despovoada, em virtude da guerra com Castela». In Maria Ângela Beirante e Cândido Beirante, O Pinhal de Cabeção, Memória Histórica, Edições Colibri, 2009, ISBN 978-972-772-895-4.

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