terça-feira, 27 de novembro de 2018

O Tempo e os Homens. António Borges Coelho. «Que valores impulsionavam as comunidades no Ocidente muçulmano? A resposta envolve uma investigação bem mais profunda»

jdact

Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
Da cidade muçulmana
«(…) Em suma, o juiz acumulava funções de gestão da cidade e do termo, funções judiciais e também funções religiosas na medida em que organizava a guerra santa e era o fiel depositário do tesouro pio guardado na mesquita-aljama. Pelo seu lado, o almotacé, era como o irmão do juiz e devia vigiar o trabalho dos artesãos e dos obreiros, organizados em corporações, e zelar pela higiene da cidade e a observância das prescrições religiosas. O centro físico da medina ou cidade era a mesquita maior. Nas suas naves liam o Corão e a Suna e nas galerias um alfaqui doutrinava e ensinava as gentes que se purificavam na sala de abluções. As mesquitas coexistiam com igrejas, conventos e sinagogas.
A cidade que perpassa nos poemas confirma o Tratado de Ibn Abdune. Os poetas do Andaluz cantam os palácios como o Palácio das Varandas de Silves, as casas de campo com os seus jardins. No Palácio Bendito de Sevilha, onde foi morto Ibn Amar, coexistiam as câmaras e alcovas com os jardins, com a masmorra na torre sobre a porta e com o cemitério. Com os poetas entramos na alcáçova e na mesquita, ouvimos o marulhar dos mercados. As muralhas, a que se encostam as vielas e os vãos, circundam a medina. Às portas chegam as caravanas com as mercadorias e as notícias cantadas pelo pregoeiro. Entre as mercadorias, as mercadorias humanas com corrente e tronco soldado ao pé. Havia casas ricas com colunas, casas térreas, casas de sobrado, casas próprias e casas de aluguer. Neste mundo de cidade não faltava o ouro nem a prata nem a moeda dos maravedis. Os mercadores e artífices com as suas tendas organizavam-se em corporações, como pode ler-se nos versos de Al-Mertuli:

Recomendei-te que não desejasses o cargo de tabelião
nem o de imã nem o de síndico de corporação.

E nalgumas cidades nem faltavam os esgotos. Abdalá ibn Uázir, poeta e alcaide de Alcácer do Sal na altura da conquista final cristã, queixava-se nos seguintes versos:

Não desesperes de chegar a califa
pois Ibn Amar foi nomeado inspector das alfândegas.

Desgraçada época em que se fazem coisas como esta
colocar altos cargos
nas mãos de um limpador de esgotos.

Valores
Que valores impulsionavam as comunidades no Ocidente muçulmano? A resposta envolve uma investigação bem mais profunda. Averbarei tão-só dois breves apontamentos. Se a poesia exalta o prazer dos sentidos, Ibn Baja na Carta de Adeus, por exemplo, declara que são dois os fins que os homens se propõem: um, lograr com os seus actos tudo o que agrada a Deus; o outro, um fim misto que se compõe dos fins próprios da gente rica e dos fins da gente nobre, isto é, lograr o prestígio social oferecido pela ostentação, os vestidos, os adornos luxuosos e o gozo dos prazeres. Estes são os fins louváveis. Evidentemente, os pobres tinham que contentar-se com agradar a Deus. Mas os ricos e nobres que buscam somente os prazeres sensíveis são censuráveis, vis e néscios. Aos prazeres do domínio, do deleite das honras e da glória mundana, Ibn Baja aponta-lhes o prazer que se alcança no estudo das ciências.
Este estudo envolve dois tipos de deleite: um, que se origina no desejo de saber, que provoca dor e se parece com o deleite corpóreo; e o outro, o deleite daquele que conhece alguma coisa e constitui um prazer perene e nele participam quatro dos prazeres corporais, principalmente o prazer da vista e do ouvido. Para Ibn Baja o fim mais eminente era não só a procura mas principalmente a contemplação do saber que se confunde com a contemplação de Deus». In António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.

Cortesia Caminho/JDACT