segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Os Reféns. 1147. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Temendo não ter tempo, Mem aproximou-se da varanda do palácio até onde, um dia, tinha subido para salvar a vida a Zaida»

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Os Reféns. 1147
Silves, Agosto de 1147
«Quando os exércitos de Ibn Wasir entraram finalmente em Silves, Mem temeu um destino trágico para a princesa Zaida e obrigou-se a uma manobra perigosa. Arriscaria a vida por ela. Era essencial, pois Wasir sempre a odiara desde a primeira vez que haviam chegado a Mértola, há oito anos.
Homem com rancor, vinga-se com ardor.
Já apoiado pelos almóadas africanos, Ibn Wasir controlava agora uma enorme taifa, um vasto reino muçulmano, cuja sede era em Badajoz e que incluía também Alcácer, Évora, Beja, Cáceres e a recentemente reconquistada Mértola. E Silves estava por fim a cair-lhe nas mãos. Ibn Qasi, o fanático sufi, perdera a gente do Al-Gharb. Chegado de Lisboa já com Silves cercada, Mem escondera-se nos arrabaldes, sem conseguir falar com Zaida, que nunca saía do palácio. Desprovido de um plano, esperou a resolução final da luta. O momento certo para avançar surgiu quando ruiu parte da muralha, no sueste da povoação. Centenas de soldados de Ibn Wasir entraram aos gritos e as tropas de Qasi, em vez de recuarem para a alcáçova, tentaram pelejar nas ruelas, cometendo um erro clamoroso, pois depressa foram dizimadas pelas hordas numerosas do antigo alcaide de Mértola.
Emir sem talento, final sangrento.
Rápido, Mem correu para a zona norte da povoação, quase deserta e isenta de escaramuças. Laçou a corda num adarve e içou-se até ao topo da muralha exterior, descendo do outro lado e avançando pelas ruas da almedina encostado às paredes, como se fosse um assustado habitante, magro devido à penúria alimentar gerada pelo cerco.
Povo esfomeado, mais facilmente é vergado.
História repetida, menos apetecida. As gentes de Silves rendiam-se sem drama e o habilidoso emir de Badajoz não promovia carnificinas inúteis. Os soldados ignoravam o povo, o que ajudou Mem a chegar perto do palácio. Já ali estivera antes e recordou-se da ribeira que passava por debaixo da muralha interior. De cabeça baixa, com o arco e a aljava de flechas a tiracolo, entrou na água, e atravessou uma galeria, saindo do outro lado. Não viu ninguém, mas escutou gritos no interior do palácio. Um estrondo violento ecoou, quando os portões da alcáçova caíram. Temendo não ter tempo, Mem aproximou-se da varanda do palácio até onde, um dia, tinha subido para salvar a vida a Zaida.
Como da primeira vez, trepou pela parede e, ao avançar na varanda, viu Zaida no quarto, sentada na cama com Maryam ao lado. As duas rezavam. Zaida, temos de fugirl!,gritou ele. O olhar da princesa revelou o caleidoscópio de emoções contraditórias que lhe habitava a alma: a responsabilidade de uma mãe angustiada, o desgosto pela perdição da cidade, a esperança na salvação ao vê-lo. Mas a tudo se sobrepunha uma profunda descrença, um terror sinistro de Ibn Wasir. Mem, são muitos, só podemos rezar, gemeu ela. O antigo almocreve, para lhe dar confiança, apenas disse: vinde comigo. Por instantes, ela acreditou, mas logo abanou a cabeça. Wasir vai matar-nos.
Empenhado, Mem empurrou-as para a varanda. No jardim, os primeiros soldados de Wasir apareciam. Onde é a escada?, perguntou Mem. A princesa apontou para um canto da varanda e os três desceram os degraus de pedra por onde as moças do harém subiam, quando vinham satisfazer Ibn Qasi. Chegaram a uma pequena sala, onde havia uma porta para o exterior. Mem pegou ao colo em Maryam e avançou sem hesitar. Vamos! Já no jardim, apontou para a galeria subterrânea e acelerou o passo, seguido por Zaida. Enquanto corria, o cavaleiro de Almourol viu dezenas de guardas aparecerem e, de repente, distinguiu Ibn Qasi.
Mau combatente, morre sem gente.
Rodeado pelos seus últimos fiéis, de alfange na mão, o sufi lutava contra vários feddayins. Com um gesto rápido, Mem obrigou a princesa e a filha a desviarem o olhar, forçando-as a esconderem-se no riacho subterrâneo. Ficai quietas, ordenou. Não as ia deixar ver Qasi morrer e só ele observou o marido de Zaida a ser atingido na barriga, que se abriu em sangue e vísceras. Depois de cair, Qasi foi degolado por um assassin, que pegou na cabeça do sufi pelos cabelos e a levantou no ar, com uma alegria doentia». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                    
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